Aprendendo a Exportar
O PERÍODO JOANINO E O COMÉRCIO EXTERIOR BRASILEIRO
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O PERÍODO JOANINO E O COMÉRCIO EXTERIOR BRASILEIRO (1808 a 1820) O estabelecimento da corte portuguesa em sua colônia sul-americana cria condições para um processo de independência praticamente pacífico do Brasil. Um decisivo passo nessa direção é dado em 1808 com a liberalização do comércio exterior. Nesse sentido, 1808 pode ser considerado ano zero da autonomia do comércio exterior brasileiro e momento-chave da sua gradual emancipação política. Seu acontecimento marco é a assinatura da Carta Régia da Abertura dos Portos da colônia que, em última instância, vem a ser a realização de um desígnio decorrente da inserção de Portugal no contexto europeu. Em 29 de novembro de 1807, a corte portuguesa, acompanhada de 15 mil pessoas, foge das tropas napoleônicas, que marcham em direção a Lisboa. Napoleão Bonaparte, à época, está no auge de seu poder e seus exércitos são considerados praticamente invencíveis. O Imperador francês pretende “aniquilar todas as tiranias”, difundir (a seu modo) os ideais da Revolução Francesa (1789) e criar um Império Universal. Para alcançar sua meta, conquista quase toda a Europa e depõe monarquias absolutistas seculares. Mas encontra no mar sua grande inimiga. A Grã-Bretanha faz Napoleão conhecer sua maior derrota naval, em 1805, na batalha de Trafalgar na costa espanhola. Detido em seu intento de conquistar as ilhas britânicas, intensifica a guerra comercial que já vinha travando contra sua maior opositora. A intenção é vencer a Grã-Bretanha arrasando sua economia por meio do estrangulamento de seu comércio marítimo. Para isso, decreta o bloqueio continental por terra (21 de novembro de 1806). A partir de então, proíbe todo tipo de comércio com a Grã-Bretanha. Portugal, país pequeno com um vasto império colonial, manteve-se neutro (muito embora essa neutralidade tenha sido assimétrica) ao longo de quase todo o período das guerras napoleônicas para preservar seus domínios e seu comércio marítimo do qual é dependente, mas tem que enfrentar o risco de ataques a seu litoral e a seus navios cargueiros. Como tática de guerra, franceses e britânicos incentivam particulares e corsários a atacarem, inicialmente, as embarcações do inimigo, depois estendem essa medida aos navios neutrais. Dessa forma, os mares ficam inseguros, infestados de corsários que praticamente agem como se fossem uma linha auxiliar informal das respectivas marinhas. O reino lusitano não tem condições de se proteger sozinho desse perigo e solicita ajuda britânica para a tarefa de patrulhamento da sua costa e dos seus navios cargueiros. A Grã-Bretanha, por seu turno, tem interesse em preservar aquela relação, dentre outros motivos, para utilizar os portos lusitanos como meio de escoamento de suas mercadorias no continente europeu. Em diversas ocasiões anteriores, a França ordenara a Portugal romper essa relação, o qual resiste. Com o bloqueio continental, porém, Napoleão ultima Portugal a quebrar sua aliança com a Grã-Bretanha. O Príncipe Regente português, D. João, vê-se, assim, perante a difícil escolha: aderir ao bloqueio francês ou preservar sua secular aliança. Em qualquer dos casos teria que enfrentar as represálias do lado preterido: invasão terrestre pelas tropas de Napoleão e uma provável destituição do trono, como vinha acontecendo em outros países conquistados; ou, bombardeio marítimo pela Royal Navy a seus portos europeus e uma possível invasão a sua possessão americana, como já ocorrera em território colonial espanhol a exemplo de Buenos Aires e Montevidéu (1806). Em qualquer das duas circunstâncias, corria o risco de ter seu comércio marítimo destroçado. Paralelamente, o governo português negocia com seu aliado, o governo britânico, uma solução para esse impasse. O plano discutido é a transferência da sede do império português para sua colônia americana. Essa é uma idéia antiga em Portugal, remontaria a Martim Afonso de Sousa que, no século XVI, aconselhara o rei D. João III a transferir a corte para o Brasil. O próprio marquês de Pombal também cogitara o mesmo quando das incertezas da guerra dos sete anos. Um afilhado de Pombal, e então ministro do Príncipe Regente, Rodrigo de Sousa Coutinho (conde de Linhares), adepto da idéia de se criar um grande