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SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL
CONSEA envia ofício para a ANVISA sobre a rotulagem nutricional dos alimentos embalados
- Foto: CONSEA
Na última quarta-feira (11), o Consea enviou um Ofício para ANVISA manifestando surpresa, indignação e preocupação com a publicação da RDC nº 819/2023, alterando a RDC nº 429/2020, que dispõe sobre a rotulagem nutricional de alimentos embalados, com o objetivo de postergar o prazo de implementação da norma por mais um ano, ao permitir o esgotamento do estoque de embalagens e rótulos adquiridos até 08 de outubro de 2023.
A alimentação adequada é um direito humano fundamental, cuja proteção visa a salvaguardar não apenas à saúde, mas também à qualidade de vida da população, nos termos do que determinam normas e documentos de políticas públicas em âmbito local, regional e global. A alimentação é reconhecida também como direito pelo artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelo artigo 11 do Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e no artigo 6º da nossa Constituição, que trata dos direitos sociais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) também reitera que todos os Estados têm o poder e o dever de avançar no direito à saúde, que implica obrigações de respeitar, proteger e implementar esse direito, o qual é indissociável ao direito humano à alimentação adequada.
Sendo a alimentação adequada e saudável um direito previsto na Constituição Federal brasileira, deve ser assumida como prioridade e assegurada pelo Estado brasileiro. Para garantir a alimentação adequada e saudável e enfrentar todas as formas de má-nutrição, são necessários esforços de diversos setores, coordenados entre governo e sociedade, na construção de respostas emergenciais associadas a medidas estruturais para enfrentamento de seus determinantes sociais e comerciais.
A proteção geral dos direitos à saúde e à alimentação também envolve a defesa dos direitos de consumidores. Uma das maneiras mais eficazes para proteger as consumidoras e os consumidores é garantir o acesso a informações corretas e compreensíveis sobre os produtos, como previsto no Código de Defesa do Consumidor. Neste sentido, os rótulos dos alimentos e bebidas embalados devem conter informações explícitas, adequadas e objetivas, que permitam à população saber as características dos produtos e sua composição, em linguagem acessível, de modo que seja possível a compreensão, inclusive, dos riscos que podem trazer à saúde, independentemente da quantidade consumida.
No uso de suas atribuições legais, o Consea tem atuado incansavelmente em apoio a estratégias de promoção da alimentação adequada e saudável, incluindo aqueles referentes à rotulagem nutricional. Nesse sentido, por diversas ocasiões, o Consea se manifestou sobre a importância de atualizar as normativas relacionadas à rotulagem de alimentos. Considerando a necessidade do aprimoramento da legislação vigente referente à rotulagem de alimentos no Brasil, o Consea enviou para a Anvisa a Recomendação nº 7/2013, que explicitou a necessidade de melhorar a rotulagem nutricional para facilitar a compreensão e a legibilidade da informação e combater práticas enganosas e abusivas. Em resposta a essa recomendação, foi instituído pela Portaria nº 650, de 29 de maio de 2014, um Grupo de Trabalho no âmbito da Anvisa, com o objetivo de auxiliar na elaboração de propostas regulatórias relacionadas à rotulagem nutricional de alimentos, que, após processo de Análise de Impacto Regulatório e consulta pública, resultou na publicação da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 429/2020 e da Instrução Normativa (IN) nº 75/2020.
Destaca-se que a aprovação dessas normas é um avanço na agenda regulatória de alimentos, tendo em vista o esforço realizado para que estas fossem baseadas em evidências e que o processo de sua elaboração garantisse a participação da sociedade civil. Ainda que haja espaço para seu aprimoramento, a norma é de extrema relevância para a garantia dos direitos à alimentação adequada e saudável e à informação, sendo um componente fundamental para um ambiente alimentar promotor da alimentação adequada e saudável.
Considerando que tal processo foi iniciado em 2014, momento em que já se identificava a necessidade da atualização da rotulagem e que a Resolução foi publicada em 2020, com extenso prazo de adequação para o setor regulado que finalizaria somente em outubro de 2023, o Consea recebeu com surpresa, indignação e preocupação a prorrogação deste prazo por mais um ano, por meio da RDC nº 819/2023.
Assim, é importante considerar que a discussão não é recente, não sendo possível aceitar que a população tenha que, por mais um ano, lidar com linguagem técnica e informação de forma ilegível ou em locais de difícil visualização, bem como realizar cálculos para comparar dados de tabelas nutricionais baseadas em porções diferentes.
A extensão deste prazo significa também o adiamento da garantia dos direitos à alimentação adequada, à saúde e à informação. A não aplicação imediata da norma significa, ainda, que o Estado brasileiro continua promovendo indiretamente o consumo de alimentos ultraprocessados ou embalados com alto teor de açúcar, gorduras saturadas e sódio.
