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Modelo atual de agricultura rompe ciclos da água e agrava crise hídrica, alerta Marçal
Considerar o efeito combinado de mudanças ambientais resultantes do desmatamento sobre determinados fenômenos e ecossistemas do país é essencial para entender como se dá a ruptura dos ciclos naturais que regulam as chuvas e os sistemas hídricos, diz Marçal. Imagem: Consea
O Brasil vive uma crise hídrica. Brasília enfrenta pela primeira vez um racionamento de água. Em 2016 foi Vitória, capital do Espírito Santo, a passar por um inédito racionamento. E nos dois anos anteriores, 2014 e 2015, São Paulo sofreu a falência no abastecimento, com a redução drástica do Sistema Cantareira, reservatório que leva água a cerca de 8,8 milhões de pessoas.
No Semiárido, se alonga há seis anos uma das mais graves secas em meio século. E na Amazônia, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) vê que as chuvas ficaram abaixo do usual. Em 2016, a região amargou a pior seca em 100 anos. A Amazônia tem cada vez menos umidade e as árvores se tornam mais vulneráveis às queimadas.
Quais as causas desta crise? “Não precisei ir muito longe para saber que a crise hídrica no Brasil é produto de várias ações humanas que estão alterando o padrão de circulação de água nos sistemas hidrológicos, de forma visível. Porque, em algumas regiões afetadas, sequer está chovendo menos. Mas tem menos água nos rios”, afirma o agrônomo Luciano Marçal da Silveira, que atua na Coordenação da Associação de Agricultura Familiar e Agroecologia (Aspta) na Paraíba.
“O que está acontecendo são fenômenos decorrentes do desmatamento, provocado principalmente pela agricultura”, acrescenta o especialista, que participou da 3ª Reunião Plenária Ordinária do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) em 2017. O encontro tratou prioritariamente do tema da água, em seus diversos aspectos.
Considerar o efeito combinado de mudanças ambientais resultantes do desmatamento sobre determinados fenômenos que ocorrem no país seria essencial para entender como se dá a ruptura dos ciclos hidrológicos naturais, que regulam as chuvas e os sistemas hídricos, defende Marçal.
Rios Voadores
Um dos fenômenos naturais em risco são os “Rios Voadores”, cursos atmosféricos de água formados por massas de ar carregadas de vapor. Essas correntes de ar abarrotadas de água invisível são criadas na Bacia Amazônia e impulsionadas até o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país. “Os rios de vapor de água são responsáveis por boa parte das chuvas que caem em São Paulo, certas áreas de Minas Gerais e do Sul do país”, explica Luciano Marçal.
O problema, segundo o agrônomo, é que o desmatamento da Amazônia ameaça esse padrão de circulação de água. E, se o fenômeno ecológico não for mantido, o país viverá crises mais frequentes de água.
A virtual extinção do Cerrado brasileiro
O desmatamento também é responsável pela ameaça a outro fenômeno: o mecanismo natural de captação de água no Cerrado. “É uma floresta de cabeça para baixo: as raízes são muito maiores que a copa das árvores. Podem chegar a dez metros de profundidade. Ou seja, dois terços da vegetação estão debaixo da terra. Esse sistema confere ao bioma, pelo tipo de solo, um comportamento hidrológico de absorção de água, determinante para reabastecer aquíferos que são a garantia das nascentes dos rios da região”, destaca Marçal. Das 12 bacias hidrográficas do Brasil, oito nascem no Cerrado.
Nas últimas décadas, com a ampliação da fronteira agrícola, a vegetação original foi substituída por plantas como a soja, com raízes de cerca de 40 centímetros. Desta forma, a absorção de água está comprometida, alerta o agrônomo.
A morte do São Francisco e outros rios
Mantido esse cenário, a morte do Rio São Francisco será inevitável, prevê Luciano Marçal. “Participei, até 2006, do debate sobre a transposição, quando verificamos que a chamada vazão de base do rio, a mínima histórica, era de 1.860 metros cúbicos por segundo. Argumentou-se então que a tomada de água outorgada, de 26 metros cúbicos por segundo, não prejudicava o rio. Passados poucos anos, porém, vemos que a alteração do padrão de uso afetou o São Francisco. A vazão mínima caiu assustadoramente, a 600 metros cúbicos por segundo. E a Agência Nacional de Águas (ANA) já admite que esse valor possa estar agora em 550 metros cúbicos por segundo”.
As causas, reforça ele, novamente apontam para o desmatamento, que rompeu o equilíbrio do ciclo hídrico natural. “Note que a água que vem dos Rios Voadores provoca as chuvas, que irrigam o Cerrado, que filtra essa água para os aquíferos, que abastecem os rios. Está tudo conectado no ciclo da água. Quando o equilíbrio se rompe, ocorre a crise”, enfatiza.
Agronegócio e irrigação
Para o agrônomo, o desmatamento que dá origem a todos esses problemas é promovido pelo modo de ocupação e uso da terra no país, que associa grandes propriedades e monoculturas, nas quais a variedade natural da vegetação é substituída por um único tipo de plantação, com uso intensivo de água e abuso de agrotóxicos.
De acordo com ele, somente a compreensão dos danos causados por esse modelo e a mobilização da sociedade civil poderá construir alternativas sustentáveis de produção de alimentos para toda a população. “Foi isso que fizemos com o Programa Cisternas. Dar escala a uma ideia que pode transformar a vida das pessoas. Isso é possível e é o nosso papel”, finaliza.
Fonte: Ascom/Consea