O Município e o(a) Prefeito(a) no Ambiente Constitucional
Prestação de Contas de Verbas Federais em Transição de Mandatos Municipais.
A perspectiva do Gestor recém-eleito.
Superada a euforia da vitória nas urnas, em 1º de janeiro de 2021, será o momento em que o gestor sagrado vencedor no pleito eleitoral terá encontro marcado com a realidade da administração municipal e poderá, enfim, “arregaçar as mangas” e colocar em prática seu plano de governo. “Não tão depressa”! A verdade é que o novo administrador, antes de qualquer coisa, precisará levantar as informações indispensáveis para que tenha a exata noção sobre “em que condições” receberá a gestão municipal. É altamente recomendável que faça o quanto antes, no âmbito da transição de governos. Assim o é porque obras, serviços, aquisições, enfim, as ações administrativas herdadas do governo anterior, e que ainda estiverem em andamento, deverão ser finalizadas pelo mandatário recém-eleito, pois o resultado da atuação do Estado não pertence a qualquer governante, mas, sim, à coletividade e, portanto, em nome dela e no seu interesse devem voltar-se às políticas públicas.
Aliás, a sociedade não pode ficar refém de transições eleitorais com mudança de poder sem observância dos deveres impostos aos gestores públicos, tais como aqueles derivados dos princípios da transparência e da continuidade administrativa.
Assim, é importante dizer que nas prestações de contas de verbas da União transferidas para estados e municípios, com vistas à execução de política pública de forma descentralizada, em que os recursos são recebidos e geridos pela gestão que se despede, o vencimento do prazo para a apresentação da prestação de contas adentra o mandato subsequente.
Pois bem, nas prestações de contas em transição de mandatos, quando o gestor que administra os recursos não é o mesmo que tem o dever de prestar contas, não é difícil imaginar as contendas que tal situação pode gerar, sobretudo num país em que essas transições, via de regra, não ocorrem com a devida transparência e com o registro das condições nas quais as prestações de contas pendentes de comprovação são deixadas de uma gestão para outra.
Os problemas surgem quando a prestação de contas não é apresentada no prazo previsto. Neste caso, instaura-se um processo de tomada de contas especial, motivado pela omissão no dever de prestar contas [1] , com a convocação de ambos os gestores (antecessor e sucessor) para apresentarem explicações perante os órgãos de controle. Tem-se, de um lado, a defesa do antecessor que se escora no fato de que o vencimento do termo final para a prestação de contas recaiu no mandato subsequente e, portanto, caberia ao sucessor responder por tal obrigação.
Argumenta, ainda, que mesmo tendo envidado esforços para apresentar as contas, por iniciativa própria, não obteve êxito porque o prefeito sucessor, por desavenças políticas, não lhe entregou a documentação exigida para tanto. Por outro lado, o sucessor comumente alega que a gestão anterior não deixou, nos arquivos da prefeitura, a documentação necessária e adequada para que ele pudesse apresentar a prestação de contas, motivo pelo qual não teria sido possível desincumbir-se do seu dever, no prazo legal.
Ocorre que, com base apenas nas alegações dos gestores, nem sempre é fácil identificar com clareza qual dos agentes deu causa à configuração da omissão das contas, ou mesmo se ambos são responsáveis.
Na situação que se coloca, ainda que não tenha gerido as verbas federais repassadas, cumpre ao sucessor apresentar a prestação de contas, no prazo legal. Isso porque a obrigação primária de prestar contas dos recursos federais transferidos ao município recai sobre o prefeito em cuja gestão se verifica a data prevista para fazê-lo (Acórdão 3576/2019-TCU-2ª Câmara).
Ademais, o prefeito sucessor poderá ser condenado a ressarcir prejuízo ao erário, em razão da paralisação indevida da execução de ajuste firmado pela gestão que o antecedeu, uma vez comprovada a sua omissão em concluir obra iniciada e não acabada pelo seu antecessor, havendo recursos públicos na conta específica da avença para a conclusão do objeto pactuado, deixando a obra “abandonada” e sem proveito para a população, visto que tal forma de proceder representa desperdício de recursos públicos e contraria o princípio da continuidade administrativa, segundo jurisprudência pacífica do TCU (Acórdão 2900/2012-Primeira Câmara, Acórdão 3067/2019-Segunda Câmara, Acórdão 4828/2018-Segunda Câmara, Acórdão 6363/2017-Segunda Câmara, Acórdão 10968/2015-Segunda Câmara, entre outros).
Todavia, se o sucessor ficar impossibilitado de prestar contas, em razão da inexistência de documentos nos arquivos da prefeitura que comprovem a aplicação dos recursos federais integralmente geridos pelo seu antecessor, o TCU reconhece a possibilidade de afastamento da responsabilidade do gestor, no caso de terem sido adotadas providências ao resguardo do patrimônio público (Acórdãos 1541/2008-TCU-2ª Câmara, 2773/2012-TCU-1ª Câmara, 3039/2011-TCU-2ª Câmara, entre outros). Tal orientação decorre do Enunciado da Súmula 230 do TCU, in verbis (grifamos):
Compete ao prefeito sucessor apresentar a prestação de contas referente aos recursos federais recebidos por seu antecessor, quando este não o tiver feito e o prazo para adimplemento dessa obrigação vencer ou estiver vencido no período de gestão do próprio mandatário sucessor, ou, na impossibilidade de fazê-lo, adotar as medidas legais visando ao resguardo do patrimônio público.