A adoção da Rotulagem Nutricional Frontal é promovida pelos organismos internacionais e referendadas em compromissos brasileiros[1],[2],[3], como estratégia cientificamente comprovada para promover escolhas alimentares mais conscientes e saudáveis[4], contribuindo para a prevenção e o controle das doenças relacionadas à má alimentação.
Destaca-se que as principais doenças e causas de morte no Brasil e no mundo atualmente estão relacionadas à má-alimentação, a exemplo das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) como obesidade, diabetes, hipertensão, síndrome metabólica e alguns tipos de câncer. Atualmente, as DCNT representam barreiras para a diminuição da pobreza no mundo e para o desenvolvimento sustentável. São responsáveis pela morte de 40 milhões de pessoas anualmente, sendo que 17 milhões delas ocorrem antes dos 70 anos e 87% ocorrem em países de baixa e média renda[5],[6]. No Brasil, as DCNT são a maior causa de morte da população, constituindo-se em uma epidemia no país. As DCNT atingem mais de 700.000 pessoas por ano no país e, em 2019, cerca de 50% da população possuía ao menos uma DCNT diagnosticada. Especificamente em relação à obesidade, de acordo com dados de 2022 do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), cerca de um quarto da população brasileira acima de 18 anos estava com obesidade (24,3%) e mais de 60% apresentavam excesso de peso[7]. Projeções mostram que, nos próximos 30 anos, o excesso de peso será responsável por, aproximadamente, 60% dos casos de diabetes, 18% dos casos de doenças cardiovasculares, 11% dos casos de demência e redução de três anos na expectativa de vida dos brasileiros. Estima-se uma duplicação dos custos de saúde relacionados à obesidade, de US$ 5,8 bilhões em 2010 para US$ 10,1 bilhões em 2050[8].
Vale ainda registrar que o argumento de que a prorrogação do prazo visa evitar o descarte de embalagens já produzidas não procede, uma vez que há a possiblidade de se usarem etiquetas que adequem as embalagens à RDC nº 429/2020 e à IN nº 75/2020, assim como foi feito com a RDC nº 26/2015 da Anvisa (hoje incluída na RDC nº 727/2022), referente a ingredientes alergênicos em alimentos.
Nesse cenário, desde a publicação da RDC nº429/2020, aguardamos a implementação na íntegra da Resolução para que o direito à informação e à alimentação adequada e saudável sejam garantidos. Os prazos originais foram mais do que suficientes para o setor regulado se adequar e planejar seus processos operacionais, considerando que participou de todas as etapas de consulta e os resultados finais foram amplamente divulgados.
Diante do exposto, o Consea, por meio da Presidenta e da Comissão Permanente 2 - Ambientes Alimentares, Alimentação Adequada e Saudável e Nutrição, solicitou que a Anvisa revogue a RDC nº 819/2023, prezando pela adequada condução de suas atividades regulatórias.
Referências
[1] Brasil. Ministério da Saúde. Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas e Agravos não Transmissíveis no Brasil 2021-2030. Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis. – Brasília : Ministério da Saúde, 2021. 118 p. :il.
[2] Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Alimentação e Nutrição / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. 1. ed., 1. reimpr. – Brasília : Ministério da Saúde, 2013. 84 p. : il.
[3] OPAS. Plano de Ação para Prevenção da Obesidade em Crianças e Adolescentes [Internet]. Washington DC: OPAS; 2014. Available at: https://www.paho.org/bra/images/stories/UTFGCV/planofactionchildobesity-por.pdf?ua=1
[4] Crosbie E, Gomes FS, Olvera J, Rincón-Gallardo Patiño S, Hoeper S, Carriedo A. A policy study on front-of-pack nutrition labeling in the Americas: emerging developments and outcomes. Lancet Reg Health Am. 2022 Dec 1;18:100400.
[5] World Health Organization (2017). Non-communicable diseases: media center [acesso online]. Geneva: WHO, 2017. Disponível em: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs355/en/
[6] Murray CJL. et al. Global burden of 87 risk factors in 204 countries and territories, 1990–2019: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2019. The Lancet, London, v. 396, n. 10258, p. 1223-1249, Oct. 2020.
[7] Ministério da Saúde. VIGITEL Brasil 2023: Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico [Internet]. Brasília, DF; 2023. Available at: www.saude.gov.br/svs
[8] OECD. The Heavy Burden of Obesity [Internet]. Paris: OECD; 2019 [citado 8 de outubro de 2023]. (OECD Health Policy Studies). Available at: https://www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/the-heavy-burden-of-obesity_67450d67-en