império luso-brasileiro com sede no Brasil, e que vinha debatendo esse projeto em um círculo de pessoas esclarecidas, negocia com os britânicos os termos da transferência da família real e da sede da monarquia para a colônia sul-americana. Portugal é, então, praticamente o único aliado da Grã-Bretanha. Seus portos possibilitam a esta furar o bloqueio continental. Além disso, aquele estado insular vem a ser o principal credor em geral e fornecedor do seu comércio marítimo. A aliança luso-britânica remonta ao século XIV e é então a mais antiga da Europa. Essa cooperação sempre teve como compromisso basilar o fornecimento de proteção britânica a Portugal e a concessão de vantagens comerciais portuguesas à Grã-Bretanha. Daí, esse país ter muitos simpatizantes em Portugal, os quais, em discordância dos partidários dos franceses, querem a continuação dessa cooperação. O governo português termina por assinar em Londres, em 22 de outubro de 1807, uma Convenção Secreta na qual ficam estabelecidas algumas medidas a serem tomadas, que particularmente interessam ao Reino Unido da Grã-Bretanha: a família real e a sede da monarquia portuguesa serão transferidas para o Brasil; Portugal abolirá o monopólio comercial dos portos brasileiros; um porto brasileiro, preferencialmente Santa Catarina, será colocado como porto livre para embarcações britânicas. Não obstante, o Príncipe Regente se mostra o tempo todo relutante em assumir compromisso de tamanha envergadura. Argumentos persuasivos para mobilizar D. João são as notícias de que as tropas francesas já marcham pelo território português em direção a sua capital e que os britânicos ameaçam bombardear os portos do reino se o monarca não embarcar. Em conseqüência dessa hesitação do Príncipe Regente, muitas providências para a viagem ocorrem de última hora. Finalmente, no fim de novembro, os navios partem transportando, além da família real, toda a corte. A sede da monarquia portuguesa faz então uma inédita viagem: atravessa o Atlântico e a linha do Equador em direção a sua possessão sul-americana. Feito nunca dantes realizado por qualquer outro monarca. Por seu turno, a inimiga daquela aliança trata, também, de tomar medidas para subordinar Portugal. O igualmente secreto Tratado de Fontainebleau, entre França e Espanha (27 de outubro de 1807), estabelece as condições necessárias para atingir aquela meta: pelo o acordo, os soldados franceses receberiam autorização para atravessar o território espanhol em direção a Portugal. Como botim da conquista, esses países planejavam repartir o território e as colônias portuguesas entre si. Essas são as motivações que ensejam a transferência, às pressas, da Coroa portuguesa para a sua colônia mais importante, o Brasil. Naquela época, os mares estão mais do que nunca inseguros devido às ações dos corsários e intimidações das marinhas dos dois lados beligerantes, que supervisionam os navios cargueiros para ver se estão transportando mercadorias para o inimigo e, às vezes, chegam mesmo a apresá-los. Desse modo, o traslado é feito sob a proteção e a escolta da marinha da antiga aliada de Portugal, a Grã-Bretanha, em consonância com o acordado nas negociações da aludida Convenção Secreta. Enquanto isso, no continente europeu, conforme já previsto, os exércitos de Napoleão derrotam as tropas portuguesas e ocupam Lisboa. Uma das primeiras medidas do domínio francês é a proibição do comércio daquele país com suas colônias e com a Inglaterra, sua arquiinimiga, a fim de levar a cabo a estratégia do bloqueio continental. Entrementes, os franceses são derrotados pelos ingleses e pedem armistício em agosto de 1808. Essa é a primeira das três invasões francesas que Portugal vai sofrer ao longo das guerras napoleônicas. As outras investidas ocorrem em 1809 e em 1810. Em 1811, as tropas francesas finalmente se retiram de Portugal. O Príncipe Regente deixa para trás esse cenário adverso e, ainda durante a viagem marítima, na escala que faz em Salvador, vê-se impelido a decretar o fim do monopólio da metrópole sobre o comércio colonial brasileiro. O ato de D. João atende a uma solicitação que lhe é feita por inspiração do Visconde de Cairu, que, quando acadêmico da Universidade de Coimbra, participara do círculo em torno de Sousa Coutinho, conde de Linhares, que debatia o projeto de criar um império luso-brasileiro com sede no Brasil. Oficializa-se essa iniciativa por meio da Carta Régia assinada em 28 de janeiro de 1808, com a ordem de abertura dos portos brasileiros às nações amigas. Texto literal da Carta Régia: "Conde da Ponte, do meu Conselho, governador e Capitão-General da Capitania da Bahia, amigo. Eu, o Príncipe Regente, vos envio muito saudar, como àquele que amo.
