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Líderes que inspiram
Confira a entrevista com a QuilomboGOVer e escritora Jane Reis
Arquivo pessoal
Jane é mulher negra, mãe, filha, servidora pública, pesquisadora e trabalhadora na constante busca pelo conhecimento e reconhecimento como tal. Enquanto estiver viva, ela afirma honrar sua ancestralidade tecendo, fortalecendo redes antirrracistas e lutando pelo seu lugar de fala nos espaços e estruturas sociais dos quais faz parte.
* Jane Reis é uma das muitas outras autoras do livro "Mulheres negras no serviço público federal".
* A entrevista a seguir não reflete a opinião da coordenação do LideraGOV do MGI/Enap.
No livro "Mulheres negras no serviço público federal" você se descreve de forma eloquente e, ao mesmo tempo, despretensiosa. Hoje, após participar desse projeto revolucionário e inspirador do MGI, MIR e ENAP, acrescentaria algo a mais nessas suas escrevivências?
Com certeza. Sempre há o que acrescentar. Da mesma forma que a metade da população brasileira, sou historicamente invisibilizada, silenciada, a partir da leitura racista e racializada que as pessoas fazem do meu corpo negro, nos espaços que transito, pois ele sempre chega primeiro do que minha história, minha formação e minha competência profissional.
Por esse motivo, jamais perco as oportunidades que me são postas e sabe por quê? Porquê mesmo sendo a doutora Jane Reis, QuilomboGOVER, certificada por Harvad em Estudos Afrolatino Americanos e dentre tantos outros títulos e competências, sou preta e continuo tendo que lutar diariamente pelo protagonismo do povo negro. Sou qualificada para atuar em cargos alto executivos do setor público, com mais 50 QuilomboGOVERs e, mesmo assim, muito distante de estar em tais espaços.
Além disso, apresentaria nesse livro uma série de imagens, músicas e poesias que fazem parte da minha história e que não couberam nas linhas e entrelinhas do meu texto, destacando, principalmente, a tatuagem (foto em destaque) que fez parte de todo esse processo e que ainda falarei sobre ela nesse nosso diálogo.
O seu capítulo no livro "Mulheres negras no serviço público federal" fala sobre o quê?
Essas escrevivências são um mix do percurso pessoal, acadêmico e profissional, que entre as tramas da objetividade e a linha tênue das emoções, apresenta, em síntese, a história de uma mulher negra vinculada ao serviço público federal, que foi embranquecida até seus 30 anos de idade, até que, com a possibilidade de aquilombamento no Núcleo de Estudos Afrobrasileiros da Universidade Federal de Uberlândia, iniciou seu processo de conhecimento e reconhecimento enquanto mulher preta que, muito infelizmente, não usufruiu das cotas afirmativas para acessar os estudos e o trabalho.
Essa mulher, em dias atuais, é altamente qualificada, titulada, pronta para contribuir significativamente nos coletivos do qual faz parte, desde o profissional até os mais diversos de seu pertencimento social. Entretanto, há fortíssimos e sólidos entraves que inviabilizam esse processo, cuja justificativa está no preconceito de marca.
Ensinada desde pequena, assim como qualquer criança negra, que sempre preciso fazer melhor do que a branquitude. Ora mais cansada, ora mais potencializada, sempre honrarei minha ancestralidade e buscarei, continuamente, minha melhor versão. A vida de uma mulher negra é sinônimo de vida de luta e, por isso, não pode parar.
Em um trecho do livro "Mulheres negras no serviço público federal" você diz "Para conseguir ser uma líder, vejo a constante necessidade de aprender a liderar a mim mesma, o que somente é possível a partir da imersão no meu eu na perspectiva de passado, presente e futuro". Nessa linha, o que você diria para um(a) servidor(a) que almeja ser líder? Ou que já seja, mas deseja se tornar um(a) gestor(a) melhor, mais humano(a) e inspirador(a)?
