Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidados do Brasil
Órgão: Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome
Setor: MDS - Secretaria Nacional de Cuidados e Família
Status: Encerrada
Abertura: 30/10/2023
Encerramento: 22/12/2023
Contribuições recebidas: 820
Responsável pela consulta: Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família
Contato: participacuidados@mds.gov.br
Resumo
Este documento tem como objetivo apresentar uma versão do Marco Conceitual para a formulação da Política Nacional de Cuidados e do Plano Nacional de Cuidados. Ele foi produzido a partir das discussões realizadas pelo Grupo de Trabalho Interministerial, instituído em março de 2023 para a formulação da Política e do Plano Nacional de Cuidados (GTI-Cuidados), coordenado pela Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (SNCF/MDS) e pela Secretaria Nacional de Autonomia Econômica e Políticas de Cuidados do Ministério das Mulheres (SENAEC/MMulheres). Este Marco Conceitual apresenta os principais aspectos conceituais que orientam a formulação da Política e do Plano Nacional de Cuidados e está organizado em cinco partes: 1) breve histórico da formulação da Política Nacional de Cuidados no Brasil; 2) conceito de cuidado; 3) transformação do cuidado em objeto de política pública; 4) a Política Nacional de Cuidados no Brasil: componentes e estratégias de ação; e 5) considerações finais.
Conteúdo
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1. Um breve histórico do processo de construção da Política Nacional de Cuidados no Brasil
O tema dos cuidados - entendido tal como será
apresentado neste marco teórico e conceitual - só muito recentemente vem sendo
incorporado ao campo das políticas públicas no Brasil. É necessário assinalar
que muitas políticas, programas e ações já desenvolvidas pelos governos - nas
três esferas federativas - buscam prover cuidados para quem deles necessita. É
o caso, por exemplo: dos serviços educacionais - como creches, pré-escolas e
escolas de ensino básico; das instituições que atendem pessoas idosas ou com
deficiência - como os centros-dias, os centros de convivência, as instituições
de longa permanência, as habitações inclusivas e os serviços de acolhimento da
assistência social; e, ainda, dos hospitais e as Unidades Básicas de Saúde. Há,
ainda, benefícios monetários, como o salário maternidade, Benefício de Prestação
Continuada (BPC-LOAS) e o Bolsa Família.
Estas políticas, contudo, não apenas são insuficientes
para garantir o acesso universal ao cuidado, como não foram pensadas a partir
de uma perspectiva integral e integrada e que busque, ao mesmo tempo, garantir o direito
das pessoas a serem cuidadas e, também, os direitos das pessoas que cuidam.
Tampouco foram pensadas a partir da ideia de que é responsabilidade do Estado o
papel principal de provisão dos cuidados e de organização dessa provisão, tendo
cabido historicamente às famílias e, nelas, às mulheres, a principal
responsabilidade pelo trabalho de cuidados. Ao Estado restou, portanto,
historicamente, um papel subsidiário neste campo.
A construção de uma política
integral e integrada de cuidados passa a ser, pela primeira vez no Brasil, um
objetivo nomeadamente público a partir de 2023, quando são criadas, nas
estruturas do governo federal, a Secretaria Nacional da Política de Cuidados e
Família, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social,
Família e Combate à Fome (SNCF/MDS) e a Secretaria Nacional de Autonomia
Econômica e Políticas de Cuidados localizada no Ministério das Mulheres (SENAEC/MMulheres).
O Decreto nº11392/2023,
que define a estrutura regimental do MDS, indica que a SNCF tem como
competências propor e adotar estratégias intersetoriais e interfederativas para
a constituição de uma Política e de um Plano Nacional de Cuidados, promovendo a
integração de políticas socioeconômicas e setoriais, com atenção às
desigualdades de gênero, raça, etnia, ciclo de vida, deficiência e território,
além de fomentar o intercâmbio de experiências entre países, especialmente no
âmbito da Cooperação Sul-Sul. Já o Decreto nº11351/2023 que define a
estrutura do MMulheres, estabelece que cabe à SENAEC/MMulheres elaborar a
política nacional de cuidados para desenvolver, executar e integrar estratégias
de visibilização e desnaturalização da divisão sexual do trabalho.
Nesse contexto, é missão dessas
institucionalidades formular, coordenar e fazer a gestão da Política Nacional
de Cuidados, incluindo seus planos, programas e projetos, orçamentos e metas. Os
resultados que se espera entregar para a população brasileira incluem,
dentre outros, a garantia do direito ao cuidado a todas as pessoas que dele
necessitem, a promoção do trabalho decente a todas as trabalhadoras e
trabalhadores remunerados do cuidado e o reconhecimento e a redistribuição do
trabalho doméstico e de cuidados não remunerado, exercido historicamente pelas
mulheres no interior de seus domicílios. Com isso, pretende-se reduzir a
pobreza e as desigualdades estruturais que caracterizam a sociedade brasileira,
em suas múltiplas expressões, além de contribuir para uma organização social do
cuidado mais justa e corresponsável. Por um lado, essa nova organização social
dos cuidados deve despenalizar as mulheres e as permitirem construir novos e
diversos caminhos para suas vidas pessoais e profissionais e, por outro,
ampliar o acesso a um cuidado de qualidade para toda a população brasileira.
A construção de uma Política Nacional de Cuidados que
busque atingir objetivos tão importantes e ambiciosos deve ser, necessariamente,
um esforço intersetorial, que envolva diferentes setores governamentais, tanto
no âmbito federal, quanto nas esferas subnacionais, bem como a sociedade civil
brasileira e outras instituições do Estado, como os poderes legislativo e
judiciário. Para dar conta desse desafio, a SNCF/MDS, juntamente com a SENAEC/MMulheres,
assumem um papel central de articulação, indução e coordenação da formulação e
implementação da PNC que se materializa no Grupo de Trabalho
Interministerial (GTI-Cuidados) que foi instituído pelo Decreto nº 11.460, de
30 de março de 2023 com a finalidade de elaborar a proposta da Política
Nacional de Cuidados e a proposta do Plano Nacional de Cuidados. O
GTI-Cuidados, coordenado pela SNCF/MDS e pela SENAEC/MMulheres, é composto por
outros 15 ministérios e três entidades convidadas permanentes (Quadro 1)[1]. Ele tem o prazo de até um
ano - a contar de sua instalação, ocorrida no dia 22 de maio de 2023 - para
apresentar um diagnóstico sobre a organização social dos cuidados no Brasil
(considerando tanto as necessidades quanto a oferta de cuidados atualmente
existente), e, ainda, propor a Política e o Plano Nacional de Cuidados.
Quadro 1. Composição do GTI-Cuidados, segundo o Decreto nº11460/2023[2].
