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24.02.2011 - Artigo: "O século da América Latina" (Selvino Heck)
Assessor Especial da Secretaria-Geral da Presidência da República
Em sua primeira viagem internacional, a presidenta Dilma Rousseff pronunciou uma frase marcante: “Fiz a primeira viagem para a Argentina porque considero que a Argentina e o Brasil são cruciais para que possamos transformar esse século 21 no século da América Latina”.
Para demonstrá-lo na prática, a presidenta do Brasil recebeu as Mães e Avós da Praça de Maio. A presidenta da Associação, Estela de Carlotto, disse que pelo fato de Dilma ter sido “vítima da ditadura brasileira sabe bem do que fala quando propõe revisar a história, fazer justiça e impor a verdade”. A presidenta brasileira recebeu um lenço das Mães e Avós, símbolo de sua luta pela memória e verdade, dizendo que as mães e avós identificaram nela o que “perderam ao longo dos anos”.
Gestos e declarações fortes e bonitas. Duas mulheres presidentas nos dois países mais importantes da América do Sul, Dilma Rousseff e Cristina Kirchner, já por si um fato inédito e histórico. Duas mulheres presidentas que recebem dos familiares perseguidos pelas ditaduras uma homenagem, sendo que uma das presidentas também é uma perseguida de ditaduras, presa política e torturada, hoje presidenta de um país do tamanho e da história do Brasil.
Não faz muito tempo. Todos que somos um pouco mais velhos (ou antigos) e éramos (somos) lutadores do povo e da democracia, temos lembranças, fatos, acontecimentos de como éramos perseguidos, de como não tínhamos democracia e liberdade e, por conseqüência, de como o povo sofria, sem direitos, sem vez nem voz.
Brilhou a aurora no continente. Nunca a democracia esteve tão presente e consolidada na América do Sul e Latina. Nunca o povo latino-americano pôde expressar tão livremente suas ideias, lutar por pão, salário, renda, trabalho, educação, saúde e terra. Nunca pôde viver como vive hoje, em paz, querendo e buscando igualdade, distribuição de renda, democracia.
O século 21, o século da América Latina, está em construção. Não é fácil construir uma economia solidária. Não é fácil construir uma democracia participativa. Não é fácil construir Nações soberanas. Os países sul-americanos pouco experimentaram processos de participação social e popular. As oligarquias, ainda presentes e atuantes, sempre impediram o grito do povo, sempre sufocaram suas vozes, nunca sequer garantiram seus direitos fundamentais de acesso ao pão, às letras e ao saber.
Além disso, uma crise econômica não fabricada pelos países pobres, que sofreram o neoliberalismo do mercado livre e absoluto, do Estado mínimo, das políticas sociais compensatórias, traz seus rescaldos para quem resiste a estas políticas da fome, do desemprego, da recessão econômica. Por incrível que pareça, pela primeira vez na história, para não esquecer uma bendita frase do presidente Lula, os latino-americanos não dizem amém ao FMI e ao Consenso de Washington e, de algum modo, conseguem passar ao largo da crise econômica mundial, o que não é pouco nesta quadra da história.
Há muito por fazer e avançar. Como disse recentemente o ministro da Economia e Finanças Públicas da Bolívia, Luís Arce, diante dos dilemas enfrentados pelo governo de Evo Morales, “abandonamos a economia de mercado. Não existe neoliberalismo no país. Existe o controle do Estado sobre a economia”. Ou as afirmações do sociólogo alemão Heinz Dieterich, a quem se atribui a cunhagem do termo ‘socialismo do século XXI’, sobre os desafios da Venezuela e do presidente Hugo Chávez: “Conduza a economia de mercado como se deve conduzi-la, respeitando que é um sistema complexo de realimentação, e comece a construir as instituições da democracia real, as instituições do socialismo democrático do século XXI” (Valor Econômico, 26.01.11, p. A14).
Este pode ser, sim, o século da América Latina, mas os desafios são muitos. Não basta ter democracia formal, como não basta ter políticas públicas participativas. Enquanto houver um sistema econômico que não garante plenamente o acesso igualitário aos bens produzidos a todos os cidadãos e cidadãs, o que é impossível no capitalismo acumulador de riqueza, enquanto não houver, além da democracia representativa, formas consolidadas de participação do povo na condução dos países e de suas políticas, enquanto não houver soberania nacional efetiva, com regras econômicas e acordos políticos internacionais que permitam aos mais pobres igualdade de condições e oportunidades, enquanto não houver integração econômica, social, cultural dos países latino-americanos, a pobreza e a injustiça não estarão vencidas, assim como a dignidade não será a do bem-viver.
Indígenas, quilombolas, sem-terras, catadores e recicladores, mulheres e jovens, pescadores e ribeirinhos, grupos de economia solidária, trabalhadores da fábrica, de lojas, de escolas e hospitais, micro, pequenos e médios empreendedores, aliados aos que querem o bem, a justiça e a igualdade, são capazes de construir o desejo e o sonho da presidenta Dilma e fazer do século XXI o século da América Latina. Os povos dos países árabes estão, mais uma vez na história, mostrando o caminho. Assim será, se houver consciência, se houver organização popular, se houver utopia.