O percurso formativo do LideraGOV marcou de forma indelével a história do Programa de Desenvolvimento de Líderes e impactou de forma única a vida de 51 pessoas, a maioria negra e composta por mulheres, a ponto de criar a marca "QuilomboGOVer", que muito mais que isso é literalmente um quilombo do século XXI, altamente tecnológico, interativo, diverso, concatenado com a inteligência artificial, com o planejamento estratégico e na constante busca por solucionar problemas complexos, a partir do serviço público e com políticas públicas. Tem algo mais único e incrível que isso, minha gente?
Nesse trajeto, jamais esquecerei que o primeiro módulo foi justamente se voltar para mim, para minha história, que é única, e estudar a liderança a partir do meu referencial como pessoa, enquanto mulher negra. Fui provocada por minhas mestras e mestres, saí da zona de conforto, mapeei minhas potencialidades e fragilidades com ajuda do instrumental que me foi apresentado durante essa formação e faço isso constantemente.
E, assim, prossegui no movimento Sankofa (símbolo Adinkra), de retornar ao meu passado, de forma a ressignificar meu presente e construir minhas perspectivas futuras, de forma alinhada à matriz de desenvolvimento de competências para atuar no serviço público, com autonomia e segurança para escolher as que para mim são as mais importantes. Notem a profundidade disso. O coração pulsou forte ao digitar essas escrevivências. Foi a partir disso que construí meu plano de desenvolvimento individual, que foi a semente do meu texto publicado no livro das mulheres negras do setor público.
Para o(a) servidor(a) que almeja ser líder digo que jamais podemos nos afastar da nossa essência, de nosso perfil identitário, de nosso pertencimento enquanto pessoa. Somos sujeitos nos espaços que fazemos parte, temos nossos lugares de fala e somente saberemos utilizar o instrumental próprio do alto desempenho no serviço público se conseguirmos articular o nosso eu com essas competências, sejam as essenciais, sejam as transversais, necessárias para exercer a liderança no setor público brasileiro. O segredo é saber justamente alinhar essas dimensões, encontrar o 'tom' que é único, de cada pessoa, ao perfil da equipe, ao setor de trabalho com suas respectivas normativas, fazendo gestão do tempo, mapeamento de risco e superando o desafio de ser completo(a) com objetividade.
Faço uma observação: não posso jamais me calar e perder a oportunidade de destacar que a turma QuilomboGOVer ou o LideraGOV 4.0 não é totalmente negra se a referência for a política de reserva de cotas raciais, pautada no conjunto de características físicas negroides visíveis da raça negra. Basta fazer o ‘teste do pescoço” e observar. Pertencimento étnico é diferente de ser pessoa negra no contexto brasileiro, que caracteriza o racismo no nosso território.
Como é ser mulher e negra?
É ser vista e lida, na maioria dos espaços institucionais e sociais que ocupo, se não em todos, a partir da cor da minha pele, da textura do meu cabelo, dos meus traços faciais e até mesmo do tamanho dos meus quadris.
Quem chega nos espaços não é a professora, pedagoga, cientista social, mestra, doutora, pesquisadora, Ubunter, certificada em Estudos Afrolatino Americanos por Harvard, QuilomboGOVer, mulher, mãe, filha, esposa. Quem chega é aquela pretinha atrevida ou coisas do gênero.
No livro você considera o LideraGOV uma virada de chave na sua vida. Algumas dessas viradas são imprevisíveis, o que podem nos forçar a reconsiderar nosso curso de vida. Essas transformações inesperadas geralmente testam nossa adaptabilidade e resiliência. Elas podem nos desafiar, nos fazer crescer e nos levar a descobrir novas facetas de nossa identidade, mas podem machucar também. Como foi a experiência de passar pelo Programa de Desenvolvimento de Líderes? O que mudou desde então?