I - órgãos integrantes |
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome; |
Ministério das Mulheres; |
Casa Civil da Presidência da República; |
Ministério das Cidades; |
Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar; |
Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços; |
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania; |
Ministério da Educação; |
Ministério do Esporte; |
Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos; |
Ministério da Igualdade Racial; |
Ministério do Planejamento e Orçamento; |
Ministério dos Povos Indígenas; |
Ministério da Previdência Social; |
Ministério da Saúde; |
Ministério do Trabalho e Emprego; e |
Secretaria-Geral da Presidência da República. |
II - entidades convidadas permanentes: |
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE; |
Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz; e |
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea. |
O GTI-Cuidados foi instalado no dia 22 de maio de
2023, em evento que reuniu os ministros e ministras do/da: i)
Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias;
ii) Mulheres, Cida Gonçalves; iii) Gestão e Inovação em Serviços
Públicos, Esther Dweck; iv) Igualdade Racial, Anielle Franco; e v)
Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida.
O processo de construção da Política de Cuidados no
Brasil tem sido marcado por uma preocupação que envolve, de forma central, como
se verá a seguir, também as trabalhadoras remuneradas (e não remuneradas) do
cuidado, em especial a categoria das trabalhadoras domésticas, responsável por
parcela expressiva da provisão de cuidados no país, em condições de extrema
precariedade e vulnerabilidade social. Como expressão desta centralidade, no
momento de instalação do GTI-Cuidados, foi assinado um Protocolo de
Intenções entre o governo federal e a Federação Nacional das Trabalhadoras
Domésticas (Fenatrad) - na ocasião representada por sua presidenta Luiza
Batista. Seu objetivo é a elaboração de um programa de ampliação de
escolaridade e qualificação das trabalhadoras domésticas, bem como de apoio ao
fortalecimento de suas organizações representativas, para promover a
implementação e garantia dos seus direitos e respeito à legislação nacional e
aos acordos e convenções internacionais ratificadas pelo Brasil. Nota-se, assim, que a intersetorialidade esteve presente desde
a criação e a instalação do GTI-Cuidados, assim como a interlocução com a
sociedade civil.
Conforme definindo pelo Decreto de sua instituição, o
GTI deve se reunir de forma ordinária, uma vez ao mês, podendo ser convocadas,
sempre que necessário, reuniões de caráter extraordinário. Desde maio de 2023,
portanto, o grupo de trabalho tem se reunido e trabalhado em diferentes
abordagens e temas, tal como se pode ver no quadro 2.
Quadro 2. Caminho percorrido pelo GTI-Cuidados.
1ª reunião ordinária |
22 e 23/05 |
22/05 - Instalação do GTI-Cuidados e seminário sobre conceitos e noções introdutórias sobre políticas e sistemas de cuidado 23/05 - Reunião de trabalho: apresentação do GTI e pactuação de cronograma e objetivos de trabalho |
2ª reunião ordinária |
22/06 |
Apresentação de experiências federais e locais de políticas de cuidado |
3ª reunião ordinária |
26 e 27/07 |
Pensando as políticas de cuidado no governo federal a partir dos públicos prioritários: desafios para cada público e levantamento de políticas no âmbito do governo federal |
4ª reunião ordinária |
31/08 |
Desenho do marco conceitual da política de cuidados: definição de públicos prioritários e conceito de cuidados |
Reunião extraordinária |
15/09 |
Desenho do marco conceitual da política de cuidados: definição de públicos prioritários e conceito de cuidados (continuação da 4ª reunião ordinária) |
5ª reunião ordinária |
27 e 28/09 |
Desenho do marco conceitual da política de cuidados: definição de princípios, diretrizes e objetivos |
6ª reunião ordinária |
26/10 |
Planejando um plano de cuidados: definição de macro objetivos e desenho da árvore de problemas |
Além disso, o Decreto também previu a possibilidade de
instalação de até quatro câmaras técnicas (CTs), com o objetivo de aprofundar
discussões sobre temas específicos relativos às políticas públicas de cuidados.
Foi aprovada, no âmbito do GTI, a criação de quatro CTs que têm mantido
reuniões periódicas desde sua instalação. São elas: 1) Câmara Técnica de Legislativo;
2) Câmara Técnica de Gestão de Informações; 3) Câmara Técnica de Trabalho
Doméstico Remunerado; e 4) Câmara Técnica de Financiamento[3].
2. Conceito de cuidado
Um dos desafios da formulação da Política Nacional de Cuidados diz respeito às múltiplas interpretações que atravessam o tema do cuidado. Cuidado é um termo polissêmico, ou seja, que possui uma multiplicidade de significados, sendo utilizado para se referir a um conjunto variado de atividades da vida diária (ex. cuidar de um bebê, cuidar da casa, cuidar para não se machucar, cuidar da saúde, cuidar das finanças, etc.). Além disso, é também um conceito presente em diversos âmbitos das políticas públicas com significados diversos. O que significa cuidados nas políticas de saúde, de educação, de direitos humanos ou de assistência social, por exemplo? Definir o conceito de cuidados é, portanto, um dos primeiros desafios para a estruturação de uma política de cuidados e, ainda, para o marco conceitual que será apresentado nesta seção.
2.1. Um trabalho essencial para a sustentabilidade da vida humana, da economia e da sociedade
O cuidado pode ser definido como um trabalho
cotidiano de produção de bens e serviços necessários à sustentação
e reprodução da vida humana, da força de trabalho, das sociedades e da
economia e à garantia do bem-estar de todas as pessoas. Estamos falando,
portanto, de trabalhos como a preparação de alimentos, a limpeza, gestão e
organização da casa, bem como das atividades de assistência, apoio e auxílio
diários para pessoas com diferentes graus de dependência, como bebês e crianças
pequenas, pessoas idosas ou pessoas com deficiência e pessoas em situação de
vulnerabilidade, quando essas não conseguem, sozinhas, realizar atividades como
alimentar-se, caminhar, utilizar o transporte público, fazer compras, realizar
sua higiene, etc.
A forma como esse trabalho se concretiza na vida
diária é variada. O trabalho de cuidado pode ser remunerado,
compreendendo atividades destinadas à produção de bens e/ou serviços de
cuidados realizados para terceiros em troca de remuneração e benefícios, a
exemplo de profissões como o trabalho doméstico remunerado, cuidadoras/as de
pessoas idosas e com deficiência, babás e cuidadoras de crianças e
adolescentes, profissionais da educação infantil e da saúde, dentre outras. De
forma diversa, ele pode ser exercido de maneira não remunerada, no
âmbito familiar ou comunitário - fora de relações laborais do mercado de
trabalho -, abarcando tarefas como produção de alimentos, manutenção dos
domicílios e cuidado das pessoas do próprio núcleo doméstico e/ou familiar, sem
contrapartida financeira[4].
