O Município e o(a) Prefeito(a) no Ambiente Constitucional
Prestação de Contas de Verbas Federais em Transição de Mandatos Municipais.
A perspectiva do Gestor recém-eleito.
A partir de 1º de janeiro de 2021, o vencedor no pleito eleitoral de 2020 tem um encontro marcado com a realidade da administração municipal e poderá, enfim, arregaçar as mangas e colocar em prática seu plano de governo. Na verdade, existem etapas que precisam ser queimadas antes de botar a mão na massa. O novo administrador precisará levantar as informações indispensáveis para que tenha a exata noção sobre em que condições receberá a gestão municipal. É altamente recomendável que esse levantamento seja feito o quanto antes, ainda durante o processo de transição de governos, pois obras, serviços, aquisições, e todas as ações administrativas herdadas do governo anterior que ainda estiverem em andamento deverão ser finalizadas pelo mandatário recém-eleito. Importante ressaltar: o resultado da atuação do Estado não pertence a qualquer governante, mas sim, à coletividade e, por esse motivo, em nome dela e no seu interesse o gestor público deve ter atenção às políticas públicas.
A sociedade não pode ficar refém de transições eleitorais com mudanças de poder sem observância dos deveres impostos aos gestores públicos. É importante que o interesse público esteja sempre em primeiro plano, sempre respeitando-se os princípios da transparência e da continuidade administrativa.
Assim, é importante dizer que nas prestações de contas de verbas da União transferidas para estados e municípios, com vistas à execução de política pública de forma descentralizada, em que os recursos são recebidos e geridos pela gestão que se despede, o vencimento do prazo para a apresentação da prestação de contas adentra o mandato subsequente.
Nas prestações de contas em transição de mandatos, quando o gestor que administra os recursos não é o mesmo que tem o dever de prestar contas, não é difícil imaginar as contestações que tal situação pode gerar, sobretudo num país em que essas transições, em geral, não ocorrem com a devida transparência e com o registro das condições nas quais as prestações de contas pendentes de comprovação são deixadas de uma gestão para outra.
Os problemas surgem quando a prestação de contas não é apresentada no prazo previsto. Nesse caso, instaura-se um processo de tomada de contas especial, motivado pela omissão no dever de prestar contas, com a convocação de ambos os gestores (antecessor e sucessor) para apresentarem explicações perante os órgãos de controle. Tem-se, de um lado, a defesa do antecessor que se escora no fato de que o vencimento do termo final para a prestação de contas recaiu no mandato subsequente e, portanto, caberia ao sucessor responder por tal obrigação. Argumenta ainda que, mesmo tendo envidado esforços para apresentar as contas, por iniciativa própria, não obteve êxito porque o prefeito sucessor, por desavenças políticas, não lhe entregou a documentação exigida para tanto. Por outro lado, o sucessor comumente alega que a gestão anterior não deixou, nos arquivos da prefeitura, a documentação necessária e adequada para que ele pudesse apresentar a prestação de contas, motivo pelo qual não teria sido possível desincumbir-se do seu dever no prazo legal.
Ocorre que, com base apenas nas alegações dos gestores, nem sempre é fácil identificar com clareza qual dos agentes deu causa à configuração da omissão das contas ou mesmo se ambos são responsáveis.
Na situação que se coloca, ainda que não tenha gerido as verbas federais repassadas, cumpre ao sucessor apresentar a prestação de contas, no prazo legal. Isso porque a obrigação primária de prestar contas dos recursos federais transferidos ao município recai sobre o prefeito em cuja gestão se verifica a data prevista para fazê-lo (Acórdão 3576/2019-TCU-2ª Câmara).
Ademais, o prefeito sucessor poderá ser condenado a ressarcir prejuízo ao erário, em razão da paralisação indevida da execução de ajuste firmado pela gestão que o antecedeu, uma vez comprovada a sua omissão em concluir obra iniciada e não acabada pelo seu antecessor, havendo recursos públicos na conta específica da avença para a conclusão do objeto pactuado, deixando a obra “abandonada” e sem proveito para a população, visto que tal forma de proceder representa desperdício de recursos públicos e contraria o princípio da continuidade administrativa, segundo jurisprudência pacífica do TCU (Acórdão 2900/2012-Primeira Câmara, Acórdão 3067/2019-Segunda Câmara, Acórdão 4828/2018-Segunda Câmara, Acórdão 6363/2017-Segunda Câmara, Acórdão 10968/2015-Segunda Câmara, entre outros).