Por mais que tenho lido e relido em busca da compreensão do que é o LideraGOV, desde os documentos da inscrição até as pesquisas diversas tentando entender o que é o Programa, hoje tenho a convicção que somente quem faz o curso de qualificação tem a noção da profundidade do LideraGOV, que é muito mais que isso: é uma política de acesso, de promoção e de equidade nas mais diversas dimensões: racial, de gênero, territoriais etc.
Comecei brava, desconfiada, como sempre questionando a quantidade de regras e rigidez que via naquele momento. Me perguntei: o que estou fazendo aqui, presa oito horas por dia, em periodicidade quinzenal, com um grupo de mulheres praticamente todas não negras, inflexíveis e insensíveis com a minha luta antirracista? Desculpem, mas preciso ser franca, pois foi este foi o meu começo.
Assim como todas as pessoas da minha turma, assisti aulas doente, na cama, com problemas pessoais e familiares, muitas vezes chorando. Outrora em cantinhos, onde encontrava silêncio e a possibilidade de sempre estar com a câmera ligada. Também assisti aulas feliz, de alma leve, cabelos molhados, batom no rosto e em cada uma delas tinha gente do meu quilombo que perguntava sutilmente no privado: você está bem? o que você tem hoje? Você está linda! E, assim, fui sendo conhecida e reconhecida entre os meus e entre a equipe do Lidera como a oncinha, dona onça, onça, sempre utilizando de tal estampa que hoje vejo muito sentido com a minha luta profissional e de vida por equidade racial e educação antirracista.
Tive embates no Programa, fui atendida no privado, questionei muito o Lidera. Muitos QuilomboGOVers fizeram o mesmo, de formas distintas.
Acima de tudo isso? aprendi e foi muito. Não foi aprendizado apenas para atuar no setor público. Foi e sempre será aprendizado de vida, que impactou para além do trabalho no meu cotidiano, no meu olhar, na minha família, nas minhas relações sociais.
O que se destaca? Fui transformada pelo Programa, mas também transformei. É isso que mudou, é isso que fica. Não é só Lidera, é Quilombo, QuilomboGOV! O que precisa mudar? O mapa da cor do poder na estrutura de cargos do serviço público federal.
Como foi participar do Programa LideraGOV?
Foi surreal, um marco na minha carreira que transformou muito a minha atuação profissional, enquanto servidora pública. Acho que estou apenas começando, aberta a oportunidades de exercer o trabalho de alta executiva no serviço público federal, com competência, ética, responsabilidade, pertencimento e postura inclusiva e antirracista. Alguns registros importantes deste marco:
https://www.instagram.com/p/C_td6xiz4gg/ https://comunica.ufu.br/node/30399/ https://open.spotify.com/episode/0ADYp94tkIM0OSainXYVxJ?si=c0fjla7zR62USBDdLZAp0w
Como foi a sua experiência ao conviver com outros servidores negros no Programa de Desenvolvimento de Líderes?
Foi e sempre será (por ser uma rede diversa, plural e muito valiosa) um privilégio. Uma pessoa negra quando vê outra atuando como líder, se vê nela, se projeta naqueles sonhos, sem nem mesmo conhecê-la, pois sabe dos dissabores de sua raça. Formamos o QuilomboGOV e temos muita caminhada pela frente.
Compartilho este link da minha mais recente entrevista em TV aberta, em que dialoguei sobre a consciência negra e mencionei o LideraGOV: https://globoplay.globo.com/v/13116088/?s=0s a partir de 37min26seg.
Depois de passar pelo Programa LideraGOV acredita ter sido confrontada com desafios ou oportunidades que te levam a pensar "fora da caixa"?
Com certeza. Se não for o principal (que para mim é), o mais grave problema que vejo atualmente no serviço público federal, especialmente no espaço das universidades, que contraditoriamente são locus de produção de conhecimento, é a inflexibilidade e intolerância de pensar e agir fora da caixa. Este é um dos mais fortes entraves à inovação para o desenvolvimento de práticas exitosas.