Dito de outro modo, o sucessor poderá ficar isento de responsabilidade, se demonstrar a adoção de medidas efetivas visando ao resguardo do patrimônio público, por exemplo, por meio de solicitação de instauração de TCE, de interposição de ação civil pública, de ação de ressarcimento, de representação ao Ministério Público ou de qualquer outra medida capaz de buscar a reparação do patrimônio público (Acórdãos 3642/2012-TCU-2ª Câmara, 6295/2010TCU-1ª Câmara, 1313/2010-TCU-1ª Câmara, 1080/2010-TCU-2ª Câmara).
Contudo, frisa-se que, não obstante a adoção de medida de resguardo ao erário pelo sucessor ter o condão de suspender a inadimplência do ente beneficiário, não deve acarretar automaticamente a exclusão de sua responsabilidade pela omissão no dever de prestar contas, sem que se faça acompanhar de esclarecimentos quanto às providências administrativas por ele efetivamente adotadas no sentido de obter os documentos relativos à prestação de contas, de forma a demonstrar que, à época do vencimento do prazo para a prestação de contas, ele (sucessor) envidou os esforços que se esperava de um gestor diligente para a reunião da mencionada documentação, mas encontrou dificuldades concretas que o impediram de prestar contas, nos termos do que dispõe art. 26-A, §§ 7º ao 9º, da Lei 10.522/2002:
Art. 26-A. (...)
§ 7º Cabe ao prefeito e ao governador sucessores prestarem contas dos recursos provenientes de convênios, contratos de repasse e termos de parcerias firmados pelos seus antecessores.
§ 8º Na impossibilidade de atender ao disposto no § 7º, deverão ser apresentadas ao concedente justificativas que demonstrem o impedimento de prestar contas e solicitação de instauração de tomada de contas especial.
§ 9º Adotada a providência prevista no § 8º, o registro de inadimplência do órgão ou entidade será suspenso, no prazo de até 48 (quarenta e oito) horas, pelo concedente.
Dito de outra maneira, para que o prefeito sucessor tenha afastada a sua responsabilidade pela não entrega da prestação de contas no prazo devido, ele deverá satisfazer, ao mesmo tempo, duas condicionantes:
A. adotar medidas voltada s para o resguardo do patrimônio público; e
B. demonstrar a impossibilidade de prestar contas dos recursos geridos pelo antecessor.
Tal exigência já vinha sendo sinalizada pela jurisprudência do TCU, o que culminou, recentemente, com a aprovação da Instrução Normativa TCU 88/2020 (que inclui os itens 9.A e 9.B ao texto da Instrução Normativa TCU 71/2012), cuja redação do parágrafo único do item 9.B não deixa dúvida sobre as medidas que devem ser adotadas pelo gestor sucessor, com vistas a elidir a sua responsabilidade pela omissão em tela, in verbis:
Art. 9.B. Quando o período de gestão integral dos recursos não coincidir com o mandato em que ocorrer o vencimento da prestação de contas, havendo dúvidas sobre quem deu causa à omissão, antecessor e sucessor serão notificados para recolher o débito, prestar contas ou apresentar justificativas sobre a omissão, o primeiro por supostamente não ter deixado a documentação necessária para que o sucessor pudesse prestar contas e o segundo por ter descumprido o dever de apresentar a prestação de contas no prazo devido.
Parágrafo único. O sucessor poderá se eximir da responsabilidade sobre a omissão se, cumulativamente, demonstrar a adoção de medida legal de resguardo ao patrimônio público e apresentar justificativas que demonstrem a impossibilidade de prestar contas no prazo legal, acompanhadas de elementos comprobatórios das ações concretas adotadas para reunir a documentação referente às contas.
Em conclusão, a fim de diminuir possíveis transtornos resultantes de uma transição de governo mal realizada, recomenda-se fortemente ao gestor público, que inicia seu mandato à frente do Executivo municipal, que instaure procedimento formal para verificar se toda documentação relativa às transferências federais pendentes de prestação de contas foram deixadas nos arquivos da prefeitura, de forma que seja possível identificar com clareza aquele que deve responder por eventuais problemas ou omissões nas prestações de contas. Do contrário, quando instado pelos Órgãos de Controle para se manifestar sobre as prestações de contas de transferências federais geridas pelo mandatário anterior, mas cujo vencimento do prazo ocorrer no mandato subsequente, o sucessor que se encontre impossibilitado de prestar contas, em função da ausência de documentação nos arquivos da prefeitura, supostamente não deixada pelo seu antecessor, terá que se submeter ao ônus comprobatório de que trata o art. 9.B, parágrafo único, da Instrução Normativa TCU 71/2012, com vistas a ter a sua responsabilidade elidida em sede de processo de tomada de contas especial.
Portanto, o processo de transição de governos, além de servir como marco crucial de definição de responsabilidades, evidencia o espírito público dos gestores envolvidos, em que possíveis adversidades políticas são deixadas momentaneamente de lado em prol da população, a fim de que não haja descontinuidade na execução das políticas públicas de interesse mútuo dos governos locais e federal, como também possibilitar o adequado exercício do controle, de forma mais republicana possível, sem acarretar transtornos desnecessários para a Administração Pública.