Todavia, se o sucessor ficar impossibilitado de prestar contas, em razão da inexistência de documentos nos arquivos da prefeitura que comprovem a aplicação dos recursos federais integralmente geridos pelo seu antecessor, o TCU reconhece a possibilidade de afastamento da responsabilidade do gestor, no caso de terem sido adotadas providências ao resguardo do patrimônio público (Acórdãos 1541/2008-TCU-2ª Câmara, 2773/2012-TCU-1ª Câmara, 3039/2011-TCU-2ª Câmara, entre outros). Tal orientação decorre do Enunciado da Súmula 230 do TCU, in verbis (grifamos):
“Compete ao prefeito sucessor apresentar a prestação de contas referente aos recursos federais recebidos por seu antecessor, quando este não o tiver feito e o prazo para adimplemento dessa obrigação vencer ou estiver vencido no período de gestão do próprio mandatário sucessor, ou, na impossibilidade de fazê-lo, adotar as medidas legais visando ao resguardo do patrimônio público.
Dito de outro modo, o sucessor poderá ficar isento de responsabilidade, se demonstrar a adoção de medidas efetivas visando ao resguardo do patrimônio público, por exemplo, por meio de solicitação de instauração de TCE, de interposição de ação civil pública, de ação de ressarcimento, de representação ao Ministério Público ou de qualquer outra medida capaz de buscar a reparação do patrimônio público (Acórdãos 3642/2012-TCU-2ª Câmara, 6295/2010TCU-1ª Câmara, 1313/2010-TCU-1ª Câmara, 1080/2010-TCU-2ª Câmara).”
Contudo, frisa-se que, apesar de a adoção de medida de resguardo ao erário pelo sucessor ter o a possibilidade de se suspender a inadimplência do ente beneficiário, não deve acarretar automaticamente a exclusão de sua responsabilidade pela omissão no dever de prestar contas, sem que se faça acompanhar de esclarecimentos quanto às providências administrativas por ele efetivamente adotadas no sentido de obter os documentos relativos à prestação de contas, de forma a demonstrar que, à época do vencimento do prazo para a prestação de contas, ele (sucessor) dedicou os esforços que se esperavam de um gestor diligente para a reunião da mencionada documentação, mas encontrou dificuldades concretas que o impediram de prestar contas, nos termos do que dispõe art. 26-A, §§ 7º ao 9º, da Lei 10.522/2002:
Art. 26-A. (...)
§ 7º Cabe ao prefeito e ao governador sucessores prestarem contas dos recursos provenientes de convênios, contratos de repasse e termos de parcerias firmados pelos seus antecessores.
§ 8º Na impossibilidade de atender ao disposto no § 7º, deverão ser apresentadas ao concedente justificativas que demonstrem o impedimento de prestar contas e solicitação de instauração de tomada de contas especial.
§ 9º Adotada a providência prevista no § 8º, o registro de inadimplência do órgão ou entidade será suspenso, no prazo de até 48 (quarenta e oito) horas, pelo concedente.
Dito de outra maneira, para que o prefeito sucessor tenha afastada a sua responsabilidade pela não entrega da prestação de contas no prazo devido, ele deverá satisfazer, ao mesmo tempo, duas condicionantes:
a) adotar medidas voltada para o resguardo do patrimônio público; e
b) demonstrar a impossibilidade de prestar contas dos recursos geridos pelo antecessor.