Tenho em minhas mãos um instrumental rico e diverso para utilizar em favor do serviço público. Tenho matrizes de competências essenciais e transversais, tenho estratégias para me comunicar e gerir riscos, tenho inúmeros caminhos e possibilidades para traçar planos de ação que não são receitas de bolo. Não há fórmula mágica. Há ferramentas incríveis e diversas a serem utilizadas em diferentes contextos e realidades. Hoje, tenho conhecimentos e competências para escolher quais devo usar em determinada situação. São muitas peças, de vários quebra-cabeças, que podem ser combinadas de diversas formas para avançar no serviço público de qualidade. Isso é pensar fora da caixa. Desde que fiz o LideraGOV, sempre me lembro dessas ferramentas e utilizo para diferentes finalidades.
Quais autores, personalidades ou até mesmo pessoas do cotidiano te inspiram?
Minha principal referência é meu pai. Homem negro, caminhoneiro, com pouquíssima escolaridade, mas tamanha sabedoria, que me criou contando os atos racistas que sofreu da infância à vida adulta, sempre me fazendo prometer que lutaria contra isso e que não me deixaria abalar pelo racismo.
Demorei muito a entender, mas entendi. Ele não está mais nessa vida para ver que a semente plantada germinou. É o homem da minha vida, a minha personalidade, meu tudo e a ele honro nosso ancestralidade, nossa luta. Sabe do que ele morreu? De câncer de estômago e intestino por falta de exames preventivos. Sabia que esse tipo de câncer é recorrente em homens negros? Esse é meu herói.
Meu pai é o único homem negro o qual me refiro como inspiração, sabe por quê? Nas lutas e andanças antirracistas me deparei e me deparo com machos negros vaidosos e de mentalidade colonizadora, com máscaras e cascas autointituladas antirracistas, mas que na essência fazem questão de inviabilizar e silenciar as mulheres negras pelas quais dizem que lutam. Encontrei alguns desses, inclusive na minha turma do LideraGOV.
Poderia aqui mencionar Tereza de Benguela, Dandara dos Palmares, Sueli Carneiro, Lélia Gonzales, Carolina Maria de Jesus e tantas outras que me nutrem nessa caminhada, mas aqui, nesse momento, não foi minha escolha.
Prefiro sabe o quê? Falar sobre as meninas e mulheres negras que sempre me chamam a atenção por onde vou. Mas o que realmente se destaca para mim são as meninas, as crianças de cabelos crespos, sejam soltos ou trançados, brilho no olhar, beleza única na pele escurecida. Cresci me achando uma menina feia e incapaz. Isso marcou minha infância. Cada menina negra que vejo construo a oportunidade para, pelo menos, chegar perto dela e dizer: como você é linda! Elas são minha inspiração para a luta, para o cotidiano.
Pessoas podem te perguntar "Como você se vê daqui a 5, 10 anos...". A indagação é: Como se enxerga daqui a seis meses, um ano no máximo?
Hoje, no meu lugar de fala, não consigo me enxergar com muitos avanços em um semestre. A minha universidade acabou de passar por consulta eleitoral para o cargo de reitoria. O candidato negro e gay que apoiei perdeu por menos de 3%, num meio de manobras políticas sujas e racistas, a ponto de muitas pessoas dizerem que não votariam nele por ser preto. Seria o primeiro reitor negro numa instituição de 50 anos. Isso é entristecedor. E sigo no momento sofrendo perseguição política pelo apoio que manifestei ao reitor que gostaria de ter. Não me arrependo disso.