Na esteira dessa dualidade, tem-se que o local em que
o trabalho de cuidado é realizado é variado. A provisão de cuidados, nesse
sentido, pode se dar tanto no âmbito doméstico ou familiar, como
nos âmbitos comunitário e em instituições públicas ou privadas
(creches, centros-dia ou residências inclusivas e instituições de longa
permanência para pessoas idosas ou com deficiência etc.). É importante
destacar, aqui, que o local em que os cuidados são ofertados não se constitui
em um elemento demarcador do que é entendido como cuidado ou não. O trabalho de
cuidar de uma criança é trabalho, seja ele realizado no domicílio ou em
instituições educacionais, por exemplo. No entanto, cabe destacar e reconhecer
que o local em que ele é realizado pode definir a qualidade de cuidado recebido
ou a carga de trabalho que recai sobre famílias e cuidadoras.
Outro elemento importante neste marco conceitual
refere-se à necessidade ou não de interação pessoal na definição do que é
trabalho de cuidado. O trabalho de cuidados pode ser prestado de forma direta
ou indireta. O trabalho direto é aquele que envolve uma interação face a
face entre quem cuida e quem é cuidado, como brincar com uma criança ou ajudar
uma pessoa idosa com restrição de autonomia a tomar banho ou a alimentar-se. Já
o trabalho indireto inclui atividades de manutenção, gestão, planejamento,
entre outras, e que dão suporte à realização dos cuidados diretos, como limpar
a casa, preparar alimentos, fazer compras ou lavar as roupas. O cuidado
indireto não abrange, necessariamente, a interação pessoal. Podem ser
consideradas, também nessa categoria, os trabalhos realizados para a
subsistência - como o cuidado com hortas e animais - que são especialmente
importantes para a reprodução social de povos do campo, da floresta e das
águas, além de comunidades e povos tradicionais.
Por fim, outros dois elementos são também importantes
nessa estratégia de construção de uma linha demarcatória do objeto de uma
política de cuidados. São eles: a recorrência deste trabalho e a possibilidade
de que seja compartilhado entre diferentes instituições (em especial entre
famílias, empresas, governos e comunidades).
Em relação à recorrência, o trabalho é entendido como
de cuidado se envolve a realização de atividades cotidianas para
sustentação da vida e de apoio e auxílio à vida diária. Dessa forma, trabalhos
esporádicos, como a aplicação de uma vacina ou a realização de uma cirurgia não
estão incluídos na definição do que se entende por cuidado na política aqui
tratada, ainda que, por suposto, componham o que se poderia chamar de cuidado
em saúde. O trabalho de uma mãe que aplica insulina em sua filha todos os dias,
por outro lado, é compreendido como um trabalho cotidiano, necessário para a
garantia do bem-estar e para a manutenção e reprodução da vida daquela pessoa
que recebe o cuidado. A recorrência pode ocorrer, inclusive, em
intervalos específicos (a exemplo de uma pessoa que tem uma depressão profunda
e que demanda apoio e assistência familiar ou profissional por um ano, quando o
trabalho é recorrente e cotidiano).
Já a possibilidade de compartilhamento da execução e/ou da responsabilidade pelas condições em que é exercido o
cuidado refere-se àquelas atividades que são passíveis de serem exercidas/compartilhadas
pelo Estado, mercado/empresas, comunidade e famílias. É essencial que o
trabalho de cuidar possa ser de responsabilidade, execução ou exercício da
família, mas também de uma instituição pública (como um centro-dia para pessoas
idosas) ou privada (como um hospital) ou, ainda, pelas comunidades (creches
comunitárias). Caso o trabalho só possa ser exercido em um ambiente hospitalar,
por exemplo, não sendo passível de ser compartilhado por outras instituições,
entende-se que esse não é o trabalho de cuidado objeto desta política, ainda
que, mais uma vez, ele possa ser enquadrado como cuidado na semântica e nas
características que definem outras políticas setoriais.
2.2. A organização social (desigual, injusta e insustentável) dos cuidados
O cuidado é não apenas um trabalho, mas também uma
necessidade de todas as pessoas, central para a sustentabilidade da vida
humana, assim como para o funcionamento da economia e das sociedades. Todas as
pessoas necessitam de cuidados ao longo de suas vidas ainda que, em alguns
momentos ou em condições específicas, nas quais é menor a sua autonomia e maior
a sua dependência[5],
essas necessidades sejam mais intensas e/ou mais complexas. Em algumas
situações, inclusive, as pessoas não podem prescindir do cuidado realizado por
terceiros/as, por ele ser fundamental para o seu bem-estar, ou, no limite, para
a sua própria sobrevivência. É o caso, por exemplo, dos bebês, que dependem
integralmente do cuidado ofertado por outras pessoas, ou de pessoas idosas e
pessoas com deficiência que, em
determinadas condições, podem necessitar de assistência, auxílio e apoios para
realizar tanto as atividades básicas da vida diária (ex. tomar banho,
vestir-se, alimentar-se etc.), quanto as atividades entendidas como
instrumentais (ex. gerenciar recursos, fazer compras, sair de casa etc.).
A forma como esse cuidado é ofertado nas sociedades é
bastante variável. Em cada sociedade e em diferentes etapas históricas,
estabelece-se uma organização social dos cuidados específica, que produz, organiza e distribui os cuidados, e que tem componentes sociais,
econômicos, culturais e políticos. A conformação dessa organização social dos
cuidados congrega e responsabiliza um amplo conjunto de atores sociais e
instituições pela sua provisão, em especial as famílias, comunidades, Estado,
mercado/empresas, tal como pode ser visualizado pela figura 1 reconhecida na
literatura como "diamante dos cuidados"
Figura
1. Diamante dos cuidados
A organização social dos cuidados corresponde, por um
lado, a forma como o cuidado é ofertado por diferentes culturas e instituições - Estado, mercado/empresas, comunidades e famílias - e, por outro, a como as
famílias e comunidades se beneficiam dessa oferta.
No Brasil, historicamente e na atualidade, a
organização social dos cuidados é desigual, injusta e insustentável - seja do
ponto de vista ético, econômico ou social. É desigual e injusta porque, apesar
de todas as pessoas necessitarem de cuidados ao longo do seu ciclo de vida, nem todas recebem os cuidados de
acordo com suas necessidades e nem todas cuidam; principalmente, nem todas
cuidam na mesma intensidade e na mesma proporção. São as famílias, e
especialmente as mulheres, as que se responsabilizam desproporcionalmente pela
provisão de cuidados no país. As mulheres continuam sendo as principais - quando
não exclusivas - responsáveis pelo trabalho de cuidados, principalmente as mais
pobres (que não têm renda suficiente para adquirir serviços de cuidado no
mercado), as mulheres negras e as que vivem em territórios com menor acesso a
políticas e serviços públicos de cuidado, como as zonas rurais e as periferias
urbanas.
