A transição
A Transição
Passo a passo da transição republicana
Em tempos de pandemia, como a que atinge o país neste momento, é natural que a atenção dos gestores públicos esteja voltada para as ações de enfrentamento à crise sanitária e para a mitigação de seus impactos sobre a atividade econômica. Em relação aos governantes municipais, ante a proximidade do encerramento de seus mandatos neste ano, mostra-se especialmente importante a observância de um conjunto de regras fiscais e eleitorais específicas para este último período de gestão. Em particular, ressalta-se o cuidado que deve ser dispensado às prestações de contas de verbas federais em transição de mandatos, ou seja, nos casos em que os recursos da União foram repassados à atual gestão municipal, por meio de convênios, programas, termos de compromisso, contratos de repasse ou outro instrumento congênere, cujo vencimento do prazo para prestação de contas recairá no mandato subsequente.
A título de exemplo, menciona-se o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), cujas regras impõem que as administrações municipais prestem contas até 15 de fevereiro do exercício subsequente ao repasse, cabendo ao Conselho de Alimentação Escolar – CAE emitir o parecer conclusivo sobre a prestação de contas em até 60 dias (Resolução CD/FNDE 26/2013 e na Resolução CD/FNDE 22/2014).
Conforme se verificará nesse texto, as recomendações propostas para aquele que se despede da chefia do Executivo Municipal referem-se a medidas administrativas simples que, se adotadas, na forma e no prazo devidos, podem evitar futuros transtornos ao gestor público em final de mandato resultantes de possíveis condenações nas esferas administrativa, civil, criminal e eleitoral.
Pois bem, nas prestações de contas em transição de mandatos, quando o gestor que administra os recursos não é o mesmo que tem o dever de prestar contas, não é difícil imaginar as contendas que tal situação pode gerar, sobretudo num país em que as transições de governo ocorrem, algumas vezes, sem a devida transparência e sem o registro das condições nas quais as prestações de contas pendentes de comprovação são deixadas de uma gestão para outra.
Os problemas surgem quando a prestação de contas não é apresentada no prazo estabelecido. Nesse caso, instaura-se um processo de tomada de contas especial, fundado na omissão do dever de prestar contas[1], com a convocação de ambos os gestores (antecessor e sucessor) para apresentarem suas explicações perante os órgãos de controle[2]. Tem-se, de um lado, a defesa do antecessor que se escora no fato de que o vencimento do termo final para a prestação de contas recaiu no mandato subsequente e, portanto, caberia ao sucessor responder por tal obrigação. Alega por vezes que, mesmo tendo envidado esforços para apresentar a prestação de contas por iniciativa própria, não obteve êxito porque o prefeito sucessor, por desavenças políticas, não lhe entregou a documentação necessária para tanto. Por outro lado, o sucessor argumenta que o antecessor não deixou, nos arquivos da prefeitura, a documentação necessária e adequada à apresentação da prestação de contas, motivo pelo qual não foi possível desincumbir-se do seu dever no prazo legal.
Ocorre que, com base apenas nas alegações dos gestores, nem sempre é fácil identificar com clareza qual dos citados agentes deu causa à configuração da omissão das contas, ou mesmo se ambos são responsáveis.
Vê-se, portanto, que a prestação de contas em transição de mandatos apenas será bem sucedida se houver cooperação de ambos os gestores, cada um respondendo pela parte que lhe é devida quanto à necessária satisfação à sociedade sobre o emprego dos recursos públicos confiados à administração municipal. O que não se admite é a sociedade ficar refém de transições eleitorais em que a alternância no poder seja realizada de maneira não republicana ou sem observância dos deveres impostos aos gestores públicos, tais como aqueles derivados do princípio da transparência e da continuidade administrativa.
