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16.03.2012 - Artigo: "MONROM ROMAI, REZO ROMAI E CHAI ROMANÔ" (SelvinoHeck)
Luna Romi, que significa lua cigana (como brasileira, ela se chama Vanesca Duarte) fez uma festa no VIII Encontro Regional Centro-Oeste da Rede de Educação Cidadã (RECID) em Goiânia, GO. A cozinha do Instituto São Francisco de Assis transformou-se num sacrário de cheiros, sabores e encantamentos. Vestida de acordo com a cultura cigana, Luna fez uma oficina para explicar aos cozinheiros participantes como se fazia cada prato, como prepará-los, qual o significado e o ritual a serem seguidos. Eu, observador e bom provador de comidas e bebidas, anotei as coisas mais importantes.
A base da cozinha e comida ciganas são o pão, o vinho e a fruta. Jamais podem faltar. O pão, monrom romai representa a família, a comunidade. O vinho é o sangue de Jesus, simbolizando a proteção espiritual. A fruta é a terra, a pátria. A forma ou o jeito de combinar os três ingredientes básicos depende de cada grupo cigano. No caso de Luna Romi, sua mãe vem de um clã de ciganos, Caldarash, da França. O pai é Calon, ciganos espanhóis da Andaluzia.
O chai romanô é o chá cigano, bebida sagrada do povo cigano. É feito de vinho suave, com suco de laranja acompanhado por especiarias como cravo, canela, aniz estrelado, alecrim, sálvia, hortelã, mais açúcar melado. Imaginem o cheiro, o aroma exalados na cozinha! A primeira coisa que qualquer criança aprende é fazer pão e o chairomai.
Rezo romai é o arroz cigano. Há três formas ou tipos. O de acampamento, que é forte, feito com gengibre. O volimô, o arroz do amor, feito para os noivos, que é com frango, flores e pétalas de rosa. E o de festa, que comemos em Goiânia, de duas formas: com carne vermelha ou branca, mais dois tipos de fruta, maçã ou banana, queijo e batata palha; ou como parillada, com carne de cabrito, ovelha ou porco, na forma de paella.
Servir os três pratos segue um ritual. Primeiro, o pão é repartido numa roda, sendo que cada um serve um pedaço para quem está à sua direita e diz-lhe uma palavra como desejo. Depois, vai-se para o rezo romai (arroz cigano) e o chai romainô (chá).
O Encontro da RECID Centro-Oeste, com participação de 50 educadoras e educadoras populares e lideranças sociais da região, foi neste clima de respeito às culturas e de conhecimento dos valores das comunidades tradicionais. O tema geral era: Processo histórico da resistência popular e a estratégia de atuação da RECID no Centro-Oeste. O lema: Memórias do caminhar tecendo o poder popular!
O relatório-síntese do Encontro diz:“Não se tratou de ver o não visto e muito menos experimentar a primeira emoção de um beijo, mas sim, como diz a primeira frase do texto-base, ‘é nas coisas da estrada a chegada’. Esse texto já é a estrada da RECID nas contribuições cotidianas e históricas. Ela nos evoca a reavaliar e planejar o que mais para frente organicamente queremos. Como não vivemos ‘um tempo de pura espera’, trabalhemos para que esse espaço seja algo inesperado, mas organizado, para vivenciarmos tanto a mística da militância quanto a mística da transformação social.
No debate sobre eixos, estratégia e tática, o assessor José Antônio Moroni “trouxe uma fala bem problematizadora: ‘antes de tudo, temos que pensar sempre o que não queremos, porque tanto a tática quanto a estratégia mudam com o tempo, e a história pode nos ensinar o que não fazer’. O tempo parece ter ensinado várias coisas. Uma é ‘não colocar o carro na frente dos bois’, como disse uma educadora de Goiânia”.
