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G20 SOCIAL
O legado da participação popular
Encerramento do G20 Social | Foto G20 Brasil – SECOM/PR
O G20 Brasil encerrou há cerca de um mês, mas já deixou desenhado um novo cenário político nos espaços de concertação internacional: a participação popular. Se o G20 foi historicamente constituído para promover discussões e arranjos entre economias avançadas e emergentes, com o G20 Brasil, também passa a ser reconhecido em sua dimensão inclusiva. O G20 Social introduziu um novo conceito ao criar uma “terceira trilha”, ao lado das tradicionais trilhas política e financeira, no fórum das maiores economias do mundo.
Os países do G20 uniram esforços para tratar de estratégias de combate à pobreza e desigualdades, portanto, para tratar de uma crise que não é essencialmente dos ricos, mas do mundo. Foi a primeira vez em que houve uma tribuna popular aberta dentro do fórum, envolvendo movimentos sociais, comunidades vulneráveis, organizações da sociedade civil e lideranças comunitárias. Um processo inédito que resultou em uma pactuação entre autoridades do G20 e sociedade civil, abrindo espaços para novos arranjos de cooperação e diálogo, que ensejam uma nova possibilidade de liderança e posicionamento do sul global, com um olhar especial para a pobreza, justiça social e os direitos humanos.
Um mês após o evento, entidades da sociedade civil realizam um balanço do evento e trazem suas recomendações para a próxima Cúpula Social do G20, que ocorre em 2025 na África do Sul.
Balanço do G20 Social
Para Douglas Belchior, fundador e coordenador da Uneafro Brasil e representante da Coalizão Negra por Direitos, “o G20 Social no Brasil representou uma oportunidade histórica para ampliar o protagonismo de movimentos sociais e lideranças comunitárias nas decisões políticas globais. A integração entre sociedade civil, governos e organismos internacionais fortaleceu pautas essenciais como justiça social, combate ao racismo estrutural e políticas públicas inclusivas. No Brasil, essa articulação trouxe uma agenda transformadora que precisa ser consolidada, com mais recursos e mecanismos de acompanhamento, e precisará do olhar atento do governo do presidente Lula para os objetivos que colocamos no horizonte do país”.
Para o G20 Social na África, ele recomenda um foco especial no fortalecimento das economias locais e na promoção da soberania alimentar. “É fundamental garantir que a população africana seja protagonista nas decisões que afetam sua realidade. A luta contra o colonialismo econômico e a reparação histórica devem ser centrais nas discussões. O apoio técnico e financeiro aos movimentos sociais locais deve ser contínuo, assegurando que a mobilização popular seja vista como um ativo essencial para o desenvolvimento justo e sustentável”, conclui Douglas.
Judite Santos, da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) considera que o maior legado foi a capacidade do governo pautar temas tão caros para a humanidade. Combater a fome por exemplo é um tema caro para os países do sul global”, afirmou Judite. “Os países do sul global precisam enfrentar com mais contundência o poder do norte global que são os causadores e responsáveis por todos os problemas e crises que enfrentamos hoje no planeta. Neste sentido, o Brasil deixa um legado para o g20 que é, sobretudo, de questionar o poder hegemônico e pautar a necessidade de construir uma nova ordem global que seja, de fato, multilateral” explica.
Ela também destacou as recomendações do MST para o G20 Social da África do Sul. “Precisamos dar continuidade neste processo e avançar para uma participação mais efetiva dos sujeitos históricos do país. Precisamos, também, olhar para os limites do G20 social, pois os eventos de governos, por melhores que sejam, ainda encontram limites na construção da participação social, pois muitas vezes acabam ‘engessando’ os movimentos sociais no formato de governo sem aproveitar de fato o potencial político e organizativo dos movimentos sociais num processo tão importante”, ponderou a representante do MST.
A nova fotografia do G20
Quem foi ao Boulevard Olímpico em novembro, durante o G20 Social, viu um Brasil ávido de cidadania, altamente mobilizado, com pautas estruturadas e inovadoras. Trouxe o cidadão comum, comunidades vulneráveis, movimentos e entidades sociais de mais de 60 países para um amplo diagnóstico dos problemas globais, vistos pela ótica de quem vive na ponta esses problemas, mas também as soluções para estes desafios, pensadas e aplicadas coletivamente pela sociedade.
Entre armazéns históricos e a modernidade do Píer Mauá, a cena era de uma grande praça global. Catadores de material reciclável se reuniram com autoridades para trazer a defesa de uma pauta global em torno de um trabalho verdadeiramente verde, com proteção social do trabalhador e impactos positivos ao meio ambiente. Mulheres se mobilizaram não só em torno do desenvolvimento de uma agenda internacional de pautas afirmativas de gênero, mas também pela afirmação do papel estratégico das mulheres frente na nova agenda para o desenvolvimento.