Nesse contexto, cumpre ao prefeito atual (antecessor) disponibilizar toda a documentação necessária ao que lhe sucede, para fins de elaboração e entrega tempestiva da prestação de contas pela próxima gestão. Pela lógica, é de total interesse do antecessor que a prestação de contas seja entregue de forma completa, contendo todos os documentos exigidos pela legislação, até porque, se não for assim, no caso de omissão, ele é quem responderá pelo dano resultante da não comprovação da regular aplicação das verbas federais repassadas, na condição de efetivo gestor dos recursos. Já o sucessor omisso poderá ter as contas julgadas irregulares e ser sancionado com multa, mas não arcará com o ressarcimento ao erário (condenação em débito). Não é outra a jurisprudência do TCU, conforme se verifica nos julgados abaixo selecionados:
Excluem-se da responsabilidade do prefeito sucessor os débitos relacionados a recursos geridos integralmente por seu antecessor, sem prejuízo da aplicação de multa ao sucessor quando este for omisso em prestar, no prazo devido, as contas referentes aos atos de seu antecessor (Acórdão 6.402/2015-TCU-2ª Câmara, Rel. Ministra Ana Arraes); e
Não cabe a atribuição de débito solidário ao prefeito sucessor omisso que, embora obrigado a prestar contas em razão de a vigência do ajuste adentrar o seu mandato, não geriu os recursos do convênio. Nesse caso, cumpre julgar irregulares as contas do prefeito sucessor e aplicar-lhe a multa do art. 58, inciso I, da Lei 8.443/92 (Acórdão 665/2016-TCU-1ª Câmara, Rel. Min. Benjamin Zymler).
Diante da omissão do sucessor, o gestor dos recursos, uma vez instado a se manifestar nos autos do processo de tomada de contas especial (TCE) para responder pela não comprovação da boa e regular aplicação das verbas federais que lhe foram confiadas, somente conseguirá se eximir da obrigação de ressarcir o dano se comprovar que disponibilizou os documentos hábeis à elaboração da prestação, pois, neste caso, restará demonstrado que o sucessor teve as condições necessárias para prestar contas e, mesmo assim, deixou de fazê-lo (Acórdão 2228/2014-TCU-Plenário, Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues).
Nesse quadro, a falta de realização de uma adequada transição de governo, em que ocorra a entrega formal dos documentos feita pelo gestor que sai àquele que assume a administração, dificultará sobremaneira a obtenção da referida prova pelo antecessor, com vistas a afastar a sua responsabilidade pelo débito no âmbito das instâncias de controle.
Ressalva-se, no entanto, que os prazos para prestação de contas são prazos limites, de modo que, se o modelo de prestação de contas permitir, há a possibilidade de o antecessor antecipar a comprovação da boa e regular aplicação das verbas federais que geriu, dentro de seu mandato, ainda que a data limite para prestação de contas adentre a gestão do sucessor. Contudo, não é isso que comumente acontece, além do que, ainda devem ser observadas condicionantes de cada modelo de transferência, dependendo do que determinar a legislação de regência e do sistema que operacionaliza a comprovação das despesas.
Ao sucessor, por sua vez, ainda que não tenha gerido as verbas federais repassadas, cumpre apresentar a prestação de contas no prazo legal. Assim o é porque a obrigação primária de prestar contas dos recursos transferidos ao município recai sobre o prefeito em cuja gestão se enquadra a data prevista para fazê-lo (Acórdão 3576/2019-TCU-2ª Câmara, Ministra Ana Arraes). Todavia, se o sucessor ficar impossibilitado de prestar contas, em razão da insuficiência de documentos que comprovem a aplicação dos recursos públicos geridos pelo antecessor, o Tribunal de Contas da União reconhece a possibilidade de afastamento da responsabilidade daquele gestor, no caso de terem sido adotadas providências ao resguardo do patrimônio público (Acórdãos 1541/2008-TCU-2ª Câmara, 2773/2012-TCU-1ª Câmara, 3039/2011-TCU-2ª Câmara, entre outros). Tal orientação decorre do Enunciado da Súmula 230 do TCU, in verbis (grifamos):
Compete ao prefeito sucessor apresentar a prestação de contas referente aos recursos federais recebidos por seu antecessor, quando este não o tiver feito e o prazo para adimplemento dessa obrigação vencer ou estiver vencido no período de gestão do próprio mandatário sucessor, ou, na impossibilidade de fazê-lo, adotar as medidas legais visando ao resguardo do patrimônio público.
