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Precisamos de um sistema alimentar melhor para o planeta e para a saúde, diz pesquisador
Para Boyd Swinburn, atividade agrícola atual se restringe a apenas alguns grãos, cerca de quatro tipos deles, o que é insustentável:“As rodas desse carro estão caindo. Não está mais funcionando”. Imagem: Ivana Diniz/Consea
O atual modelo de produção agrícola está esgotado. Não é mais capaz de oferecer uma dieta de boa qualidade à população do mundo, afirma o professor Boyd Swinburn, especialista em Nutrição Populacional e Saúde Global da Universidade de Auckland (Nova Zelândia), e diretor, na Organização Mundial da Saúde (OMS), do Centro para a Prevenção da Obesidade, da Universidade de Deakin em Melbourne (Austrália).
Para o pesquisador neozelandês, o grosso da atividade agrícola atual se restringe a apenas alguns grãos, cerca de quatro tipos deles. E acaba aí, na maioria das vezes, o que é insustentável. “As rodas desse carro estão caindo, como dizemos em inglês. Não está mais funcionando”, alerta. “Precisamos de um modelo que seja melhor para o planeta e para a saúde humana”.
Outro problema, segundo ele, é que o atual sistema aprofunda as desigualdades. “Os ricos ficam cada dia mais ricos, corporações se fundem e estão cada vez mais concentradas, o sistema alimentar está cada vez mais concentrado, e esta não é uma boa receita para a resiliência que precisamos ter na área alimentar no futuro”.
O professor Boyd participou do Congresso Brasileiro de Nutrição (Conbran 2018), realizado no final de abril em Brasília, evento do qual participaram diversos integrantes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Na oportunidade, ele falou sobre a Rede Internacional para Monitoramento de Ambientes Alimentares (Informas), já utilizada em 35 países. A rede aplica metodologia padronizada para coleta de dados sobre rotulagem, publicidade e política de preços de alimentos, entre outras informações.
Veja, a seguir, a entrevista de Boyd Swinburn ao site do Consea.
Como está o Brasil no uso da metodologia da rede Informas?
O Brasil tem feito grandes avanços, tanto que já utiliza seis ou sete módulos da Rede Informas, cujo programa é feito de dez módulos. São módulos para medir os avanços governamentais, os avanços da indústria, para medir a composição dos alimentos, rotulagem, preços e marketing direcionando a crianças. E mais um sobre a comercialização de alimentos. O Brasil é muito atuante e isso é muito bom de ver.
A FAO diz que o país adotou políticas públicas importantes, que conseguiram retirá-lo do Mapa da Fome em 2014. Como estamos agora, na sua avaliação?
Mostrei um slide, durante minha apresentação no Conbran 2018, sobre os progressos que o Brasil fez desde 1990 até 2016. Foi espetacular a enorme redução da subnutrição nesse período. O Brasil fez um trabalho fantástico. Muitos outros países, especialmente na África e Sudeste Asiático, ainda estão lutando contra a desnutrição, com muito pouco progresso nessa área. Mas o que ocorreu, ao mesmo tempo, foi um avanço na obesidade, diabetes e outros riscos advindos da alimentação com muito sal, açúcar e gordura.
Constata-se que houve pouco avanço na introdução de alimentos com muitas fibras na dieta, como frutas e vegetais. Então, enquanto a desnutrição decresceu, esses outros fatores cresceram. E agora é preciso pensar na má-nutrição em todas as suas formas, colocando todos os fatores em conjunto. Não pensar políticas apenas para um grupo em particular, que tem acesso a poucas calorias, ou para este outro grupo, que tem excesso de calorias. Esta não é a forma correta de abordar a questão. A forma correta é: precisamos ter uma dieta de boa qualidade, com variedade alimentar (diversificação de alimentos) e acesso a comidas saudáveis para toda a população.
Como obter variedade alimentar em um sistema de produção que investe maciçamente em monoculturas e em pouca diversidade de alimentos?
Quando falo de variedade alimentar estou me referindo a comida saudável, aquela que tradicionalmente tem sido usada no dia a dia. Não estou falando de ter diversos tipos de batata frita, por exemplo, nem de diferentes espécies de cereais com açúcar. Estou falando de variedade de comida de verdade.
Esse tipo de alimentação é possível quando a agricultura é feita por grandes empresas que atuam em vastas extensões de terra?
Na verdade, o que existe no atual modelo se restringe a alguns grãos, cerca de quatro tipos deles. E acaba aí, na maioria das vezes. Esse é o modelo que desenvolvemos, como sociedade, em todo o mundo. E, de muitas maneiras, ele teve seu valor. Ele conseguiu tirar grandes parcelas de populações da fome e trouxe muita prosperidade a diversos países. Mas já chegamos ao limite até onde deve ser mantido. As rodas desse carro estão caindo, como dizemos em inglês. Não está mais funcionando.
Precisamos de novos modelos. Que levem em consideração, especialmente, questões de degradação ambiental causada pela agricultura na água [com agrotóxicos] ou gases de efeito estufa lançados na atmosfera, a devastação florestal, o desmatamento, limitações genéticas com sementes transgênicas e por aí vai. É um rol de problemas que o atual modelo apresenta e precisamos de uma transformação total do sistema alimentar.
Como fazer com que as pessoas acreditem que tal transformação é possível? Como convencer sociedade e empresas de que a mudança é viável?