O Movimento Nacional de Pessoas em Situação de Rua divulgou levantamento feito a partir de dados oficiais de 2022, no qual mostra que há mais de 6,82 milhões de pessoas em situação de rua apenas no bloco do G20. Colocaram o direito à habitação digna, a transição para cidades do futuro e a taxação global dos super-ricos em destaque, com participação ativa nos grupos de Saúde e Economias, justas, inclusivas e antirracistas do C20.
Entidades campesinas apresentaram a vanguarda da experiência brasileira em agroecologia, reflorestamento e recuperação de biomas, preservação de nascentes e rios, bem como em ações de manejo e produção de sementes, fundamentais para a sustentabilidade global. Sindicatos, associações e movimentos de trabalhadores conseguiram inserir na declaração final da alta Cúpula Ministerial do G20, junto a autoridades, a importância do trabalho decente, bem como da equidade de gênero, das finanças sustentáveis. Propuseram a implementação da Agenda para o Trabalho Digno; a criação de um Fundo Global para a Proteção Social (ou mecanismos de financiamento de solidariedade semelhantes), bem como de um programa robusto de qualificação profissional e a criação de 575 milhões novos empregos até 2030 no mundo, a fim de se garantir emprego aos jovens.
Entidades e coletivos da juventude de mais de 29 países trouxeram a pauta da inovação no mundo do trabalho, do financiamento climático, do combate a todas as formas de violência, bem como a criação de programa de refeições escolares na cesta de Políticas da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, baseado na produção e consumo sustentáveis.
Favelas e comunidades vulneráveis de diversos países foram as grandes protagonistas na trilha social do G20. O Favelas 20 e o G20 Favelas trouxeram programação de destaque ao território da Cúpula Social e produziram comunicados oficiais para os líderes do G20.
Liderado pela CUFA, Central Única das Favelas, e as frentes Nacional Antirracista e Parlamentar das Favelas, o G20 Favelas não só levou as favelas para o G20, mas também trouxe o G20 para as favelas, realizou mais de três mil debates e conferências sobre o G20 em cidades do Brasil e de 48 países. O grupo contou com chancela da UNESCO Brasil para desenvolver este imenso processo mobilizatório, além de apoio da London School of Economics para sistematizar suas recomendações e propostas.
Promovido pelo coletivo de comunicação popular Voz das Comunidades, o Favelas 20 (F20) trouxe propostas discutidas por mais de 300 organizações sociais que atuam em favelas do Brasil. Dentre as pautas defendidas, está a criação de um fundo de impacto social, focado em habitação, educação e empreendedorismo, bem como o apoio de bancos multilaterais para investimentos em projetos de infraestrutura na periferia dos países do Sul Global. “Nossas vozes são ouvidas apenas nas operações policiais, mas, com o G20 Social, tivemos a oportunidade de mostrar nossas propostas ao mundo, pois as favelas fazem parte da solução para problemas globais e podem contribuir com políticas públicas estratégicas”, pontuou René Silva, cofundador do F20 e criador da ONG Voz das Comunidades.
Vozes do G20 Social Brasil
Conheça as principais avaliações feitas por lideranças de movimentos sociais da primeira Cúpula Social do G20, bem como suas recomendações para a próxima edição, marcada para novembro de 2025, na África do Sul.
Maria Fernanda Marcelino, Coordenadora nacional da Marcha Mundial das Mulheres
“O maior legado do G20 social seguramente foi a síntese construída pela participação social, ela é um indicativo inicial das mudanças necessárias para frear a sanha destrutiva do mercado. A solução e alternativas já são construídas pelos povos!”
“É fundamental ampliar o debate sobre a taxação das grandes fortunas para combater as desigualdades e sobre o necessário e urgente enfrentamento à fome que deve apontar para a construção da soberania alimentar. É imprescindível que os movimentos sociais e a sociedade civil não participem apenas dos eventos, mas que suas formulações e reivindicações sejam verdadeiramente incorporadas pelos governos”.
Carlos Alencastro Cavalcanti, catador e liderança do Movimento Nacional de Catadores de Material Reciclável
“O mais importante é o Movimento Nacional dos Catadores dar visibilidade a essa pauta se inserindo no mundo, pois o G20 Social não foi apenas um evento nacional. A nossa projeção nesse evento para o mundo onde o G20 tem influência. Portanto, reafirmamos aqui nosso protagonismo pela história e ação concreta de inclusão socioprodutiva da categoria”.
Aline Sousa, Representante do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis e dirigente da CentCoop-DF.
Aos 33 anos, Aline Sousa, catadora desde os 14 anos, mãe de 7 filhos e estudante de Direito, tornou-se símbolo da luta pela valorização dos profissionais de reciclagem. Representante do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis e dirigente da CentCoop-DF, Aline destacou a importância de se projetar a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que estabelece a responsabilidade compartilhada por empresas no gerenciamento de resíduos. Segundo ela, programas de logística reversa têm gerado diálogo com cooperativas e associações de catadores, possibilitando avanços na remuneração pelo serviço essencial que prestam à sociedade. No entanto, também alertou para os desafios enfrentados, como a baixa reciclabilidade de certos materiais – especialmente plásticos, que dificultam a reintegração no mercado, prejudicando a sustentabilidade do trabalho dos catadores –, e para a importância de iniciativas educacionais para combater o analfabetismo entre catadores.