A atual forma de
organização social dos cuidados vigente na sociedade brasileira também é
insustentável, uma vez que é crescente a demanda de cuidados, devido ao
acelerado processo de envelhecimento da população - e à crescente incidência de
deficiência ao longo do curso da vida[6].
Há, ainda, uma diminuição da oferta familiar de cuidados, devido ao aumento da
inserção das mulheres no mercado de trabalho e a diminuição do número de
pessoas por família, resultado das continuadas quedas das taxas de fecundidade
no país[7],
dentre outros fatores. Esses movimentos intensificam aquilo que vem sendo
chamado de crise dos cuidados.
É importante destacar que
esse modelo de organização social dos cuidados gera uma série de impactos não
só para as mulheres - sobrecarregadas com as responsabilidades de provisão de
cuidados - mas também para as pessoas que necessitam de cuidado. No caso das
mulheres, a grande sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidados não
remunerado gera uma importante pobreza de tempo e impõe fortes barreiras
para a o exercício dos seus direitos em outros âmbitos da vida, como a conclusão
das suas trajetórias educacionais e de formação profissional, a inserção no
mercado de trabalho e na vida pública em igualdade de condições com os homens,
comprometendo suas possibilidades de geração de renda e a sua autonomia
econômica. Isso contribui significativamente para a reprodução da pobreza e das
desigualdades sociais.
No caso das pessoas
beneficiárias do cuidado, a organização injusta compromete o acesso e a
qualidade do cuidado para quem dele necessita, violando direitos humanos de
quem é cuidado, além de produzir barreiras e impedimentos para o exercício de
uma vida digna e autônoma, especialmente para crianças e adolescentes, pessoas
idosas e pessoas com deficiência que requerem apoio, assistência e auxílio de
terceiros para as atividades básicas e instrumentais da vida diária.
É necessário, portanto, transformar profundamente a atual organização social dos cuidados a partir do reconhecimento da interdependência como uma condição humana que une as pessoas em sociedade. Nessas bases, é necessário estruturar as responsabilidades pessoais e institucionais a partir das necessidades de quem cuida e de quem é cuidado, promovendo a corresponsabilidade entre mulheres e homens no interior das famílias e entre as famílias, a comunidade, o Estado, o mercado e as empresas. Avança-se, assim, rumo à criação de uma sociedade de cuidados, que coloque o cuidado no centro da vida e das práticas democráticas.
Quadro 3. Sociedade dos cuidados: do que estamos falando?
Refletir sobre essa questão foi pauta da XV Reunião Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe (CRM), realizada em 2022, em Buenos Aires, com o título "A sociedade dos cuidados: horizonte para uma recuperação sustentável da igualdade de gênero"[8]. A Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe (CRM) é um órgão subsidiário da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), composto pelos governos da região (representados pelos ministérios das mulheres ou outros órgãos correlatos dos países latino-americanos e caribenhos) e que se reúne periodicamente desde 1977, contando também com a participação de outros organismos do Sistema ONU, da sociedade civil e da academia. Em síntese, o Consenso de Buenos Aires, documento aprovado pelos governos da região na XV Reunião da CRM, preconiza um novo paradigma para o desenvolvimento econômico, social e ambiental, que tenha o cuidado no centro: a sociedade dos cuidados. Suas bases são a corresponsabilização, a sustentabilidade da vida e do planeta e a garantia de direito ao cuidado (a cuidar, ser cuidado e aos autocuidados), incorporando as perspectivas de gênero, interseccionalidade e interculturalidade nas políticas de cuidado. |
2.3. O cuidado como função social e como bem público
O cuidado deve ser entendido também a partir de sua função
social. Considerando que é por meio dele que se garante a sustentabilidade da
vida humana nas sociedades, sua gestão e provisão devem ser pensadas a partir
das necessidades sociais e da sua democratização, e não apenas de interesses
particulares ou meramente individuais. Em outras palavras, a provisão de
cuidados adequados e de qualidade não interessa apenas àquela pessoa que o
recebe, ou à sua família, preocupada com o bem-estar, a autonomia e a dignidade
de um ente querido. Sem essa provisão, a sociedade e as instituições não
funcionam; as empresas e a economia não funcionam.
Além disso - e na mesma direção - é importante
destacar que o trabalho de cuidados gera benefícios para a sociedade que
ultrapassam aqueles gerados para as pessoas que diretamente receberam o
cuidado. O trabalho de cuidar de uma criança, por exemplo, beneficia a criança
especificamente, mas gera também para sua família e para a sociedade
benefícios, uma vez que passam a contar com crianças com maior potencial e
capacidade de desenvolvimento integral. Isso faz do cuidado um bem público, ou
seja, ele produz valor social e econômico[9] que ultrapassa os
benefícios individuais e é indispensável ao funcionamento da economia e da
sociedade.
Quadro 4. Uma síntese dos conceitos apresentados
Cuidado |
Trabalho cotidiano de produção de bens e serviços necessários à sustentação e reprodução da vida humana, das sociedades e da economia e à garantia de bem-estar de todas as pessoas. Pode ser realizado de forma remunerada ou não remunerada, de maneira direta (com interação face-a-face) ou indireta (sem essa interação). Trata-se de um trabalho que envolve recorrência e possibilidade de compartilhamento. |
Organização Social dos cuidados |
É a forma como as famílias, o Estado, o mercado, as empresas e a comunidade se inter-relacionam para produzir cuidado e a forma como os domicílios e seus membros se beneficiam dele. |
Crise dos cuidados |
Desequilíbrio causado pela crescente demanda de cuidados, associada ao acelerado processo de envelhecimento da população - é a feminização desse envelhecimento -, e pela diminuição da oferta familiar de cuidados, devido a, dentre outros fatores, o aumento da inserção das mulheres no mercado de trabalho e a diminuição do número de pessoas por família. |
Política de cuidado |
Tipo de política pública que tem como objetivo a reorganização e o compartilhamento da responsabilização social pelos cuidados, por meio de um conjunto de iniciativas que objetivam atender as necessidades de quem demanda cuidados e de quem cuida. É por meio dela que se garante o direito humano ao cuidado - sendo este entendido como o direito a cuidar, a ser cuidado e ao autocuidado -, bem como a corresponsabilização de gênero (entre mulheres e homens, em sua diversidade) e social (entre as famílias, as comunidades, o Estado, o mercado e as empresas). |
Sociedade dos cuidados |
Novo paradigma para o desenvolvimento econômico, social e ambiental, que traz o cuidado para o centro da vida. Suas bases são a corresponsabilização, a sustentabilidade da vida e do planeta e a garantia de direito ao cuidado, incorporando as perspectivas de gênero, da interseccionalidade e da interculturalidade nas políticas públicas. Isso implica reconhecer a função social dos cuidados e, ainda, compreender o cuidado como um bem público |
3. Transformando o cuidado em objeto de política pública
O cuidado não é um problema público em si; é a sua
atual organização social que se projeta como um problema público que demanda
políticas públicas, uma vez que é desigual, injusta e insustentável, além de
marcada por desigualdades estruturais e interseccionais, que são por elas
reproduzidas. Por não ser percebida como um problema público, que demanda
respostas públicas e coletivas, a provisão familiar (e feminina) pelos cuidados
sobrecarrega quem cuida e compromete o acesso e a qualidade do cuidado
para quem recebe.
