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29.04.2011 - Artigo: "À vida, ao prazer e ao amor!" (Selvino Heck)
Selvino Heck
Assessor Extraordinário da Secretaria Geral da Presidência da República
Cruzei a curva dos sessenta estes dias. Como toda curva, dá um certo medo. Mas não era muito fechada ou traiçoeira. Nem reduzi a velocidade ou troquei de marcha. Não é ainda a aura da vitória. Há muitas voltas por dar no autódromo da vida.
Posso dizer que cheguei relativamente bem até aqui. Derrapadas fazem parte da estrada, nem sempre reta e asfaltada. Há buracos nas trilhas, de vez em quando bate a dúvida sobre o melhor trajeto a seguir na encruzilhada, mas é assim que se vive. Como dizia o poeta, “navegar é preciso, viver não é preciso”. E “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.
Minha alma, com certeza, algumas/muitas vezes foi pequena. Até minúscula. Não tive coragem de enfrentar amores/desamores. Recuei, conciliador demais, segundo amigos e companheiros, quando devia avançar com coragem e determinação. Mas também dialoguei à exaustão e não vacilei em momentos cruciais de uma ocupação de terra em Cruz Alta e de moradias no Guajuviras em Canoas, de mobilizações professores estaduais na frente do Palácio Piratini em Porto Alegre, de greves por melhores condições de trabalho e salário dos metalúrgicos, mesmo enfrentando baionetas e olhares nervosos da Brigada Militar, que naqueles tempos por vezes batia até em deputados.
Amei, desamei, não voltei a amar. Segundo alguns, amei demais o povo e a causa dos pobres e da libertação. Não me arrependo. Errei/acertei, cri/descri. Mas há um certo norte que aponta sempre para o Sul e é, afinal, ao fim e a cabo, olhando para trás e para frente, o que interessa: um franciscano de alma, carisma e coração, junto com frei Arno Reckziegel, meu guia principal de sempre, e um colono alemão/gaúcho com calos nas mãos, plantas, árvores e frutos no coração.
Posso, com certeza, afirmar uma coisa. Sou do povo. Adoro tomar cerveja e uma birita. Ainda que goste muito de ficar sozinho de noite e às vezes na hora do chimarrão, não abro mão das boas companhias, da valsa, do forró, do samba, do rock, da alegria e da festa. Nunca sento no banco de trás dos carros oficiais e o companheiro que serve cafezinho ou a companheira que recolhe o lixo no Palácio do Planalto me lembram todos os dias dos tempos a Lomba do Pinheiro, quando serventes, pedreiros, donas de casa, funcionários públicos de baixa renda participavam dos grupos de reflexão para ler a Bíblia e falar sobre os problemas para encontrar juntos o caminho da solução. E ajudaram a fundar um partido dos trabalhadores, eles que nunca tinham participado de política, a não ser pela mão e boca de outros, como eu novatos na vida e na consciência.
Atravessei a aventura do final dos anos 70/início dos anos 80. Fui expulso da PUCRS em 1975, por causa de política, movimento estudantil e da Teologia da Libertação, eu quase imberbe, cru em tudo e virgem em todos os sentidos. Depois, 1976, uma semana antes da ordenação de diácono, entre quatro frades, um deles hoje bispo em Uruguaiana, fui solenemente vetado por D. Vicente Scherer, uma preparação de toda uma vida e um sonho derrubados numa canetada. Mas foi o que me levou às vilas populares da Lomba do Pinheiro, para o meio do povo e da luta. Pelas interferências cardinalícias, fui demitido como professor de orientação religiosa do Colégio Anchieta no final de 1980, em caso de repercussão nacional e até internacional, por causa da educação libertadora proclamada pela escola para os filhos da classe média. Ajudei a fundar o PT, que também presidi, e a CUT. Considero-me co-fundador do MST e do MAB. Ajudei a construir o CAMP, essa ONG de Porto Alegre celeiro de lideranças e fonte inspiradora de organização e consciência do povo trabalhador. Ajudei a fundar o Movimento Fé e Política quando deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul, com o hoje ministro Gilberto Carvalho, Leonardo Boff, Frei Betto e tantos outros. Membro da equipe do TALHER e, sucedendo Frei Betto como Assessor do presidente Lula, ajudei a construir a Rede TALHER de Educação Cidadã.
