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Novos conselheiros: pedagoga que conheceu Chico Mendes e hoje é professora na floresta
Quero trazer para o Consea nossa luta para expandir a produção da floresta, como borracha, castanhas, açaí e frutas. Há cooperativas comprando essas matérias-primas para fazer produtos finais lá mesmo, como os lindos sapatos de borracha que estão sendo fabricados nas próprias reservas, gerando renda maior. Imagem: Ivana Diniz
Ela conheceu o ambientalista Chico Mendes em 1988. Era o que faltava para a pedagoga paulista Fátima Cristina da Silva abraçar de vez o chamado da floresta e se unir à luta dos extrativistas do Acre, onde mora. “Chequei aqui em 1987, trazida pelo meu marido, que é do estado. Gostei tanto do Acre que fiquei morando aqui e ele voltou para São José dos Campos (SP)”, conta ela, que assume o papel de conselheira, nesta quinta-feira (18), no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Nesta entrevista, Cristina, como é mais conhecida, falou sobre sua vida no Acre, o legado de Chico Mendes para os extrativistas, as novas lideranças e os grandes desafios que ameaçam os chamados “povos da floresta”, designação de populações que tradicionalmente vivem da extração não predatória de matérias-primas, como o látex e a castanha do Pará.
Essa denominação, aliás, foi criada pelo próprio Chico Mendes, em uma compreensão de que grupos como seringueiros, indígenas, castanheiros, pequenos pescadores, quebradeiras de coco e populações ribeirinhas tinham atividades semelhantes e que, portanto, deveriam lutar juntos pela criação de reservas extrativistas. Essas áreas servem de moradia e proporcionam meios de vida a seus habitantes. Assim, foi criado um novo conceito: utilizar os recursos naturais e preservar o meio ambiente, ao mesmo tempo.
Confira a seguir a entrevista da nova conselheira.
A senhora vem de um estado de tradição no extrativismo, berço de grandes lutas nesta área. O que ficou do legado de Chico no Acre?
Conheci Chico Mendes em 1988. Havia chegado há um ano no estado. Nessa época, eu trabalhava na Fundação de Cultura e Desporto do Acre, presidida pelo escritor Francisco Gregório Filho. Chico chegou lá pedindo ajuda para fazer uma ligação, pois estava sofrendo ameaças e todos os telefones da família e amigos estavam grampeados. Nós permitimos, porque era um momento de muita perseguição ao movimento extrativista. Então, todo o pessoal do movimento artístico cultural atuava em apoio a eles. A luta cresceu com todo mundo junto, na construção dos Centros de Trabalhadores da Amazónia (CTAs) e do então Conselho Nacional de Seringueiros, liderada pelo próprio Chico (a entidade hoje se chama Conselho Nacional das Populações Extrativistas). Foram grandes avanços. Pouco depois desse telefonema, outro líder seringueiro, Juarez Leitão, pediu-me para assessorar a líder comunitária Raimunda Gomes da Silva, quebradeira de coco que lutava contra a ameaça dos grileiros para garantir o direito dos extrativistas. Dona Raimunda era secretaria da Mulher do CNS e tive oportunidade de ver e ouvir o Chico Mendes em várias ocasião naquele ano – ao final do qual ele foi executado. Mas até a morte dele, por mais duro que seja dizer isso, trouxe avanços para nós. Foi só depois deste assassinato que foram criadas as quatro primeiras reservas extrativistas do país: a de Alto Juruá (em Cruzeiro do Sul); Chico Mendes (hoje presente em sete municípios do Acre); Ouro Preto (em Rondônia) e Rio Cajari (no Amapá). Muitos conceitos foram absorvidos e compreendidos. Atualmente, por exemplo, só mora nas reservas quem nasceu lá, quem é extrativista tradicional. É um conceito de propriedade coletiva.
Mas e depois, houve retrocessos? Como foi continuar em frente sem ele?