A definição do que se entende por uma política de
cuidado é, contudo, atravessada por complexidades, uma vez que o termo "cuidado"
é, como já mencionado anteriormente, também utilizado com significados diversos
por diferentes políticas públicas, a exemplo das de saúde, educação e
assistência social. Nesse sentido, é importante estabelecer uma demarcação do
que se entende por cuidado em cada uma dessas políticas, de modo a que seja
possível estabelecer objetivos e estratégias de atuação que se relacionem com o
objeto de cada uma delas, sem que essas se sobreponham ou conflitem, mas, ao
contrário, se somem e se articulem visando o objetivo maior de garantir atenção
às pessoas em todas as dimensões de suas vidas.
Nesse contexto, a Política Nacional de Cuidados não
tem a pretensão de abarcar a totalidade das questões sociais relacionadas aos
cuidados - que podem incluir desde o cuidado em saúde, até o cuidado com o meio
ambiente -, mas concentra-se naqueles aspectos relacionados ao trabalho de
cuidados, na forma como ele foi definido anteriormente neste documento
Assim, assumindo que cuidado é um trabalho, uma
necessidade e um direito, podemos compreender que as políticas de cuidado se
constituem em um tipo de política pública que tem como objetivo a reorganização
e o compartilhamento da responsabilização social pelos trabalhos cotidianos de
reprodução da vida e de garantia de bem-estar às pessoas. Estas políticas se
traduzem na oferta de serviços, benefícios, formação, regulação, dentre outras,
que buscam atender as necessidades de quem demanda cuidados e de quem cuida[10]. É por meio delas que se
busca efetivar o direito ao cuidado - sendo este entendido como o direito a
cuidar, a ser cuidado e ao autocuidado - bem como a corresponsabilização de
gênero (entre mulheres e homens, em sua diversidade) e social (entre as
famílias, as comunidades, o Estado, o mercado e as empresas).
Apesar do trabalho de cuidado ser essencial para a
sustentabilidade da vida humana, e, portanto, para o funcionamento da sociedade
e da economia, no caso do Brasil, a sua histórica desvalorização e
invisibilização coloca-o como um tema que ainda precisa ser afirmado na agenda
pública e política. Trata-se de um tema inovador, o que significa que existe,
no campo governamental, um conjunto de (in)definições a serem enfrentadas, que
vão desde o entendimento do próprio conceito, até os arranjos institucionais e
a estrutura de governança necessária para a construção de uma política que
esteja de acordo com as necessidades e demandas da sociedade.
É preciso considerar, ainda, que a Política Nacional
de Cuidados envolve, em grande medida, serviços, benefícios e programas já
existentes, em políticas e sistemas consolidados no país, como o Sistema Único
de Saúde (SUS), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e a rede de
educação pública, o que implica o desenvolvimento de uma política que parta de uma
abordagem intersetorial e interfederativa e que promova e assegure a
intersetorialidade e a integralidade, sem produzir sobreposições.
3.1. Tipologia de políticas de cuidados
As políticas de cuidado podem ser de diferentes tipos
e, como tal, classificadas em modelos diversos e variados[11] que podem ser agrupados
em cinco grandes categorias:
·
Serviços (e infraestrutura) de cuidados: referem-se,
majoritariamente, a serviços (públicos ou privados) direcionados às pessoas que
cuidam e que necessitam de cuidado, como centros-dia, residências inclusivas,
acompanhamento e cuidado domiciliar de pessoas idosas e com deficiência,
Instituições de Longa Permanência (ILPI) para pessoas idosas, casas para
cuidadoras, programas de formação, etc.
·
Tempo: que garantem o tempo de quem cuida para realizar essa
atividade, a exemplo das licenças de maternidade, paternidade, parentais e de
cuidados, ou para que as pessoas tenham tempo para usufruir do convívio
familiar;
·
Recursos/Benefícios: políticas de transferências de renda
para apoiar as pessoas que necessitam de cuidados e suas famílias no acesso e
no exercício do cuidado;
·
Regulação: abrange a regulamentação tanto das relações e
condições de trabalho das profissões de cuidado (ex. garantia de direitos
trabalhistas e previdenciários e proteção social às trabalhadoras domésticas
remuneradas e às cuidadoras e cuidadores remunerados de pessoas idosas e com
deficiência), quanto de serviços (a exemplo de educação e saúde ofertadas pelo
mercado privado); e
·
Transformação cultural:
iniciativas que fomentem uma ressignificação do cuidado como um
trabalho, uma necessidade, um direito e um bem público, assim como novas
práticas sociais de cuidado, contribuindo para uma organização social dos
cuidados mais justa, equitativa e sustentável (ex. campanhas de
conscientização, formação de meninos e homens para a paternidade responsável).
A figura a seguir sintetiza
essa tipologia e exemplifica cada um dos casos.
Figura 2. Tipologias de políticas públicas e exemplos.
4. A Política Nacional de Cuidados no Brasil: componentes e estratégias de ação
A partir do marco conceitual apresentado anteriormente e das experiências de políticas já em curso no Brasil, tornou-se possível avançar, no âmbito do GTI-Cuidados, na definição dos componentes que estruturam e organizam a Política Nacional de Cuidados no Brasil. São eles: os atores institucionais; os sujeitos de direito e os públicos beneficiários; e os princípios e as diretrizes que orientarão as ações que concretizarão a Política na vida cotidiana das pessoas.
4.1. Atores institucionais
Os
atores institucionais responsáveis pela oferta de cuidados são quatro:
1) O
Estado, por meio da garantia de direitos e efetivação de políticas públicas;
2) As
famílias, por meio do trabalho não remunerado de cuidado e dos vínculos
familiares;
3) O mercado e as empresas, por meio da oferta privada de serviços e
pelas formas de organização e relações do trabalho remunerado, que podem ser
mais ou menos favoráveis à conciliação entre o trabalho no mercado e às
responsabilidades familiares e de cuidado;
4) A comunidade e a sociedade civil
organizada, por meio da oferta privada sem fins lucrativos, relações de
trabalho não remunerado, ajudas, redes de solidariedade e ações solidárias.