Tal exigência já vinha sendo sinalizada pela jurisprudência do TCU, o que culminou, recentemente, com a aprovação da Instrução Normativa TCU 88/2020 (que inclui os itens 9.A e 9.B ao texto da Instrução Normativa TCU 71/2012), cuja redação do parágrafo único do item 9.B não deixa dúvida sobre as medidas que devem ser adotadas pelo gestor sucessor, com vistas a elidir a sua responsabilidade pela omissão em tela, in verbis:
Art. 9.B. Quando o período de gestão integral dos recursos não coincidir com o mandato em que ocorrer o vencimento da prestação de contas, havendo dúvidas sobre quem deu causa à omissão, antecessor e sucessor serão notificados para recolher o débito, prestar contas ou apresentar justificativas sobre a omissão, o primeiro por supostamente não ter deixado a documentação necessária para que o sucessor pudesse prestar contas e o segundo por ter descumprido o dever de apresentar a prestação de contas no prazo devido.
Parágrafo único. O sucessor poderá se eximir da responsabilidade sobre a omissão se, cumulativamente, demonstrar a adoção de medida legal de resguardo ao patrimônio público e apresentar justificativas que demonstrem a impossibilidade de prestar contas no prazo legal, acompanhadas de elementos comprobatórios das ações concretas adotadas para reunir a documentação referente às contas.
Em conclusão, a fim de diminuir possíveis transtornos resultantes de uma transição de governo mal realizada, recomenda-se fortemente ao gestor público que inicia seu mandato à frente do Executivo municipal que instaure procedimento formal para verificar se toda documentação relativa às transferências federais pendentes de prestação de contas foram deixadas nos arquivos da prefeitura, de forma que seja possível identificar com clareza aquele que deve responder por eventuais problemas ou omissões nas prestações de contas. Do contrário, quando instado pelos órgãos de controle para se manifestar sobre as prestações de contas de transferências federais geridas pelo mandatário anterior, mas cujo vencimento do prazo ocorrer no mandato subsequente, o sucessor que se encontre impossibilitado de prestar contas, em função da ausência de documentação nos arquivos da prefeitura, supostamente não deixada pelo seu antecessor, terá que se submeter ao ônus comprobatório de que trata o art. 9.B, parágrafo único, da Instrução Normativa TCU 71/2012, com vistas a ter a sua responsabilidade elidida em sede de processo de tomada de contas especial.
Portanto, o processo de transição de governos, além de servir como marco crucial de definição de responsabilidades, evidencia o espírito público dos gestores envolvidos, em que possíveis adversidades políticas são deixadas momentaneamente de lado em prol da população, a fim de que não haja descontinuidade na execução das políticas públicas de interesse mútuo dos governos locais e federal, como também possibilitar o adequado exercício do controle, de forma mais republicana possível, sem acarretar transtornos desnecessários para a Administração Pública.
A Organização Governamental Brasileira e a Competência Municipal.
O município integra a organização governamental brasileira, junto com a União, os estados e o Distrito Federal. Todos são autônomos entre si, porém possuem atuação restrita aos limites dispostos no texto constitucional.
A distribuição de competências entre as esferas de governo, tal como prevista na Constituição, segue o esquema apresentado no quadro a seguir.
UNIÃO |
GERAL |
---|---|
Estados |
Regional |
Municípios |
Local |
Distrito Federal |
Regional + Local |
O município possui competências que dizem respeito ao interesse local, o que significa que aqueles assuntos que o afetam estritamente serão sempre de sua responsabilidade. São exemplos os serviços de pavimentação de vias, limpeza urbana e transporte urbano.
Por outro lado, há competências comuns ou compartilhadas que são, ao mesmo tempo, de responsabilidade da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Estas devem ser exercidas de forma cooperativa.
Vale assinalar que, mesmo nesses casos, o município possui papel relevante, pois atua em conjunto com a União e com o estado nas áreas de saúde, educação, cultura e patrimônio histórico, proteção do meio ambiente, fomento da produção agropecuária, melhoria das condições de habitação e saneamento básico, bem como no combate à pobreza e suas causas, entre outras.
A Constituição prescreve que, para o exercício pleno dessas competências comuns, leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
O(A) prefeito(a) precisa conhecer a organização federal e estadual para identificar os órgãos e entidades com os quais poderá buscar parcerias para o exercício de suas competências.
