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Para Fian, maior vitória da 5ª + 2 foi reunir representantes significativos da sociedade brasileira
Flávio Valente destaca importância do Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama 2018), pois significa que povos e governos estão começando se articular para preservar bens comuns da população. Imagem: Victor Moura/Consea
O médico Flavio Luiz Schieck Valente, militante internacional e histórico da saúde pública, da segurança alimentar e dos direitos humanos, avaliou como positivo o Encontro Nacional 5ª+2, realizado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), de 6 a 8 de março, em Brasília. “A grande vitória desse encontro foi reunir um conjunto significativo de representantes de um amplo espectro da sociedade brasileira, para discutir como se organizar para reverter o quadro atual, em que se constata aumento da mortalidade infantil e da fome”, afirmou.
Quanto a um cenário de futuro, em relação a temas como segurança alimentar e desigualdades, o professor, mestre em Saúde Pública pela Escola de Saúde Pública de Harvard, na Alemanha, mostrou-se crítico. “Nos. últimos 30 anos houve uma enorme mudança nas políticas internacionais que, sob o pretexto de estabelecer um comércio livre, na verdade favoreceu empresas e investidores em detrimento dos direitos humanos”.
Para Flávio, ex-integrante do Consea e membro atuante do Food First Information and Action Network (Fian International) desde 2007, essa nova política internacional tem causado impactos negativos, cujas consequencias são até difíceis de imaginar, como a devastação da Amazônia equatoriana e o aumento de preços das terras brasileiras. Nunca é demais lembrar, disse ele, que a posse da terra está diretamente ligada à produção de alimentos e à questão da segurança alimentar e nutricional.
A seguir, a entrevista de Flávio Valente ao site do Consea:
Como o senhor avalia a conjuntura atual quanto à segurança alimentar e nutricional?
A segurança alimentar tem muitos fatores que estão conectados à terra. E, neste momento, o Brasil está no centro de uma grande especulação de terras. Gigantes do setor de fundos de investimentos internacionais, como o Teachers Insurance and Annuity Association-College Retirement Equities (TIAA), que tem capital estimado de US$ 1, 600 trilhão e representa um fundo de pensão dos professores norte-americanos, estão investindo pesado na área, o que provoca que a terra aumente de preço. A elevação atrai grileiros, que logo pensam em ganhar dinheiro atacando as comunidades tradicionais na base da violência, da intimidação. Pegam as terras deles e depois vendem a essas empresas. O movimento está gerando um ciclo vicioso de aumento do preço da terra e de expulsão das pessoas, ao mesmo tempo em que promove um desmatamento abusivo da região do cerrado, especialmente na região do chamado Matopiba, que engloba o Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Qual a importância do cerrado na questão da segurança alimentar?
Quando a região de cerrado brasileiro está sendo destruída, você perde os rios. Há rios temporários que já estão desaparecendo. Os aquíferos estão perdendo água e a cada dia se verifica uma seca cada vez maior em muitas localidades, o que vai gerar problemas não somente no Matopiba, mas também na Amazônia e no Nordeste. Porque, na realidade, o cerrado, a região do Matopiba, é onde nascem as principais bacias hidrográficas do Brasil e se alimentam os aquíferos. Se houver um esvaziamento dos aquíferos, teremos problemas realmente sérios de água no país todo, não apenas no cerrado.
Essas empresas podem pôr em risco a segurança hídrica de um país?
Podem. Mas como chegamos a essa situação? Nos últimos 30 anos houve uma enorme mudança nas políticas internacionais, com o estabelecimento do chamado Consenso de Washington, sob a liderança da Inglaterra e dos Estados Unidos. Sob a premissa de se estabelecer um comércio internacional livre, favoreceu-se os investidores, em detrimento das garantias nacionais e dos direitos humanos. Temos hoje então um comércio internacional cujas regras são controladas pelos grandes investidores, não pelos governos. O que está acontecendo é que este projeto vem levando a uma concentração progressiva de renda no mundo inteiro. Verifica-se o crescimento do número de milionários a cada dia, mas ao lado de uma redução da renda da maioria da população. Observamos uma concentração cada vez maior da renda, com o aumento dos mais pobres. De outra forma, pode-se dizer que está havendo uma exclusão cada vez maior das pessoas da riqueza. E, especialmente nos últimos cinco anos, esse cenário vem se caracterizando pelos grandes fundos de investimentos internacionais investindo na compra de terras.