Se
na atual organização social dos cuidados as famílias constituem os atores
proeminentes na provisão de cuidados, os objetivos de uma Política Nacional de
Cuidados envolvem a mudança desse cenário, trazendo para o centro o Estado como
indutor de uma nova organização social, mais igualitária e justa. Isso não
significa diminuir a importância das famílias na provisão dos cuidados, mas
diminuir a sobrecarga que sobre elas se abate atualmente, em especial sobre as
mulheres. Para isso, é necessário contar com políticas que apoiem famílias e as
mulheres que realizam trabalhos de cuidado. É importante, ainda, promover maior
igualdade na distribuição e responsabilização pela oferta de cuidados entre as
famílias e as outras pontas do "diamante dos cuidados", incluindo a
responsabilidade de gênero. Nesse sentido, a Política Nacional de Cuidados
busca ampliar o espaço na organização social dos cuidados daqueles atores hoje
menos presentes, tanto na esfera pública (Estado, mercado, empresas e sociedade
civil organizada), quanto na privada (no interior das famílias,
independentemente dos seus formatos ou arranjos familiares, estimulando a
corresponsabilização entre os gêneros).
4.2. Sujeitos de direito e público beneficiário
O cuidado na Política Nacional de Cuidados é entendido
como um direito humano universal. Isso significa que todas as pessoas têm
direito ao cuidado[12] (a cuidar, a ser cuidado
e ao autocuidado).
Esse direito universal, quando materializado por meio
de políticas públicas, deve ser compreendido a partir do princípio do universalismo
progressivo e sensível às diferenças. O conceito de universalismo
progressivo considera que, na impossibilidade de garantir de forma imediata o
acesso irrestrito às políticas de cuidados para todas as pessoas, por razões de
restrições de recursos e capacidades estatais, deve-se priorizar grupos sociais
com maiores necessidades para, progressivamente, ampliar esse alcance, até
abarcar a totalidade da população. Isso significa aplicar o princípio da
progressividade e, simultaneamente, o da não regressão, ou seja, grupos que já
foram incluídos no acesso aos direitos não podem perder essa condição.
Já o conceito de universalismo sensível a diferenças
aponta para a necessidade de levar em conta, de forma sistemática, as
desigualdades estruturantes - como gênero, raça, etnia, classe, idade,
deficiência e território, assim como seus entrecruzamentos e encadeamentos ao longo
do ciclo de vida das pessoas[13]. Esse conceito deve ser
aplicado tanto no diagnóstico da atual organização social dos cuidados no
Brasil, quanto nas políticas, programas e ações dirigidos à necessária
transformação. Nessa perspectiva, a Política Nacional de Cuidados deve
orientar-se por superar ativamente essas desigualdades, por meio de ações
afirmativas dirigidas a pessoas e grupos que vivenciam simultâneas e - muitas
vezes entrecruzadas - formas de desigualdade, discriminação e exclusão, com o
objetivo de romper barreiras de acesso às políticas públicas e atingir
efetivamente a sua universalidade.
Figura
3. O universalismo progressivo na Política Nacional de
Cuidados
Nesse sentido, se a Política Nacional de Cuidados
define e reconhece o cuidado como um direito humano, e, portanto, universal, o
princípio do universalismo progressivo e sensível a diferenças deve ser
efetivado no Plano Nacional de Cuidados, instrumento de operacionalização
da Política, por meio de um conjunto de ações, objetivos e metas, que deve
pautar-se por avanços progressivos no atendimento das necessidades de
cuidados, a partir de públicos prioritários.
A definição desses públicos tem como premissa o
reconhecimento de desigualdades estruturais, que constituem e são constituídas e
reproduzidas pela organização social injusta e desigual dos cuidados. Essas
desigualdades abrangem as relações de gênero, raça, classe, etnia,
território, idade e deficiência, e suas múltiplas intersecções. Assim,
diversos grupos da população (como por exemplo as mulheres negras e indígenas,
as jovens mulheres negras da periferia, as crianças indígenas e quilombolas,
entre muitos outros) sofrem, simultaneamente, múltiplas e agravadas formas de
desigualdade e discriminação, que se entrecruzam, se potencializam e se
encadeiam ao longo do ciclo de vida das pessoas. O reconhecimento e o
enfrentamento dessas desigualdades deve estar presente na definição dos
objetivos, eixos, metas, indicadores, ações e estratégias de gestão e implementação,
tanto da Política, quanto do Plano Nacional de Cuidados.
Figura 4. Desigualdades estruturais e interseccionais que constituem a organização social dos cuidados no Brasil
A partir dessa premissa, a Política Nacional de
Cuidados define seus públicos prioritários, que correspondem aos grupos
sociais que têm maiores necessidades de cuidado e estão sujeitos a maiores e
mais sistemáticas violações dos seus direitos, devido à atual organização
social desigual e injusta dos cuidados, seja como pessoas que cuidam ou como
pessoas que são cuidadas. Na perspectiva do universalismo progressivo e
sensível às diferenças, esses são os públicos que primordialmente serão
destinatários da Política Nacional e, especialmente, do Plano, em uma primeira
etapa de formulação e implementação.
Foram definidos quatro públicos prioritários que
envolvem, por um lado, as pessoas que cuidam e, de outro, aquelas que têm
necessidades de cuidado. São eles: 1) Crianças e adolescentes (com especial
atenção à 1ª infância); 2) Pessoas idosas que necessitam assistência, apoios e
auxílios para o desenvolvimento das atividades básicas e instrumentais da vida
diária; 3) Pessoas com Deficiência que necessitam assistência, apoios e
auxílios para o desenvolvimento das atividades básicas e instrumentais da vida
diária; e 4) Trabalhadoras e trabalhadores do cuidado, remuneradas/os e não
remuneradas/os.
Figura 5. Os públicos prioritários da Política Nacional de Cuidados
A Política Nacional prevê, ainda, vinculado aos públicos prioritários, grupos com necessidades específicas ou que demandam atenção a distintas formas de vulnerabilidade, discriminação ou exclusão. Trata-se de grupos sociais que possuem especificidades quanto às formas e necessidades de cuidados (considerando quem cuida e quem é cuidado) e/ou situações particulares de vulnerabilidade e/ou discriminação ou exclusão que produzem especial violação do direito aos cuidados. Esses grupos serão sinalizados na Política Nacional como de especial atenção na formulação e implementação de Plano, programas e projetos. São eles:
Figura 6. Os públicos com atenção especial na Política Nacional de Cuidados[14]
4.3. Princípios e diretrizes
A Política Nacional de Cuidados, como qualquer outra política,
estrutura-se a partir de um conjunto de princípios e diretrizes que devem
orientar a ação do Estado brasileiro para que o direito ao cuidado, em todas as
suas dimensões, seja efetivado, e que uma nova organização social dos cuidados,
mais justa, igualitária e sustentável possa ser promovida. Uma vez que a
Política se traduza em um plano de ações, este conjunto de orientações deve,
necessariamente, pautar a formulação, a implementação, o monitoramento, a
revisão e a avaliação da ação pública em todas as suas esferas. São eles:
o Universalidade do
direto, ou seja, todas as pessoas têm direito ao cuidado, sendo esse entendido
como o direito a cuidar, ser cuidado e auto cuidar-se. A universalidade se
refere tanto à dimensão do acesso, quanto à da qualidade, o que significa que
as pessoas não apenas têm direito ao cuidado, mas devem ter, igualmente, acesso
ao cuidado de mesma qualidade.