A realidade na região Centro-oeste não é fácil nem simples. Nas palavras da RECID-DF,o modelo de urbanização adotado em Brasília seguiu o modelo empregado no Brasil. Mesmo sendo uma cidade planejada, a conjuntura socioespacial não difere tanto, em sua essência, de outras metrópoles. Dentro deste contexto, as cidades, a infraestrutura oferecida e a própria renda sofreram espacializações segregantes. Como o Distrito Federal tornou-se solução para as populações do seu Entorno, estado de Goiás, um fluxo migratório pendular se direciona para localidades dentro do quadrilátero, algo que não se encontra nas cidades de origem.
Já o Mato Grosso, no relato da RECID-MT, sofre os problemas dos inchaços das cidades, com a migração de pessoas que estão em áreas onde há construção de usinas hidrelétricas, o que aumenta o número de pessoas em vulnerabilidade social e em situação de risco. Além disso, o desmatamento e a forma de produção impactam o rio Paraguai. Assoreamento e insumos como agrotóxicos – Mato Grosso é um dos estados que mais utilizam agrotóxicos –descem por ele e se distribuem pelas áreas alagáveis do Pantanal, contaminando as águas e causando prejuízos ao estilo de vida das populações tradicionais.
No Mato Grosso do Sul, segundo a RECID-MS, as multinacionais estão arrendando e comprando terras – o que, de um lado, é ilegal, de outro, elas aproveitam-se dos assentamentos e ainda destroem a natureza. E há uma hegemonia no poder local das tendências do campo da direita conservadora.
Em Goiás, de acordo com a RECID-GO, há duas políticas centrais do governo estadual. A primeirano campo da segurança pública, que atua fortemente, criminalizando a pobreza e os movimentos sociais. A segunda no campo da reforma administrativa do estado, que passa pela privatização de 19 empresas e órgãos públicos, inclusive na área da saúde e da segurança pública.
Diante deste quadro conjuntural, a RECID Centro-Oeste, enquanto região e em cada estado, atua junto aos movimentos sociais, associações e comunidades de base, como atividades de formação, resistência e combate em temas como moradia, transporte, violência e extermínio da juventude; luta na defesa dos direitos humanos, na formação de mulheres vítimas de violência, com famílias de dependentes químicos, com quilombolas e indígenas camponeses assentados e acampados; mobiliza as comunidades para resgatar a cultura tradicional, como feiras locais no próprio bairro e construção de hortas comunitárias; promove a formação com pessoas que recebem o Bolsa Família; apoia as lutas pelas reformas política, agrária e tributária; apoia campanha permanente contra os agrotóxicos e pela valorização da agricultura familiar e camponesa; e incentiva políticas públicas com participação popular.
A partir do VIII Encontro, a RECID Centro-Oeste propõe: trabalhar a educação popular como política pública; expor nos conteúdos e direcionar apoio a ações como a Lei Maria da Penha, enfrentamento da homofobia e a função social da maternidade; fomentar jornadas de formação vinculadas a lutas e mobilizações nacionais; trabalhar com novas formas de abraçar e interagir com novas Redes; fomentar e construir lutas populares trabalhando instrumentos de mobilização e comunicação; realizar seminário para debater o modelo de desenvolvimento e a erradicação da miséria; realizar Seminário para aprofundar a metodologia de educação popular.
Os aromas do monrom romai (pão), do rezo romai (arroz cigano) e do chai romanô (chá com vinho) e da dança cigana e leitura de mãos feitas por Luna Romi acompanharam e abençoaram todo o Encontro.
Em tempo: numa oficina de formação, feita pela RECID no Mato Grosso do Sul, ciganos e ciganas, segundo Luna, abriram o coração, dizendo de suas angústias e demandas. Querem educação; não querem mais ser analfabetos, eles que muitas vezes são discriminados na escola formal. Eles são um povo, com seus costumes, tradições, valores e história, e assim querem ser reconhecidos e respeitados em seus direitos.
SelvinoHeck
Assessor Especial da Secretaria Geral da Presidência da República