Dito de outro modo, o sucessor poderá ficar isento de responsabilidade se demonstrar a adoção de medidas efetivas visando ao resguardo do patrimônio público, seja por meio de solicitação de instauração de TCE, de ação civil pública, de ação de ressarcimento, de representação ao Ministério Público ou de qualquer outra providência reconhecidamente capaz de buscar o ressarcimento ao erário (Acórdãos 3642/2012-TCU-2ª Câmara, 6295/2010-TCU-1ª Câmara, 1313/2010-TCU-1ª Câmara, 1080/2010-TCU-2ª Câmara).
É comum o sucessor ajuizar ação de ressarcimento contra o antecessor, sob alegação de que não encontrou, nos arquivos da prefeitura, a documentação necessária à prestação de contas. No entanto, haja vista as tensões políticas próprias de disputadas eleitorais, a informação de que “o governo anterior não deixou documentos” deve ser analisada com reservas. Em muitos casos, seja por má-fé ou negligência, o prefeito sucessor, ao invés de prestar contas ou demonstrar que efetivamente era impossível fazê-lo, corroborado por providências administrativas internas para encontrar a referida documentação e não se limitar a meras alegações, prefere a alternativa que pode lhe parecer mais cômoda de ingressar com uma representação perante o Ministério Público ou de propor ação judicial de ressarcimento contra o antigo gestor, na crença de que a um só tempo tal iniciativa suspenderá a inadimplência[3] do ente federado e redundará no afastamento de sua responsabilidade.
Em cenários assim, instaura-se verdadeira guerra de versões, em que não se dispõe de elementos para dizer com segurança qual dos gestores em conflito deu causa à caracterização da omissão na prestação de contas. Daí porque sobressai a importância de o administrator que deixa a chefia do Executivo municipal constituir uma comissão de transição de governo, com o objetivo justamente de fornecer à nova gestão eleita, todos os documentos e informações sobre os repasses federais pendentes de prestação de contas, registrando tal procedimento, de modo que seja possível identificar com clareza aquele que deve responder por eventuais problemas ou omissões nas prestações de contas.
Nessa transição, é fortemente recomendável que o atual gestor exija da nova administração recibo da entrega da documentação relativa às transferências pendentes de prestação de contas, como também, por cautela, mantenha em sua posse cópias de todos os documentos necessários à comprovação do emprego regular dos recursos federais por ele geridos (ainda que digitalizadas), mas cujo vencimento do prazo de prestação de contas tiver recaído no mandato subsequente. Isso porque, caso a prestação de contas não seja apresentada pelo sucessor, no prazo legal, seja qual for o motivo, o antecessor poderá fazê-lo, caso demandado pelos órgãos de controle.
Portanto, o processo de transição de governos, seja qual for a esfera em que se desenvolva, além de servir como marco crucial de definição de responsabilidades, evidencia o espírito público dos gestores envolvidos, em que possíveis adversidades políticas são deixadas momentaneamente de lado em prol do bem estar da população, a fim de que não haja descontinuidade na execução das políticas públicas de interesse dos governos locais e federal, como também possibilite o adequado exercício do controle, de forma mais republicana possível, sem acarretar transtornos desnecessários para a Administração Pública.
[1] De acordo com o art.2º da Instrução Normativa TCU 71/12, “Tomada de contas especial é um processo administrativo devidamente formalizado, com rito próprio, para apurar responsabilidade por ocorrência de dano à administração pública federal, com apuração de fatos, quantificação do dano, identificação dos responsáveis e obter o respectivo ressarcimento”.