o Equidade
no acesso ao direito ao cuidado, isto é, para que todas as pessoas tenham seu
direito ao cuidado assegurado, é necessário não apenas o acesso a ações
universais de cuidado, mas também que suas necessidades específicas e
características particulares sejam consideradas, incorporando perspectivas de
gênero e antirracista, dentre outras. Baseia-se na ideia, portanto, de que é
imprescindível reconhecer e enfrentar as desigualdades sociais e considerar a
diversidade e as diferenças entre as pessoas e grupos sociais para que o
princípio da universalidade do direito ao cuidado se efetive. É, nesse sentido,
elemento indispensável para o alcance da justiça social.
o Corresponsabilidade social e de gênero pela provisão do cuidado, ou seja, a responsabilidade
por prover cuidado deve ser compartilhada e distribuída entre todos os atores
sociais que possuem capacidade de prover bem-estar. Isso significa, por um
lado, que deve ser responsabilidade do Estado (nas três esferas da federação),
famílias, mercado, empresas e comunidade, valendo destacar que nem todas estas
instituições possuem os mesmos deveres, cabendo ao Estado papel central no
processo de promover a reorganização social dos cuidados e de garantia da
universalidade deste direito. Por outro lado, significa que esta
responsabilidade deve ser compartilhada de forma equitativa entre homens e
mulheres em toda sua diversidade, de forma a transformar a injusta e desigual
divisão sexual do trabalho vigente.
o Respeito à dignidade e aos direitos humanos, reconhecendo-se que todas as pessoas possuem valor
intrínseco à sua condição humana e são titulares de direitos inalienáveis,
indivisíveis e interdependentes. Isso significa que toda e qualquer ação
(pública, privada, comunitária ou familiar) de provisão de cuidado deve
pautar-se pelo respeito à integridade física, psíquica e moral das pessoas e ao
seu direito de ser tratada dignamente.
o Não discriminação no acesso ao direito ao cuidado, ou seja, não deve haver qualquer
distinção, exclusão ou restrição baseada em raça, cor, etnia, sexo, identidade
de gênero, orientação sexual, deficiência,
religião, idade, orientação política, origem social ou em qualquer outra
dimensão da constituição das identidades pessoais e de grupo que tenha por
efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento no
acesso aos serviços de cuidados ofertados, sejam eles públicos, privados,
familiares ou comunitários. É um elemento essencial para que o princípio do
respeito à dignidade e aos direitos humanos seja efetivado.
o Não discriminação no acesso ao direito ao cuidado, ou seja, não deve haver qualquer
distinção, exclusão ou restrição baseada em raça, cor, etnia, sexo, identidade
de gênero, orientação sexual, deficiência,
religião, idade, orientação política, origem social ou em qualquer outra
dimensão da constituição das identidades pessoais e de grupo que tenha por
efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento no
acesso aos serviços de cuidados ofertados, sejam eles públicos, privados,
familiares ou comunitários. É um elemento essencial para que o princípio do
respeito à dignidade e aos direitos humanos seja efetivado.
o Promoção da autonomia, o que significa que a provisão de cuidado deve
pautar-se sempre pelo respeito à autodeterminação das pessoas, ou seja, pela
garantia de que possam decidir por si mesmas sobre seus projetos de vida e
interesses particulares, bem como de serem protagonistas dos processos de
transformação social e tomada de decisões. A autonomia, contudo, não se refere
a um princípio de natureza individual, mas, ao contrário, pauta-se por uma
dimensão relacional, uma vez que mesmo pessoas com elevado nível de autonomia
constroem seus projetos de vida e decisões a partir das relações que
estabelecem com as outras. Nesse sentido, reforça-se a ideia da interdependência
intrínseca entre as pessoas, ou seja, a ideia de que nenhuma pessoa é
completamente autônoma em nenhum momento ou condição de sua vida.
o Anticapacitismo,
compreendido como enfrentamento à opressão baseada no ideal de um corpo tido
como normal, que exclui as pessoas com deficiência. Adicionalmente, é
necessário a garantia da acessibilidade para a promoção da igualdade de
condições, por meio da remoção das barreiras de natureza atitudinal,
arquitetônica, metodológica, programática, instrumental, entre outras, que
restringem a participação efetiva das pessoas com deficiência na sociedade.
o Integralidade do cuidado, isto é, as políticas públicas de provisão dos
cuidados devem considerar as pessoas como um todo, atendendo às suas demandas e
necessidades de cuidado em todas as suas dimensões - não apenas como
beneficiárias, mas inclusive como provedoras de cuidado - e considerando o
contexto social, familiar e cultural no qual estão inseridas.
o Participação e controle social, entendidos como o direito da sociedade civil de
tomar parte e influenciar nos processos de formulação, implementação,
fiscalização e avaliação das políticas de cuidado, bem como o exercício do
controle social na oferta de serviços e de informações sobre o tema. Inclui
também garantir o reconhecimento dos saberes e das diferentes práticas
relativas ao cuidado existentes na sociedade brasileira, assim como das
experiências dos movimentos e organizações sociais.
o Interseccionalidade refere-se ao reconhecimento da existência de diversos eixos de
opressão, exclusão e subordinação (de classe, gênero, raça, etnia, idade,
território, deficiência, status migratório) que não podem ser considerados
isoladamente, mas, ao contrário, devem ser vistos como mutuamente constitutivos
e operando simultaneamente na estruturação e reprodução das desigualdades
sociais e da experiência de vida das pessoas e grupos sociais. Esse complexo
entramado de desigualdades, opressões e exclusão deve ser considerado em todo o
processo de construção e implementação das políticas de cuidado, de forma a
garantir o acesso universal ao direito ao cuidado e o respeito à dignidade
humana e contribuir à superação das desigualdades estruturais que caracterizam
a sociedade brasileira.
o Transversalidade refere-se à estratégia de incorporar no conjunto das políticas públicas
temas que, pela sua complexidade, devem ser tratados de forma multissetorial,
envolvendo um amplo conjunto de órgãos governamentais em diferentes esferas da
federação. No caso das políticas de cuidados, a transversalidade tem um duplo
objetivo: incorporar o tema dos cuidados às políticas setoriais - como
educação, saúde, assistência social, trabalho, previdência, desenvolvimento
econômico e produtivo, entre outras -, mas também incorporar ao conjunto das
políticas de cuidados as dimensões de gênero, raça, etnia, classe, ciclo de
vida, deficiência e território e suas múltiplas intersecções.