Governo Federal
A estrutura do Governo Federal é composta por ministérios e outros órgãos e entidades, cada um com atribuições específicas conforme o setor em que atua. Assim, há políticas públicas próprias de cada órgão e outras que são executadas de forma transversal, ou seja, por mais de um ministério. Muitas dessas políticas são implementadas em parceria com os estados e municípios. Nesses casos, é conveniente saber identificar quais políticas públicas estão ligadas a cada ministério ou a outros órgãos e entidades federais.
As páginas na internet dos órgãos do Governo Federal são fontes de informação importantes. Nelas, pode-se encontrar dados a respeito de seus programas, de sua estrutura, dos ocupantes dos cargos de direção, chefia e assessoramento, bem como de outros subsídios de utilidade para o município. A página da Presidência da República também possui informações úteis e, ao mesmo tempo, permite acessar outras fontes de interesse para o município, tais como a que reproduz a legislação federal, a estrutura da Presidência, os ministros de estado, as notas oficiais, a agenda do presidente e as principais notícias do Governo Federal.
O Portal Federativo também é ferramenta essencial de consulta e informação. Por meio dele, podem ser acessados diversos serviços.
Governo Estadual
O Brasil possui 26 estados e o Distrito Federal, cada um organizado segundo suas características e interesses. Essa organização é encontrada na legislação de cada estado, em que é possível saber quais são os principais órgãos e suas atribuições. O(A) prefeito(a) deve buscar informações a esse respeito e sobre outros temas que lhe interessam, como especificidades da legislação tributária e organização judiciária, nas páginas da internet dos estados.
O Governo Municipal
O município possui lei orgânica própria, elaborada pela Câmara Municipal, com observância dos princípios enumerados na Constituição Federal e na Constituição Estadual. Nessa lei encontram-se dispositivos sobre atribuições dos poderes Legislativo e Executivo municipal, competências e procedimentos administrativos, entre outros temas relevantes.
É fundamental que o(a) prefeito(a) conheça as competências do município listadas na Constituição Federal e na Lei Orgânica do Município- LOM, quais sejam:
Prestar serviços públicos de interesse local; |
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Manter programas de ensino e atendimento à saúde, esses em cooperação com a União e o estado; |
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Promover adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, e proteger o patrimônio histórico-cultural e ambiental; |
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Regulamentar, conceder, permitir ou autorizar os serviços de saneamento básico e transporte, seja ele coletivo, de táxi ou por meio de aplicativos; |
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Organizar e manter os serviços de fiscalização necessários ao exercício do seu poder de polícia administrativa; |
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Instituir e arrecadar os tributos de sua competência; |
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Criar, organizar e suprimir distritos. |
Relações intergovernamentais
A Constituição de 1988 desenhou o novo pacto federativo, promovendo a descentralização, fortalecendo o município como ente federativo e priorizando a atuação cooperativa no campo das relações intergovernamentais. Essas relações podem se dar de forma vertical, entre níveis diferentes de governo, ou horizontal, entre governos de um mesmo nível. As relações intergovernamentais não se restringem à distribuição de recursos públicos; possuem também caráter técnico-administrativo e político-institucional que lhes conferem papel relevante no ordenamento do sistema. É possível realizar diversas parcerias entre os entes no melhor interesse da população local.
As relações verticais entre as três esferas de governos devem ser complementadas por relações horizontais, sejam entre estados ou entre municípios. A cooperação em ambas as direções contribui para melhor prover os direitos de cidadania, prestar serviços à população e promover o desenvolvimento de forma integrada, em decorrência do trabalho conjunto.
Nos estados da Federação, a criação de instrumentos de articulação intergovernamental não é somente uma necessidade, mas condição estruturante, em função da recorrente demanda por comunicação, cooperação e colaboração entre governos autônomos e, ao mesmo tempo, interdependentes.
Por isso, a nossa Constituição, sobretudo quando trata da ordem social, deixa nítida a intenção de promover a cooperação intergovernamental, notadamente no que diz respeito à saúde, à educação, ao meio ambiente, à assistência social, ao saneamento e à habitação de interesse social. Tais políticas são hoje objeto de legislação específica que determina bases descentralizadas e participativas para sua organização em sistemas federativos, distribuindo a função entre as esferas governamentais.