[2] Em apertadíssima síntese, a tomada de contas especial é instaurada pelo órgão e/ou entidade responsável pelo repasse dos recursos (Tomador de Contas), ante os indícios de dano ao erário federal. Após convocar o gestor para apresentar explicações sobre a irregularidade apurada, no caso, a omissão no dever de prestar contas, o Órgão Tomador de Contas emitirá manifestação sobre a aprovação ao não da gestão. A Controladoria Geral da União (Controle Interno) emitirá certificado e relatório de auditoria, bem como o parecer do dirigente do órgão de Controle Interno e o Tribunal de Contas da União realizará o julgamento das contas (precedido de novo contraditório do gestor), pela regularidade, regularidade com ressalva ou irregularidade.
[3] Na hipótese de não encaminhamento da prestação de contas no prazo estabelecido, o Concedente registrará a inadimplência do município no Cadin, o que o impedirá de receber novas transferências. No entanto, essa restrição será suspensa se o município, por intermédio da iniciativa do prefeito que sucedeu o gestor supostamente faltoso, adotar providência voltada ao ressarcimento ao erário.
Passo a passo da transição republicana
1º passo: INSTALAR A EQUIPE DE TRANSIÇÃO
Tão logo o (a) prefeito (a) seja declarado (a) eleito (a) pela Justiça Eleitoral, sugere-se que seja instalada equipe de transição,
mediante ato normativo específico com datas de início e de encerramento dos trabalhos, identificação de finalidade e forma de atuação. A comissão deve ser formada por representante do prefeito que sai, do prefeito que entra, da Auditoria Interna e da sociedade civil.
Durante as reuniões da comissão, elabore ata, com indicação dos participantes, o assunto tratado, as informações solicitadas e o cronograma de atendimento às demandas apresentadas.
Além disso, é importante lembrar que é proibida a retirada de documentos, equipamentos, programas de computador ou quaisquer outros bens públicos das dependências dos órgãos e entidades municipais, tanto pela antiga, quanto pela nova gestão.
2° passo: PREPARAR RELATÓRIOS
Órgãos e entidades da Administração Pública municipal deverão elaborar e estar aptos a apresentar à equipe de transição os seguintes relatórios:
Relatórios sobre a situação financeira do Município, com números das contas, agências e bancos; demonstrativos dos saldos disponíveis, dos restos a pagar, relação dos documentos financeiros de longo prazo; valores médios mensais recebidos a título de transferências constitucionais; inventário de dívidas e haveres e comprovação de regularidade com a previdência; |
Relatórios referentes aos contratos, com todos os contratos de execução de obras, consórcios, convênios e outros, pagos e a pagar; |
Relatórios com os bens e patrimônios, que devem trazer relação atualizada dos bens patrimoniais e o levantamento dos bens de consumo existentes no almoxarifado |
Relatório atualizado da estrutura funcional, contendo demonstrativo do quadro de servidores, incluindo lotação e descrição das atividades realizadas. |
Levantamento de assuntos que sejam ou possam resultar em processos judiciais ou administrativos e; |
Principais ações, projetos e programas em execução, interrompidos, finalizados ou que aguardam implementação também devem possuir relatório |
Deverão fazer parte de relatório específico os atos expedidos no ano eleitoral que tratem de reajuste de vencimentos, nomeações, admissões, contratação ou exoneração de ofício, dispensa, transferência, designação, readaptação ou supressão de vantagens de qualquer espécie do servidor público.
3° passo: DISPONIBILIZAR INFORMAÇÕES
Decisões tomadas, que possam impactar a futura gestão devem ser informadas ao futuro gestor. Além disso, caso haja tomada de decisão com prazo constitucional ou legal, há de se informar, igualmente, à nova gestão, quais são esses prazos e quais as consequências de não cumpri-los.
Além disso, informações protegidas por sigilo deverão ser fornecidas pela atual administração na forma e condições previstas em lei.
4º passo: PUBLICAR OS DOCUMENTOS PARA ENCERRAR A TRANSIÇÃO
A equipe de transição deve publicar no Portal do Município a relação das medidas adotadas pela Administração para promover uma transição republicana e os relatórios financeiros listados no Passo 2