Atendendo à representação que fizeste subir à minha Real presença, sobre se achar interrompido e suspenso o comércio desta Capitania, com grave prejuízo dos meus vassalos e da minha Real Fazenda, em razão das críticas e públicas circunstâncias da Europa; e querendo dar sobre este importante objeto alguma providência pronta e capaz de melhorar o progresso de tais danos: sou servido ordenar interina e provisoriamente, enquanto não consolido um sistema geral, que efetivamente regule semelhantes matérias, o seguinte: Primo: que sejam admissíveis nas Alfândegas do Brasil todos e quaisquer gêneros, fazendas e mercadorias, transportadas em navios estrangeiros das potências que se conservem em paz e harmonia com a minha Real Coroa, ou em navios dos meus vassalos, pagando por entrada 24 por cento; a saber, 20 de direitos grossos, e 4 do donativo já estabelecido, regulando-se a cobrança destes direitos pelas pautas ou aforramentos, por que até o presente se regulam cada uma das ditas Alfândegas, ficando os vinhos, água ardentes e azeites doces, que se denominam molhados, pagando o dobro dos direitos que até agora satisfaziam. Secundo: que não só os meus vassalos, mas também os sobreditos estrangeiros, possam exportar para os portos que bem lhes parecer, a benefício do comércio e agricultura, que tanto desejo promover, todos, e quaisquer gêneros e produções coloniais, à exceção do pau-brasil ou outros notoriamente estancados, pagando por saída os mesmos direitos já estabelecidos nas respectivas Capitanias, ficando entretanto como suspenso e sem vigor todas as leis, cartas-régias ou outras ordens, que até aqui proibiam neste Estado do Brasil o recíproco comércio e navegação entre os meus vassalos e estrangeiros. O que tudo assim fareis executar com o zelo e atividade que de vós espero.
Escrita na Bahia, aos 28 de janeiro de 1808. Príncipe" Após essa medida, o Brasil passa a exercer autonomia inédita sobre seu próprio comércio exterior, o que, em última instância, é também a concretização da principal ambição comercial inglesa consignada na Convenção Secreta de Londres, firmada no mês anterior à partida do Príncipe Regente de Portugal. (Por serem provisórios os termos da Carta símbolo da abertura dos portos, alguns anos depois D. João consolida essa medida por meio da Carta Régia da Abertura dos Portos Brasileiros ao Tráfico Mundial, datada de 18 de junho de 1814). Finalmente, em 7 de março de 1808, a corte portuguesa chega ao Rio de Janeiro, que se tornará a sede da monarquia até 1821. Esse fato suscita outra postura da corte em relação à colônia, gerando um processo de ajustamento de interesses entre os portugueses do reino e os da nova sede da corte, o que provoca, em certa medida, uma sedimentação paulatina dos interesses políticos e econômicos da elite no interior da própria colônia. A transferência da coroa portuguesa para o Brasil e a abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional modificam de forma determinante a relação de interdependência econômica histórica entre metrópole e colônia e estimulam o processo de emancipação política e econômica do Brasil. A centralidade do Rio de Janeiro nos assuntos da esfera política interna, conjugada aos fatores mencionados, será determinante, alguns anos mais tarde, na forma como se dará o processo de independência do Brasil. Nos negócios exteriores, o estabelecimento da sede da monarquia no Brasil implica também mudanças significativas: a política externa portuguesa passa a ser feita na nova sede do império, o que reforça a centralidade do Rio de Janeiro em termos administrativos. Outros temas ganham destaque na sua agenda, nomeadamente: a invasão à Guiana Francesa e as investidas na região do Prata com a conquista da Banda Oriental (1816), que é incorporada ao Brasil no ano de 1821 com o nome de Província Cisplatina. Na Europa, as transformações trazidas pelas novas tendências liberais, de certa forma disseminadas pelo rastilho das interferências napoleônicas nas