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14.04.2011 - Artigo: "Cléo Bonotto, mais um" (Selvino Heck)
Em homenagem e memória
Selvino Heck
Assessor Extraordinário da Secretaria Geral da Presidência da República
Final de tarde, chego em casa em Brasília, faço um mate, vou ler os jornais. Abro a Zero Hora e deparo com a manchete: “Professor universitário perde a vida em acidente”, com a foto de Cléo Bonotto, professor de História e Direito da Universidade Regional Integrada (URI) de Santiago, Rio Grande do Sul: “Ele estava morto, no seu carro, em um matagal às margens da BR-287, em Santiago, a 30 metros da via, depois de uma semana desaparecido”. Um choque, mais um choque depois de vários semelhantes sofridos nos últimos anos: mortes de gente querida, companheiros e companheiras, muitos de pouca idade, por acidente, doenças inesperadas e coisas assim.
Na verdade, conheci pouco o Cléo, mas também o conheci muito. Muitos anos atrás, encontrava seu pai, Ivo, nas andanças e lutas Rio Grande do Sul afora, ele participante da Comissão Pastoral da Terra. Acho que encontrei pessoalmente o Cléo uma única vez, longe, longe, muito longe, no Fórum Social Mundial em Belém, dois, três anos atrás, ele todo feliz por me encontrar e conhecer ali, no meio do povo, no fervo de milhares de pessoas na abertura do Fórum. Conversamos muito, ele muito agradecido por tudo que acontecera em sua vida e minha (pequena) contribuição.
Mas no primeiro semestre de 2008 correspondemo-nos muito e seguidamente, sempre por meios eletrônicos. Escrevi um artigo no início de 2009, onde dizia: “Por outro lado, não posso me queixar. Foi um ano (2008) em que comecei a entrar para a história, talvez muito cedo. No primeiro semestre, numa tese de Cléo Bonotto sobre a história da Teologia da Libertação no Rio Grande do Sul, Frei Arno e eu aparecemos como personagens importantes.” A dissertação, defendida no Mestrado de Integração Latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria, RS, intitula-se “Tendo a Cruz por Bandeira: Movimentos religiosos contra-hegemônicos na América Latina inspirando as Histórias da Formação e a Prática de Agentes religiosos em Movimentos populares no Rio Grande do Sul (1970-1980)”.
Na dissertação, Cléo tem “por objetivo compreender os processos de formação e atuação de mediadores religiosos que se engajaram em movimentos sociais no fim da década de 1970 e início da década de 1980, no Estado do Rio Grande do Sul. Tendo em vista que, em plena ditadura militar, na ausência de sindicatos e de partidos políticos atuantes que expressassem os interesses das classes populares, reprimidos ou cooptados pelo regime ditatorial, outras organizações da sociedade civil ocuparam esse espaço, algumas dessas organizações tomaram parte ativa nos conflitos e colocaram-se a serviço das classes populares.”
Esse foi um período histórico rico e inovador, que formou as bases do Brasil de hoje, com sua democracia em consolidação, seus movimentos sociais de forte presença e atuação, seus governos comprometidos com a mudança e o povo trabalhador. Cléo aborda “as transformações ocorridas na Igreja católica durante a segunda metade do século XX, principalmente com o advento da Teologia da Libertação. No que se refere à formação, analisou-se o papel do Centro de Orientação Missionária (COM), em Caxias do Sul, no que diz respeito às suas relações com a Igreja institucional e com a formação teórica de lideranças e a organização de movimentos populares. Buscou-se compreender o papel da formação inserida em comunidades populares, estudando o pioneirismo dos franciscanos na Lomba do Pinheiro, na periferia de Porto Alegre. E examino a participação de religiosos na gênese do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra no Rio Grande do Sul”.
Entro na dissertação via Lomba do Pinheiro, junto com o frade franciscano, já falecido, Frei Arno Reckziegel, eu então também frei franciscano, ambos moradores deste conjunto de vilas populares na periferia de Porto Alegre e Viamão. Segundo Cléo, é “o pioneirismo franciscano na Lomba do Pinheiro: A vida no meio do povo, reaprendendo a ler a Bíblia”.
Segundo ele, “a Lomba do Pinheiro serviu como uma espécie de laboratório para a Ordem Franciscana do Rio Grande do Sul, sendo constantemente avaliada pela Província, e serviu de exemplo para outros grupos de religiosos e de leigos na inserção em comunidades mais pobres. Para isso, morava-se como e com os pobres, não se dependia deles para a própria sobrevivência, trabalhava-se, nem eram mantidas grandes estruturas que pudessem atrapalhar o trabalho de base. Neste sentido, ‘as CEBS, as pequenas comunidades, os grupos de reflexão da Bíblia caíam bem, iam além do oficialismo ou da doutrina, assim como permitiam a participação direta do povo na reflexão e na organização, o que se poderia dizer que era a Teologia da Libertação posta em prática, vivida’ (Relato de Frei Arno Reckziegel, 2007).”
No meu depoimento, dado em 2007, digo que “morar na Lomba a partir da segunda metade dos anos setenta foi o primeiro contato direto e regular com a classe trabalhadora, mas não como alguém de fora, mas sim como alguém que participava junto, morava junto, sofria os mesmos problemas de transporte, saneamento, falta de estrutura, etc.”
Escreve Cléo: “A participação dos religiosos na organização das lutas populares na periferia estava baseada no papel de mediadores que desempenhavam a ligação entre uma nova maneira de encarar a religiosidade e a reflexão sobre os problemas concretos da realidade das comunidades e a partir daí incentivavam a organização popular e a formação de lideranças, ‘incentivavam o povo a lutar e a participar destas organizações, ou criar novas. Criou-se a partir daí a União de Vilas da Lomba do Pinheiro, com um jornal próprio e com uma articulação para juntar as diferentes necessidades e levá-las ao poder público ou às empresas de ônibus, por exemplo’ (Depoimento de Selvino Heck, 2007)”.
Cléo Bonotto captou o espírito e a mística de uma época, fazendo um painel do período e entrevistando alguns dos seus principais personagens no Rio Grande do Sul, como o Ir. Antônio Cechin, frei Sérgio Görgen, Celso Gayger, padres Irineu Stertz e Carlos Menegais, Irmã Terezinha Hoffmann, Ivo Bonotto, João Damian, entre tantos e tantas que ajudaram a escrever esta história em meio à ditadura e a luta por democracia e direitos, em especial dos pobres e trabalhadores.
Não sei se é porque estou chegando aos sessenta este ano, ou se as mortes são cada vez mais estúpidas e inexplicáveis, mas a dor da perda é cada vez maior. Cléo Bonotto tinha apenas 29 anos, um guri na flor da idade. Fez muito e podia fazer ainda muito. E segundo descobri na Internet, todos o adoravam como professor, como amigo, como companheiro. Há que se cuidar da vida, do vento, de quem nos rodeia, do planeta.