Estou fazendo parte da rede de mulheres negras do serviço público e não sou de perder oportunidades que possam me fortalecer. Porém, também fiquei triste e compartilho o relato que enviei a uma das gestoras do grupo, por não ter conseguido subsídios para participar do primeiro encontro dessa rede. Segue relato:
“Se me permite uma ponderação… mulheres negras no serviço público, dentre as quais me incluo, são historicamente, em sua maioria, mesmo sendo pouquíssimas ocupando esse espaço, invisibilizadas, silenciadas, consideradas estorvos e, pior ainda, muito dificilmente priorizadas, por exemplo, em deslocamentos como esse. Sofri muito para conseguir meu deslocamento do LideraGOV e por pouco não fui. As que vão, são as mesmas de sempre, por recurso próprio ou pela rara sorte da concessão de suas chefias. Por favor, para formarmos redes, precisamos de subsídios, precisamos de investimento ou então, por mais que estejamos qualificadas, não conseguiremos romper barreiras. Por favor, receba esse desabafo como pedido de socorro, de ajuda e não como crítica, pois sei que do lado daí também não é fácil. Mas nada se faz ou se rompe sem recursos…. Ainda mais no meu caso, que não estou em capital, sou do interior e as passagens são ainda mais inacessíveis e caras".
Em termos institucionais não é um momento promissor para mim, mas não desisto. Por fora, sigo fortalecendo minhas redes com projetos em construção, palestras, atividades formativas, pesquisa, aulas e muita vontade de continuar.
Ser servidor(a) público(a) é o desejo de muitas pessoas. Na atualidade, qual cenário você vislumbra para uma mulher preta, recém egressa na administração pública federal?
Sou orgulhosa de ser servidora pública, do meu salário, embora defasado, porém estável. Estou no meu cargo há 15 anos, quase completando 16, e foi esse vinculo que me possibilitou o autoconhecimento e reconhecimento como mulher negra. Imergi nesse processo após ser doutora tardiamente. Não tive acesso à política de cotas raciais e não me orgulho disso.
Sou técnica em assuntos educacionais mas, paralelamente, sou pesquisadora, professora e também me realizo muito com isso. Porém, no ambiente universitário, técnicos são inferiorizados por docentes, mesmo tendo igual titulação. As vezes digo: não bastasse nascer mulher, negra, ainda sou técnica. Poderia contribuir muito mais com a minha formação, com a minha qualificação. Há uma luta em processo de anos em relação a essa inferiorização e sou solidária a ela.
Fiz concursos para docente. Cheguei muito perto. Demorei a entender que um dos fatores por não ter conseguido foi a minha raça. Ainda vislumbro ser docente no setor público, exercício que faço na esfera privada há mais de 20 anos, numa dupla jornada de trabalho. Meu sangue pulsa educação e me vejo no ensino, na pesquisa e na extensão. Em termos salariais, não diverge da carreira docente pública. É questão realmente de realização profissional e de mudar vidas por meio de uma docência representativa e equânime.
Quais foram os seus principais desafios na administração pública federal?
Demorei a entender e descobri onde e como poderia deixar o meu legado, a minha efetiva contribuição para a minha instituição. Esse sempre foi o principal desafio a meu ver. Inconcebível passar por lugares sem deixar minha marca, minha contribuição. Faço isso com profissionalismo, empenho e muito amor.
Hoje, enquanto servidora pública federal competente, extremamente qualificada, tenho a convicção de que tenho muito a contribuir nas instituições públicas do nosso País. Sigo no desafio de ser mulher, ser negra, ser técnica.
Para você, o que significa um serviço público mais plural, diverso e inclusivo? Na prática, acha isso possível?
Serviço público mais plural, diverso e inclusivo é o serviço público com a cara do Brasil e de sua população que, majoritariamente, é negra. Entretanto, é necessário promover o acesso, a equidade racial e de gênero. Isso tudo é possível sim, porém com políticas públicas, programas voltados para essa necessidade, com cotas nos editais de seleção para cargos públicos. Estamos ainda distantes, mas é possível sim e esses dois últimos anos são provas contundentes de que é viável. O LideraGOV, com a minha turma QuilomboGOV, é a prova de que é factível, porém árduo e desafiador.
Na atualidade, como vê as discussões sobre igualdade racial no setor público?