o Intersetorialidade da política de cuidados corresponde a um método de ação na esfera pública que
busca fortalecer a articulação e a complementaridade de diversas formas de ação
e de políticas setoriais, reconhecendo que a natureza dos fenômenos sociais
demanda, necessariamente, a construção de políticas que articulem mais de uma
área de atuação. Pressupõe, nesse sentido, decisões políticas articuladas e
ações setoriais que se complementam para resolver problemas complexos e
multidimensionais. No caso das políticas de cuidados, significa a necessária
interação entre diversos setores no nível federal e entre os diferentes níveis
da federação para garantir a integralidade do direito ao cuidado da população.
o Interculturalidade nas políticas de cuidados significa reconhecer e considerar a interação
horizontal e sinérgica entre culturas diferentes nos processos de formulação e
execução de políticas. O reconhecimento da interculturalidade na construção de
políticas de cuidados traz luz para as diferentes formas como o cuidado é
compreendido enquanto ética, prática e trabalho em diferentes culturas, ou
seja, permite diferentes leituras e interpretações do objeto da política,
contribuindo para a construção de uma estratégia de ação que, de fato, alcance
ao conjunto da população.
o Antirracismo, implica o reconhecimento de que a formação colonial e escravista da
sociedade brasileira é uma herança que ainda hoje estrutura as dinâmicas
econômicas, políticas, culturais, e faz com que mulheres racializadas, em
especial negras e indígenas, historicamente ocupem as posições de maior
vulnerabilidade no acesso ao cuidado. Assim, o antirracismo deve pautar as
ações que assegurem o direito ao cuidado, seja na possibilidade de ser cuidado
com dignidade, de cuidar tendo garantida a integralidade dos direitos
trabalhistas e previdenciários, e de ter a sua humanidade legitimada pela
prerrogativa de auto cuidar-se.
5. Considerações Finais
Múltiplas são as definições de
cuidados e políticas de cuidados. Para fins da Política Nacional de Cuidados, o
cuidado é compreendido como um trabalho cotidiano de produção de bens e
serviços necessários à sustentação e reprodução da vida humana, das sociedades
e da economia e à garantia de bem-estar de todas as pessoas.
As políticas de cuidados são políticas públicas cujo
objetivo é a reorganização e o compartilhamento da responsabilização social
pelos cuidados, por meio de um conjunto de iniciativas que visam atender as
necessidades de quem demanda cuidados e de quem cuida. É por meio delas que o
Estado se torna corresponsável e indutor da construção de uma nova organização
social de cuidados, que envolva não apenas a família, mas também o mercado, as
empresas, a comunidade e a sociedade civil, e que seja constituída pela
igualdade, inclusão, justiça e democracia.
[1] Participam também do GTI-Cuidados, como convidados permanentes, as seguintes instituições do Sistema da Nações Unidas: Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL); a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (Onu Mulheres); a Organização Internacional do Trabalho (OIT); e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
[2] Última atualização de integrantes efetuada em 30 de outubro de 2023.
[3] A Câmara de Financiamento foi criada, mas ainda não instalada. Última atualização dos dados efetuada em 30 de outubro de 2023.
[4] Importante destacar que esse tipo de trabalho não se confunde com os casos de trabalho doméstico forçado, oriundos de situações análogas à escravidão.
[5] É importante considerar que a interdependência é uma condição da vida humana. Ou seja, nenhuma pessoa, em nenhuma fase da vida e em nenhuma condição, é absolutamente autônoma.
[6] Ver, por exemplo, os dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2023: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/0a9afaed04d79830f73a16136dba23b9.pdf.
[7] https://brazil.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/swop2023-ptbr-web.pdf.
[8] Disponível em: Compromiso de Buenos Aires (cepal.org) e https://conferenciamujer.cepal.org/15/es/documentos/la-sociedad-cuidado-horizonte-recuperacion-sostenible-igualdad-genero
[9] As análises sobre uso do tempo permitem mensurar a contribuição do trabalho doméstico e de cuidado não remunerado para as economias. Como observa a CEPAL (2022), nos países em que é calculada essa contribuição, estima-se que o trabalho doméstico e de cuidados não remunerado produz bens e serviços que equivalem a um montante de 20 a 30% do PIB, dos quais as mulheres respondem por cerca de 75% do valor total. Clique aqui.
[10] A figura 2 apresenta um conjunto de exemplos dessas políticas em suas diversas categorias.
[11] Vide: Onu Mulheres e CEPAL. Rumo à construção de sistemas integrais de cuidado na América Latina e no Caribe: elementos para sua implementação. 2022. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2022/12/rumo_construcao_sistemas_integrais_cuidados.pdf. Vide: Batthyany, Karina. Miradas latinoamericanas a los cuidados. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; México DF: 2020. Disponível em: https://www.clacso.org/wp-content/uploads/2020/12/Miradas-latinoamericana.pdf
[12] O processo de reconhecimento do cuidado enquanto direito na América Latina inicia-se em 2007, na X Reunião da Conferência Regional da Mulher da América Latina e Caribe, em Quito, quando foi enunciado como tal, em três dimensões: o direito a cuidar, o direito a ser cuidado e o direito ao autocuidado (Pautassi, 2018). Desde então, sucessivos países da região têm incorporado o direito ao cuidado enquanto uma dimensão dos direitos humanos nas suas leis, constituições e políticas públicas. A XV Reunião da Conferência Regional da Mulher da América Latina e Caribe, realizada em Buenos Aires, em 2022, reafirmou o direito ao cuidado enquanto um direito humano nessa tripla dimensão do conceito (Cepal, 2022). Pautassi, L. El cuidado: De cuestión problematizada a derecho. Un recorrido estratégico, una agenda en construcción. In: Onu Mujeres. El trabajo de cuidados: una cuestión de derechos humanos y políticas públicas. Cidade do México: Onu Mujeres 2018. CEPAL. La sociedad del cuidado: horizonte para una recuperación sostenible con igualdad de género. Santiago do Chile: Cepal, 2022.
[13] Vide, nesse sentido: Desarrollo social inclusivo: una nueva generación de políticas para superar la pobreza y reducir la desigualdad en América Latina y el Caribe. Santiago do Chile: CEPAL (2016). Disponível em: https://www.cepal.org/es/publicaciones/39100-desarrollo-social-inclusivo-nueva-generacion-politicas-superar-la-pobreza. Vide, ainda, A Agenda Regional de Desenvolvimento Social Inclusivo. Santiago do Chile: CEPAL (2020). Disponível em: https://www.cepal.org/pt-br/node/51160
[14] Observa-se, em relação a povos e comunidades tradicionais, o Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
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