Foi uma luta coletiva. Muitos outros líderes seguraram nossas bandeiras e continuam até hoje, como o Raimundão Mendes, primo do Chico; o Seu Silva; o Júlio Barbosa; e o D’Araújo, o Daú da Cooperafloresta, que reúne agricultores agroflorestais.
Não tem mulheres nessa história?
A vida no seringal era muito difícil para as mulheres, mas algumas lutaram tanto quanto os homens, até mais. Como a tia do Chico, a Dona Sílvia; Júlia Feitosa; e Mary Alegretti, que hoje é doutora e pesquisadora da vida do Chico.
Qual o maior problema atual para os seringueiros e outros grupos de extrativistas?
Neste ano passei a atuar como gestora de reserva, como representante do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio). Na reserva extrativista (Resex Chico Mendes) o maior problema é a ocupação irregular. A posse da terra é coletiva, mas tem fazendeiro que chega junto dos moradores, oferece dinheiro e “compra” a terra. Muitas pessoas não sabem que essas terras não podem ser vendidas. Pois, de acordo com a norma que regulamenta as reservas, que é o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), as terras são de uso coletivo. O comprador cerca, derruba a vegetação nativa e faz queimada, para plantar pasto. Aí, quer colocar gado. Às vezes é gente do próprio município, que conhece os extrativistas e propõe negócio. Mas esse negócio não pode ser legalizado, então começa a luta para a devolução da terra, o que é muito complicado. A formação de pastagens para gado é uma ameaça dois em um: primeiro, se acaba com a vegetação que sustenta o extrativista e, depois, vem a queimada, causando enorme poluição.
Com as reservas, o futuro do extrativismo está assegurado?
Esse é outro grande desafio e envolve a questão dos jovens. Muitos não permanecem na floresta. Precisam sair para estudar, arrumar empregos etc. Como pedagoga, acredito ser necessária uma educação diferenciada nas reservas, para que os jovens conheçam e valorizem o legado dos pais. Uma conscientização sobre a história que eles viveram. Além disso, as políticas públicas precisam chegar, de fato, até lá. Caso contrário, os jovens vão continuar saindo em busca de recursos externos.
A senhora trocou de vez a pedagogia pela floresta?
Não, agora sou uma educadora da floresta. Faço oficinas em toda a Amazônia sobre temas que trazem informação crítica às populações da região, como conhecimentos sobre políticas públicas. São temas como Gênero e Meio Ambiente, Gênero e Renda, tudo relacionado à floresta. As oficinas são para homens e mulheres, porque falar somente para elas não adianta. Tem de mostrar a eles, como na Dinâmica do Relógio, quando comparamos as tarefas femininas ao longo do dia e as deles. Os homens ficam impressionados com tudo que as mulheres são capazes de executar diariamente. Nos cotizamos para realizar essas atividades, que contam também com a ajuda de muitas entidades parceiras, que o Chico conseguiu motivar para atuar junto com o Conselho Nacional de Seringueiros. Nossa pauta agora é o “Chamado da Floresta”, que realizados a cada dois anos, em parceria com o Grito da Terra. Nestas ocasiões, ministros e autoridades é que vão até as reservas, encontrar os povos da floresta. Vão de carro, de barco, de helicóptero, do jeito que der. Mas todos se encontram lá. É um grande evento.
Qual a expectativa da senhora em relação à participação no Consea?
Queremos manter uma organização positiva da produção da floresta, como madeiras, borracha, castanhas, açaí, frutas, peixes. Há várias cooperativas comprando essas matérias-primas para fazer os produtos finais lá mesmo, como os lindos sapatos de borracha que estão sendo fabricados nas próprias reservas, gerando renda maior. No Consea, pretendo atuar na questão da valorização desses produtos, além de lutar pela saúde das pessoas da floresta, que continuam sofrendo com doenças tropicais, como a malária, a leishmaniose e a dengue, entre outras.
Entrevista: Ivana Diniz
Fonte: Ascom/Consea