Nos últimos dois anos tivemos avanços significativos no que tange à igualdade racial no setor público. No movimento Sankofa, se olharmos para trás, veremos que avançamos. Porém, o presente ainda é insatisfatório, mas o futuro pode ser promissor, embora tenhamos as influências e impactos da conjuntura política, econômica e social, que são preocupantes.
O setor público, ao meu ver, tem a necessidade urgente de letramento racial, letramento anticapacitista e letramento de gênero.
É necessário desmistificar e debater o colorismo. Provocar nos servidores públicos federais que cota não é esmola e que a raça negra não se restringe apenas à cor da pele.
Você possui vários títulos acadêmicos e não acadêmicos importantes. Falta algum?
Sempre amei estudar e pretendo continuar. Não sou de perder oportunidades que me apresentam ser interessantes, desde meu aperfeiçoamento pessoal, até mesmo o que é do meu interesse. Sempre vai faltar algo, porque a formação é contínua.
Desejo me dedicar ao pós-doutorado, que não é título, mas que considero importante. Não fiz minha pesquisa de mestrado e doutorado na área de relações étnico-raciais, que é o tema ao qual venho me dedicado na última década. Então, me dedicar a esse momento é concretizar um sonho que demorei muito para me encontrar. Sou mulher negra e somente depois dos meus 30 anos de idade que comecei a me conhecer e reconhecer enquanto tal, potencializando a honraria de ser objeto e sujeito de estudo e pesquisa. Isso é muito valioso.
Também tenho o desejo de escrever um livro sobre cotas e heteroidentificação. Já tenho escritos, estrutura e não quero abandonar esse projeto. Estudar e pesquisar sempre é necessário e eu amo.
Você vem de uma família interracial. Como é isso para você?
Precisei aprender e entender esse processo. Sou filha de um homem negro retinto com uma mulher não negra, branca, que na sua atribuição de mãe me embranqueceu o quanto pode na tentativa de me desviar de atos e olhares racistas.
Utilizei alisante químico em meus cabelos até os 30 anos de idade. Não foi fácil passar a travessia do conhecimento e reconhecimento como mulher negra pois, por mais que haja rede de apoio, há momentos e tomadas de decisão que são solitários e muito individuais. Olho para trás e me orgulho de ter passado por isso.
Queria muito ter inserido as imagens que disponibilizo logo abaixo no meu capítulo do Livro "Mulheres negras no serviço público federal", mas não podia ter imagens para padronizar com os demais textos. Nada melhor que o tempo e as oportunidades. Mostro agora nesta entrevista ressaltando que a foto de 2023 foi tirada na Enap, no dia da aula magna do LideraGOV 4.0:
Informações e registros que considero importantes:
Finalizei meu texto no livro "Mulheres negras no serviço público federal" com uma poesia que chamo de minha, pois fui presenteada com a autora e veio junto com uma imagem que também me representa.
Quando os gestos
viram insights
das dores do passado,
o medo é um lobo acuado
que faz morada no peito.
Quebrada fica a lente dos nossos sentimentos...
e não conseguimos ver o afeto a centímetros de distância
O outro se torna o eterno inimigo,
Cercamo-nos de muros altos
e nos camuflamos nas sombras
enquanto o sol raia enigmático tantas descobertas
que não queremos fazer.
Há a presença constante do receio
de que aquilo que nos machucou
nos machuque de novo...
e de novo...
como se todas as experiências não vividas
fossem velhas coincidências.
Sem querer somos falsos oráculos
e a verdade nunca é tateável
ao ponto de nos blindar
do concreto que é o existir.
Se seu rosto bater mil vezes no chão,
sorria como uma onça,
Levante-se
Juliana Sankofa
Por: Sílvia Maria Barros - servidora da CGDDP/DECAR/SGP/MGI.
*A entrevista a seguir não reflete a opinião da coordenação do LideraGOV do MGI/Enap.