Como uma nação deve agir diante uma especulação dessa forma?
Às vezes não pode fazer muita coisa. As empresas passaram a ter um papel cada vez mais importante na economia mundial, porque têm liberdade de investir, a despeito de qualquer consequência que tal investimento possa trazer. Por exemplo, as empresas mineradoras destroem as florestas, matas, contaminam os rios, prejudicam as comunidades e as plantações com venenos e tudo mais. Vemos isso constantemente sendo noticiado e relação a rios brasileiros. As hidrelétricas, construídas mais para abastecer as indústrias do que as pessoas, também destroem territórios tradicionais, as comunidades são despejadas. E isso está acontecendo de acordo com tratados bilaterais de comércio e de investimento.
Os países concordam em estabelecer esse tipo de tratados bilaterais com empresas?
Sim, tanto é que já existem cerca de 3 mil tratados bilaterais hoje em dia, entre empresas e diferentes países. A questão é que esses tratados definem que se houver algum problema para a empresa, porque o governo daquele país faz alguma restrição ou alguma regulamentação que dificulte sua atuação, ela pode recorrer junto a câmaras de arbitragens privadas, que são geralmente empresas de advocacia contratadas para tomar uma decisão no âmbito judicial. É um judiciário privado, criado pelo sistema de tratados bilaterais. E é finalístico. À decisão tomada por ele não cabe recurso. Se um governo perde uma ação, uma queixa contra as empresas, tem de pagar uma multa e não pode recorrer nem ao seu Congresso e nem à Justiça do país. Tem de pagar. Então, o que está acontecendo no mundo hoje é que os direitos dos investidores estão se sobrepujando aos direitos humanos, aos direitos nacionais, aos direitos das nações. À soberania.
Há uma reação da sociedade a esta situação?
Há, só que ela não é uma reação maciça. Vem em prestações, digamos assim. Podemos pegar o caso de Correntina (BA), em que a população se rebelou contra as outorgas públicas de água que ultrapassavam a quantidade hídrica do rio. E, ao ultrapassá-la, o rio estava secando, estava faltando água para as pessoas. A população se rebelou contra isso e mais de cinco mil pessoas invadiram uma fazenda e destruíram o sistema de irrigação.
O problema foi solucionado?
Ainda está sendo, não acabou. Mas, sem dúvida alguma, após a mobilização da população, o governo do estado está revendo as outorgas. Mas precisou haver uma ação desse tipo, inclusive com cinco mil pessoas estão sendo criminalizadas por terem tomado a iniciativa de quebrar equipamentos, porque o poder público se omitiu de tomar as devidas medidas, antes que o problema acontecesse. A população deve estar alerta. O Fórum Alternativo Mundial das Águas (Fama), que será realizado em Brasília de 17 a 22 de março, será uma oportunidade muito importante para discutir como as comunidades e os povos podem reagir à tendência de proteger apenas os interesses das empresas que desejam a privatização de toda a água do mundo. Elas não podem ter o monopólio global sobre esse que é um bem comum da humanidade. Agora é o momento de a população defender que a água não é uma mercadoria. E nem os aquíferos. É preciso discutir uma estratégia para a sociedade se contrapor a esta iniciativa.
Qual a expectativa do senhor em relação ao Fórum Alternativo Mundial das Águas?
Embora a correlação de forças seja muito desigual neste momento, estou otimista. Porque os povos e governos estão começando se articular para tomar iniciativas e reagir. Há um caso interessante do Equador, por exemplo, que foi condenado por uma câmara de arbitragem privada a pagar bilhões de dólares a uma petroleira por “perda de lucros”, após ter multado essa empresa por danos ambientais na região amazônica do país. Sem direito a recorrer ao seu próprio Judiciário ou ao Poder Legislativo Nacional. Agora, o Equador, a África do Sul, a Indonésia e alguns outros países do hemisfério Sul decidiram entrar conjuntamente com uma solicitação ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), a fim de que seja elaborado um tratado vinculante de regulação de direitos humanos. Portanto, vamos esperar que ocorram as necessárias mudanças que a maioria da população do mundo deseja.
(Entrevista: Ivana Diniz Machado)
Fonte: Ascom/Consea