De fato, há uma enorme resistência hoje. [Mas é preciso lembrar que] no passado conseguimos criar os sistemas de produção que foram capazes trazer a humanidade até os dias atuais. É um tipo de agricultura que já existiu e que poderá voltar a existir, com os devidos ajustes. Um sistema que seja melhor para o planeta e para a saúde humana. Comecemos com uma consideração sobre toda a quantidade de terra que tem sido destinada à produção de carne e para alimentar os rebanhos que fornecem essa carne. É um gigantesco desperdício de energia para alimentar os nove bilhões de pessoas do planeta. Podemos ser muito, muito mais inteligentes com relação à agricultura no século 21.
E ainda assim ser capaz gerar recursos suficientes para viver da agricultura?
Sim, totalmente capaz. Talvez não seja um dinheiro destinado apenas a grandes corporações, como hoje. O desejável é que tenhamos esses recursos compartilhados de maneira mais justa. Porque esse aliás é um outro problema do atual sistema. Ele tem construído grande desigualdades. Aprofundado as desigualdades, em que os ricos ficam cada dia mais ricos, corporações se fundem e estão cada vez mais concentradas, o sistema alimentar está cada vez mais concentrado. E esta não é uma boa receita para a resiliência que precisamos ter na área alimentar no futuro.
No 8º Fórum Mundial da Água, no Brasil, empresas reivindicaram o direito de participar do fornecimento de água e do saneamento. Especialistas dizem que não é uma boa ideia. Como o senhor vê essa questão?
Costumam surgir enormes problemas quando se envolve negócios no desenvolvimento de políticas públicas, como o fornecimento de água. É um risco e uma receita quase certa para o desastre, como ocorreu durante a Guerra da Água, na Bolívia, entre janeiro e abril de 2000. Vimos problemas se repetiram frequentemente, de novo e de novo, por causa da forma como os grandes negócios podem influenciar os governos a criarem políticas públicas que os beneficiem.
Então a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização da ONU para Alimentação e Agricultura (FAO) e a própria ONU estão intensificando grandemente seus esforços no sentido de garantir que, na área alimentar, os conflitos de interesse sejam bem gerenciados. Especialmente no que tange ao desenvolvimento de políticas públicas. A parte de implementação das políticas públicas não tem sido um problema tão grande. Algumas vezes, as corporações têm sido capazes de implementar algumas políticas públicas. Mas sempre aparecem problemas quando as corporações convertem poder econômico em poder político, a fim de criar políticas públicas que as beneficiem, ao invés de beneficiarem a população ou em benefício do planeta.
Qual a situação no seu país, a Nova Zelândia?
Gostaria de terminar uma análise sobre o Brasil. Porque o Brasil é um dos principais atores da política alimentar e da produção agrícola, em algumas áreas tem sido inclusive um grande líder. Então, internacionalmente falando, muitas nações olham para o Brasil, para sua atuação no espaço nutricional, como líder em algumas áreas especiais, onde o país tem exercido liderança.
Implementou diretrizes que incorporaram sustentabilidade, aspectos sociais e os aspectos ligados à água na alimentação. Muito importantes essas diretrizes, pois estão na liderança mundial. Gostaria que a Nova Zelândia tivesse diretrizes nutricionais e alimentares como tem o Brasil.
Também importantes estruturas que o país construiu, como o Consea, que permite à sociedade civil e à academia terem voz na construção de políticas públicas, que moldaram uma plataforma-modelo. Eu escrevi sobre isso na Revista Lancet, sobre como nós, outros países, deveríamos operar os sistemas alimentares. Tivemos um painel inteiro sobre o Consea e o sistema brasileira de democracia alimentar, de democratização da alimentação e da nutrição. Tem sido excelente.
Há algumas políticas [como o PAA e o Pnae] que conectam diretamente pequenos agricultores com a alimentação escolar. Isso é totalmente sensato. E, interessante, é ao mesmo tempo totalmente radical. Totalmente lógico, mas é totalmente radical. Tente fazer isso nos Estados Unidos e você não vai chegar a lugar algum.
Por quê?
Porque as grandes empresas têm controle demais sobre o sistema alimentar. Elas argumentar que para ter um sistema de fornecimento alimentar consistente, não dá para depender apenas de pequenos agricultores. Então, dizem que você precisaria sempre das grandes empresas para isso. Para garantir a consistência e estabilidade do sistema alimentar, a segurança alimentar e blá blá blá. Mas o Brasil está nos mostrando, de muitas formas, que há um caminho.
Sabemos que o Brasil tem muitos problemas, como a Nova Zelândia tem também. A Nova Zelândia é um pequeno país, mas tem uma vasta atividade agrícola, que constitui uma parte considerável da nossa economia. Particularmente, essa parte da agricultura que é muito danosa ao meio ambiente, que é a criação de gado leiteiro.
Por isso, acho que países como a Nova Zelândia e Brasil, que são grandes líderes na agricultura, precisam também liderar o caminho para como podemos trazer as contribuições da agricultura para o campo da eliminação dos gases de efeito estufa, de poluição da água. Como incorporar essas questões na agricultura de forma justa? Os dois países deviam liderar esse debate e não ficarem remanchando e procrastinando a discussão, como ocorre atualmente.
E quanto a outros países? O que acontece na África e na Ásia?
A África continua lutando contra a desnutrição e corrupção política, pobreza, violência. Então, acredito que o mundo tem um grande compromisso de tentar levantar a África da pobreza e da corrupção. Para que se torne uma sociedade. O mesmo ocorre em alguns dos países asiáticos.
Por isso, acho que em outras regiões, como a América Latina, deveriam estar na liderança. Porque dispõem de grandes áreas agrícolas e de pessoal qualificado. Vimos a América Latina decolar alguns anos atrás e, apesar das dificuldades de hoje, creio que as melhores soluções estão aqui. Vim aqui, ao Brasil, para aprender mais sobre elas.
Reportagem: Ivana Diniz Machado
Fonte: Ascom/Consea