É pouco? É muito? Para um guri, filho do pequeno agricultor Léo e da agricultora Lúcia, com quem só falo alemão até hoje, irmão de oito irmãos, da pequena Santa Emília, interior de Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, é uma viagem e tanto, impensável no início dos anos 50. São as raízes mais fundas, os valores comunitários e de fé, a visão de mundo, os pés no chão. Escreveu a amiga Lu Schommer, em mensagem que me emocionou: “Parabéns por seres quem és: pela sua garra, seus sonhos e sua capacidade de transformar em realidade tantos desejos, há tanto acalentados e por tantos sonhados. Você luta para manter seus (nossos, grifo meu) sonhos vivos, você batalha para não perder a perspectiva do valor humano, dos amigos, da família, da construção de algo maior e diferente.” Muito, muito mais do que sou e mereço.
Ao redor dos 50, depois de décadas de mundo e de política, eu que saíra de casa com precoces 11 anos, 1963, para o Seminário dos franciscanos em Taquari, RS, comecei a retornar. Associei-me à Sociedade São Luiz de Santa Emília, do Esporte Clube São Luiz, time do coração e das primeiras glórias futebolísticas do meia esquerda de cabeça em pé e passe certeiro, Quase aos 60, voltei mais ainda: tornei-me membro da comunidade São Luiz, paróquia Santa Inês de Mato Leitão, diocese de Santa Cruz do Sul, do hoje bispo emérito e amigo D. Sinésio Bohn.
Posso dizer que tenho três terras, como escrevi em artigo para o Mato Leitão em Foco: primeiro, Santa Emília, Venâncio Aires, onde nasci para a vida, depois a Lomba do Pinheiro, onde nasci para a luta, a política e o mundo, e Mato Leitão, a paróquia, onde fui batizado e crismado e nasci para a fé e a radicalidade evangélica.
Chegar aos 60 não é honra nem vitória. Como diz o conterrâneo Márcio Pochmann, presidente do IPEA, em 2030 a idade média de brasileiros e brasileiras será de 100 anos. Tenho condições, pois, de chegar lá, em 2051! Devo confessar que no Seminário, eu aprendiz de poeta, escrevia que bastava chegar aos 50. Já teria feito tudo na vida. Agora, quero chegar aos 100: amar mais, quem sabe servir melhor, ver um mundo e uma América Latina guerrilheira, indo para a outra margem do rio como ensinou o Che e mostrando os caminhos para a humanidade e o planeta.
Às amigas/amigos, às companheiras/companheiros de jornada, tantas e tantos, aos confrades, obrigado. Às que de alguma maneira me amaram e muitas vezes não receberam o mesmo amor de volta, obrigadérrimo.
Em tempos de crise econômica, ambiental e de valores, vale a convocação de Lula, nos 40 anos da Frente Ampla do Uruguai, março último, com o título “Norte pode estar no Sul”: “Não haverá socialismo se não for profundamente democrático. Tampouco haverá uma autêntica democracia política se não houver uma democracia econômica e social. Essa combinação de democracia política com democracia econômica e social nos dá a chave para formularmos o projeto histórico que queremos construir. É nossa missão dar consistência teórica e política a esse renovado ideal libertário. Tal consistência não virá somente dos livros. Ela surgirá sobretudo da luta dos trabalhadores e de nossa capacidade de refletir sobre os rumos da história. Não poderá ser uma reflexão solitária, menos ainda confinada a um espaço nacional. Mais do que uma constatação, cabe-nos fazer um convite, uma convocatória.”
Meu brinde final, tradicional, feito para os mais chegados, desta vez para todos e todas vocês que me lêem: À VIDA, AO PRAZER E AO AMOR!