terras efemeramente conquistadas, modificam a estrutura política do sistema monárquico então vigente. Principalmente no período posterior à paz definitiva consagrada no Congresso de Viena (1814-1815), uma onda de revoltas constitucionalistas se propaga e Portugal não passa incólume pela mesma. Na Ibero-América deslancha-se o movimento emancipatório das colônias espanholas. O liberalismo, em graus variados, paulatinamente se impõe em todas as esferas sociais. No Brasil, produz uma ruptura com o sistema colonial que vigorou até 1808. Os ideais liberais, no plano econômico, pregam a redução da interferência do Estado na economia, com preponderância do mecanismo auto-regulador do mercado, e defendem a tese da liberdade comercial e da livre concorrência, em oposição ao exclusivismo colonial. A maior interessada e defensora dessas teorias é a Inglaterra, à época, a nação mais rica e industrialmente desenvolvida, que, como principal parceira econômica de Portugal, exerce forte influência sobre as decisões da coroa portuguesa. No Brasil, à abertura dos portos sucedem outras medidas, igualmente importantes, que fortalecem a produção e o comércio brasileiros. Entre elas, está a revogação, em primeiro de abril de 1808, do Alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibia a instalação de indústrias manufatureiras no Brasil. O Alvará de 1785 determina a extinção de todas as manufaturas têxteis no Brasil, excetuada, apenas, a fabricação de panos brutos de algodão para a produção de roupas para os escravos e de sacos para armazenar a produção agrícola. No ano seguinte, D. João VI decreta a isenção de direitos aduaneiros às matérias-primas necessárias às fábricas nacionais e do imposto de exportação às manufaturas brasileiras. O intuito é o de incentivar a incipiente indústria colonial, proibida de existir para evitar a concorrência com o comércio do Reino e a emancipação econômica da colônia. Porém, os incentivos concedidos não são suficientes para desenvolver significativamente a manufatura local. A forte concorrência dos produtos ingleses, de melhor qualidade, que, após a abertura dos portos, entram sem maiores entraves no território brasileiro e, a partir de 1810, as preferências tarifárias concedidas às importações inglesas tornam impossível competir com os preços dos produtos importados. Apesar dos esforços tendentes ao desenvolvimento de uma indústria, as medidas de apoio à manufatura restam isoladas para reverter a situação de atraso provocada pela proibição de 1785 e pelas vantagens concedidas aos produtos ingleses. Assim, embora se visse livre de muitas das amarras que impedem uma possível diversificação de suas atividades econômicas, a estrutura produtiva colonial do Brasil permanece, em grande medida, inalterada, atrelada à exploração de metais preciosos e de alguns poucos gêneros tropicais, como açúcar, algodão, tabaco, couro, arroz, especiarias e o café; este último se destaca gradativamente na produção interna e no comércio exterior. No campo econômico-financeiro são dignas de registro a instituição do Erário Régio (equivalente a Pasta da Fazenda), em 28 de junho de 1808, com o objetivo de administrar a arrecadação e os gastos públicos, e a criação do Banco do Brasil, fundado em 12 de outubro desse mesmo ano, por meio de alvará expedido por D. João. O capital da instituição é de 1.200 contos, constituído de 1.200 ações de um conto de réis cada uma, destinado à subscrição por grandes negociantes e pessoas abastadas. Apesar do apelo de D. João junto aos governadores das capitanias e das garantias concebidas para atrair investidores, o banco só entra em operação no ano seguinte, quando atinge a quota mínima de 100 contos de seu capital realizado. Até 1812, somente 126 ações são subscritas, um resultado bem aquém das projeções iniciais. Pioneira na Revolução Industrial, a Inglaterra experimenta expressivo aumento de produtividade em sua estrutura manufatureira, o que reforça a demanda por fornecimento de matérias-primas e a busca de novos mercados consumidores. Portugal, um empório comercial então fragilizado pela insegurança advinda do contexto de guerra, necessita do apoio e da proteção inglesa para dar continuidade à política de preservação do seu império. A secular aliança anglo-portuguesa, a mais antiga da Europa, estabelecida nos idos do século XIV, renova-se e