Antônio Lisboa, coordenador-geral do Labour 20 no Brasil e Secretário de Relações Internacionais da CUT Brasil (Central Única dos Trabalhadores)
“Creio que seu maior legado foi a participação social e, para nós, do mundo do trabalho, foi ter colocado a importância do trabalho decente nos debates do G20.
A principal recomendação para o G20 da África do Sul é dar sequência a este imenso processo participativo, manter esse avanço que a gente teve no Brasil de participação social organizada. As autoridades do G20 devem ouvir os representantes da sociedade civil e os grupos de engajamento, que precisam ter a possibilidade de falar diretamente para os sherpas sobre suas recomendações, como ocorreu este ano no Brasil.
Outra coisa também fundamental é que o G20 entenda que as suas discussões – e suas deliberações – vão para além do G20. As maiores economias do mundo impactam diretamente nas economias que não estão dentro do G20. Portanto, ao países-membro devem nortear seus debates sob essa perspectiva, como foi aqui no Brasil, sempre olhar para o mundo inteiro e não apenas para os países do G20”.
Flávio Lino, Secretário-Executivo do Movimento Nacional de Pessoas em Situação de Rua
“A inovação do Governo brasileiro na pessoa do Pr. Lula colocou os movimentos sociais e a sociedade civil num momento inédito e histórico do bloco, negociando e estabelecendo nas mesas de diálogo com os líderes globais, e isso ficará marcado por gerações.O MNPR/RJ assinou um documento manifesto onde 50 entidades da sociedade civil pedem a taxação dos super ricos e solicitou a inclusão da população em situação de rua na nova reforma da governança global. O documento foi entregue ao ministro da fazenda Fernando Haddad”.
“A avaliação do MNPR/RJ que a pauta da PopRua deveria ter sido mais explorada justamente porque o Brasil é referência de boas práticas nas políticas de proteção dessa população e que a África do Sul debata população em situação de rua, sua diversidade e especificidades de maneira real e sendo norteado pela humanização e respeito a dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos”.
Douglas Belchior, fundador e coordenador da Uneafro e representante da Coalizão Negra por Direitos
“O avanço mais relevante foi a criação de um fundo global para o enfrentamento das desigualdades sociais, priorizando comunidades negras, indígenas e tradicionais. Essa iniciativa não apenas garante apoio financeiro, mas também impulsiona políticas públicas voltadas para educação, saúde e geração de renda do nosso povo nas quebradas e no interior do país. É um marco que eleva as demandas populares ao centro da diplomacia mundial e fortalece a luta por um mundo mais justo e igualitário”.
Maureen Santos, Coordenadora do Núcleo de Políticas Alternativas da FASE e integrante do Grupo Carta de Belém
“A avaliação é que ter sido no Brasil favoreceu muito o próprio espaço do G20. O Brasil trouxe agendas que são muito importantes, como a própria questão do combate à pobreza e à desigualdade, a questão da taxação de grandes fortunas, que são eixos realmente centrais para a agenda global. Isso foi muito positivo, além do debate sobre a participação social.
Esperamos que a África do Sul possa fortalecer a continuidade desse processo. O G20 não tem uma governança, um secretariado, e acaba que as agendas se sobrepõem, ficam muito por conta de cada país, não há continuidade”.
“Acho que essa oportunidade do G20 Social foi muito importante, mas, ao mesmo tempo, penso que as organizações sociais poderiam ter um pouco mais de autonomia, no caso, em relação às escolhas e definições de agenda. Obviamente, o governo tem que oportunizar diálogos com os espaços oficiais, mas participação já tem uma metodologia própria, suas escolhas próprias.
Erika Moreira, Coordenadora Estadual da União Nacional por Moradia Popular do Pará
“O G20 Social foi um encontro de várias entidades e lideranças que costumam ser ou menos contempladas ou excluídas de políticas públicas. Para nós do Pará foi a oportunidade de experimentar o que vamos viver em Belém, enquanto cidade sede da COP 30, em 2025”.
“A nossa recomendação é que haja maior interação entre os representantes dos governos e as lideranças populares”.
Victor De Wolf, Presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos)
“O legado foi o da participação popular. Entender que a sociedade civil faz parte do processo democrático, deve ser ouvida e deve haver diálogos. Para nós, da comunidade LGBTI, foi um momento único de construção de sinergia para apresentar aos tomadores de decisão quais as nossas perspectivas de sociedade, que mundo queremos construir”.
“Acredito que o G20 da África possa aprofundar ainda mais, criando novos canais de diálogo, aumentando a participação global nas discussões, entre outras ações”.