atualiza-se. Portugal submete-se às pressões liberalizantes daquele país. Os tratados de aliança e comércio celebrados com a Inglaterra, em 19 de fevereiro de 1810 (ratificados por Portugal, em 26 de fevereiro, e, pela Inglaterra, em 18 de junho, do mesmo ano), inserem-se nesse contexto. São assinados por Lord Stranford, como plenipotenciário do rei Jorge III, da Inglaterra, e por Rodrigo Sousa Coutinho, Conde de Linhares (que negociou os termos da Convenção Secreta), como representante do Príncipe Regente de Portugal e trarão importantes conseqüências no delineamento da etapa inicial do comércio exterior brasileiro. O primeiro deles é o Tratado de Aliança e Amizade, composto de 11 artigos e dois decretos. O tratado autoriza a Inglaterra a comprar e cortar madeiras de construção das florestas brasileiras, prevê direitos recíprocos de navegação das esquadras de um país no mar territorial do outro, estabelece o compromisso de Portugal em não permitir a inquisição em seus territórios da América do Sul e em abolir gradualmente o comércio de escravos. O segundo tratado, de Comércio e Navegação, composto de 34 artigos, no campo mais estritamente econômico, permite aos súditos de ambas as nações o livre trânsito, comércio e estabelecimento nos portos e cidades da outra, além da igualdade de tratamentos e de obrigações tributárias e alfandegárias. Prevê, também, a concessão recíproca do tratamento de nação mais favorecida e outras medidas que visam a facilitar o comércio britânico na Região do Prata e reforçam direitos pré-existentes da exportação de vinhos portugueses para a Inglaterra e de importação de tecidos ingleses por Portugal. Com esse tratado abrem-se, também, as praças brasileiras para assentamento de casas de comércio estrangeiras de importação e exportação. O terceiro acordo, com 13 artigos, consiste em uma Convenção sobre o estabelecimento de Paquetes entre os domínios de Portugal e a Grã-Bretanha, que visa à consolidação de uma linha mensal de serviços postais entre os portos de Falmouth e do Rio de Janeiro. Com a justificativa que os portos lusitanos estão inseguros e uma vez que a sede da monarquia está assentada nessa cidade, faz-se a conexão postal direta entre o Brasil e a Grã-Bretanha, tão importante para as tratativas diplomáticas e comerciais. Os tratados de 1810 significam, na prática, o estabelecimento de obrigações e direitos em bases não-recíprocas em favor da Inglaterra. Cite-se, por exemplo, o direito dos súditos ingleses beneficiarem-se de extraterritorialidade judicial no Brasil, o acesso irrestrito dos navios de guerra ingleses aos portos portugueses, a possibilidade das esquadras inglesas perseguirem navios negreiros em alto-mar e, principalmente, a tarifa aduaneira preferencial de 15% ad valorem, concedida por Portugal à Grã Bretanha, bem inferior à tarifa cobrada dos demais países (24%) e menor, até mesmo, que aquela cobrada dos produtos provenientes de Portugal (16%). Somente em 1818, o governo português, visando à melhoria do fluxo de comércio entre Brasil e Portugal, equipara a tarifa dos produtos provenientes de Portugal àquela aplicada para a Inglaterra no patamar de 15%. Diante da dificuldade da Inglaterra em escoar seus produtos para a Europa por causa do bloqueio continental, os privilégios concedidos por esses tratados são determinantes, por seu turno, para estimular o crescimento das exportações de manufaturas desse país para as terras brasileiras, com reflexos negativos para o desenvolvimento da indústria nacional nascente e para o equilíbrio da balança de pagamentos e da balança comercial. Por outro lado, devido à falta de reciprocidade dos direitos outorgados pelos tratados, o Brasil não obtém garantias efetivas para a exportação de seus produtos tipicamente coloniais, como o café e o açúcar, pois, em que pese a cláusula de nação mais favorecida em favor de Portugal, a Inglaterra continua privilegiando a compra desses artigos provenientes de suas próprias colônias. Se em um primeiro momento, as importações provenientes da Inglaterra garantem o abastecimento interno no Brasil e baixam os custos de vida em geral, o desequilíbrio da balança comercial provocado pelo crescente fluxo dessas importações logo se reflete em desequilíbrio monetário, grandes flutuações cambiais, crescente endividamento externo, baixa renda e reduzido poder aquisitivo da população em geral. Além disso, prejudica sobremaneira a região nordeste, que, desprovida das condições ideais para a produção de café, lamenta a dificuldade de escoamento de seus produtos de exportação tradicionais, como o açúcar, o tabaco, o algodão, a madeira. Outro reflexo dessa ligação desigual com a Grã Bretanha é o fato de, indiretamente, obstruir a possibilidade de busca de novas parcerias comerciais em outros países. Os Estados Unidos, por exemplo, que também floresciam no cenário do comércio internacional, não logravam competir com os privilégios outorgados à Inglaterra. O padrão de vida e de consumo da coroa e dos portugueses recém-chegados era bem superior ao pré-existente na colônia, mesmo se comparado com o da camada mais alta. O acréscimo significativo no número de habitantes do Rio de Janeiro (15 mil pessoas a mais, correspondendo, à época, a um acréscimo de 1/4 na população de 60 mil habitantes da cidade), associado à propagação de hábitos da metrópole na vida da população local, foi um dos principais fatores para o aumento significativo das importações. A vinda da família real para o Brasil tem também muitos outros significados além do econômico-financeiro e comercial. Na esfera política, um acontecimento se destaca: a elevação à categoria de reino, Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 16 de dezembro de 1815, medida tomado por sugestão do representante francês no Congresso de Viena, príncipe Talleyrand. Os Estados envolvidos nas guerras napoleônicas, depois da derrota do Imperador francês em 1814, se reúnem na capital austríaca para traçar a nova ordem internacional e redesenhar o mapa político europeu. Um princípio norteador proposto pela França para alcançar essa meta é o da legitimidade: os estados deveriam voltar a ter a configuração que tinham antes da Revolução Francesa (1789). Buscava-se o equilíbrio entre as nações. Dessa forma, presupõe-se ilegítima a situação de uma colônia abrigar a sede de uma monarquia. A solução encontrada para a permanência da corte portuguesa no Brasil veio a ser a de elevar a colônia à condição de reino o que aprofunda as modificações no campo administrativo. Inaugura-se, também, uma nova etapa no plano cultural da colônia, com a abertura de teatros, bibliotecas, academias literárias e científicas, com vista a atender a demanda da coroa e da população urbana em rápida expansão. Vale registrar a chegada da Missão Artística Francesa, em março de 1816, que trouxe ao Brasil artistas europeus de renome, das áreas de pintura, escultura e arquitetura, como Joaquim Le Breton, João Batista Debret, Nicolau Antônio Taunay, Augusto Taunay e Granjean de Montigny, entre outros, que registrariam em desenhos e aquarelas, as paisagens, o povo e cenas da vida e dos costumes do Rio de Janeiro no período e fundariam a Academia de Belas Artes. Outras importantes contribuições do período joanino no Brasil são a criação da Academia da Marinha e da Artilharia, do arquivo militar, da tipografia régia, da fábrica de pólvora, dos jardins botânicos, de teatros, da biblioteca nacional. Tais mudanças de status do Brasil perante a antiga metrópole, associadas à crescente autonomia econômica e comercial brasileiras, conduzem o país à necessidade de afirmação de sua soberania política ao mesmo tempo em que Portugal demonstra crescente insatisfação com a perda de prestígio e de poder em face da ex-colônia. Esse sentimento de indignação faz eclodir a Revolução do Porto, em 24 de agosto de 1820, no auge do movimento liberal em Portugal. A permanência de D. João VI no Brasil torna-se cada vez mais insustentável devido às pressões da elite portuguesa estabelecida em Portugal, que busca, além da volta da coroa portuguesa à sua terra natal, a adoção de uma nova Constituição nos moldes liberais, com a limitação dos poderes absolutistas, e o retorno do Brasil à sua condição anterior de colônia. A sede da monarquia faz o caminho de volta para Lisboa no ano de 1821, mas as condições na (ex)colônia, que começaram a mudar com a liberalização do comércio exterior, a Abertura dos Portos, no primeiro contato do Príncipe Regente com o solo brasileiro, se transformaram substancialmente. Além de ter deixado de ser colônia, as bases para a separação política definitiva de Portugal já estavam lançadas, bem como as premissas que irão lhe nortear. |