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Mª Emília Pacheco: 'Direito à alimentação saudável e adequada não pode ser separado de direitos das mulheres'
Em entrevista ao site do Consea, a ex-presidente Maria Emília Pacheco destaca a importância da mulher na garantia do direito humano à alimentação adequada e a necessidade de dar continuidade às políticas e programas que buscam reduzir a desigualdade de gênero. “É preciso conjugar programas e políticas como iniciativas do PAA e Bolsa Família, por exemplo, com a manutenção dos equipamentos públicos de alimentação, como cozinhas comunitárias, restaurantes populares, feiras, que favorecem a participação organizada das mulheres, ao mesmo tempo em que sejam garantidos equipamentos de proteção social contra a violência sobre as mulheres”, explica.
Primeira mulher a presidir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Maria Emília Pacheco entrou no Conselho em 2004 e assumiu a presidência de 2012 a 2016. Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maria Emília é membro da Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional (Fase), do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Como as mulheres atuam na defesa da soberania e da segurança alimentar e nutricional?
Tanto na cidade, como no campo, nas águas e na floresta as mulheres têm atuação estratégica para garantir a segurança alimentar e nutricional porque são produtoras de alimentos. Mas o contexto em que elas vivem é de muita desigualdade porque ainda predominam as triplas jornadas de trabalho e sofrem muitas formas de violência. As mulheres negras sofrem ainda mais com o preconceito racial.
Quero destacar o papel dessas mulheres na resistência contra o modelo hegemônico de produção de alimentos que devasta e polui natureza, contamina os alimentos e a água e desconstrói direitos. Afirmando-se como sujeitos políticos trabalham na promoção da agroecologia. Isso significa produzir alimentos de qualidade, sem agrotóxicos, diversificando a produção. Influenciam o autoconsumo, como também a vida nas comunidades, participando dos circuitos curtos de mercado como as feiras e dos mercados institucionais, com a perspectiva de resgatar culturas alimentares.
As mulheres indígenas, quilombolas, as camponesas, que historicamente trabalham na preservação dos ecossistemas, continuam multiplicando as sementes locais tradicionais, crioulas, pois elas detêm um conhecimento vasto e tradicional sobre a biodiversidade.
Elas fazem parte da miríade de organizações de mulheres existentes nas várias regiões do país, que seguem na luta pelo seu reconhecimento como sujeitos de direitos.
Mas quero insistir no quadro de desigualdades como nos mostram os indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), que nos preocupa e nos traz indignação. Em 2013, a Pnad revelava que a insegurança alimentar grave ocorria principalmente em domicílios chefiados por mulheres. Cerca de 3,9%, no caso das mulheres em comparação a 2,8% no caso dos homens. Também sabemos o quanto as mulheres se dedicam aos trabalhos domésticos com um número de horas muito maior que o dos homens. Uma média de 20 horas semanais trabalhadas pelas mulheres, enquanto a média para os homens é de 10 horas. A desproporção na divisão do trabalho doméstico aumenta nos domicílios rurais: as mulheres gastam cerca de 26,6 horas semanais, enquanto os homens gastam 10,1 horas. Os dados de violência são alarmantes. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2009 a 2011, o Brasil registrou 16,9 mil feminicídios.
Que tipos de ações ou programas ainda precisam ser desenvolvidos para promover a igualdade de gênero?
É válido ressaltar a importância do Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural (PNDTR), do Programa de Organização Produtiva de Mulheres Rurais (POPMR), que nasceu no hoje extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), atualmente uma Secretaria Especial, que representa a meu ver um verdadeiro retrocesso.
Quero lembrar também da Política Nacional de Agroecologia e Produção com ações voltadas para as mulheres, por exemplo, com a definição de cotas e recursos para as mulheres agricultoras nas Chamadas Públicas sobre Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER Agroecologia), que merece registro positivo. Mas é preciso vigilância para apurar se esses programas terão continuidade.
Há também iniciativas que envolvem de forma significativa a participação das mulheres, como por exemplo, as experiências da sociedade civil de agricultura urbana e periurbana que deveriam ser potencializadas com o apoio de recursos públicos. Quero rememorar a proposta elaborada pelo Consea e encaminhada para a Caisan de uma Polícia Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana, com os vários sentidos que relacionam formas de gestão e de utilização do espaço urbano com a produção de alimentos saudáveis, com forte participação das mulheres. Mas, examinando o atual Plano Nacional de SAN (Desafio 6.4, metas 4.28 e 4.29), observa-se que a meta sobre definição de diretrizes, ignora os passos dados contidos naquela proposta.
Podemos dizer que o fortalecimento de políticas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Bolsa Família são importantes para combater a violência doméstica e para que as mulheres conquistem sua independência?
Sim, porque são iniciativas que reconhecem o papel das mulheres como sujeito. É fundamental desenvolver propostas que, ao considerar as desigualdades de gênero, garantam condições para sua autonomia econômica, sua emancipação.
Mas temos constatado que, ao darem esse passo, as mulheres acabam também muitas vezes sofrendo alguma forma de violência. Por exemplo, há casos no Brasil em que as mulheres tomaram a iniciativa de fazer a transição agroecológica, abandonar o uso de veneno, diversificar a sua produção, às vezes com iniciativa de hortas ou pomares, e os maridos jogam veneno em suas plantações. É uma violência patrimonial. Por isso uma condição essencial é o apoio à auto-organização das mulheres para que elas se fortaleçam de forma associativa. O PAA, sobretudo através de uma de suas modalidades, a doação simultânea executada pela Conab, vinha contribuindo com essa perspectiva de fortalecimento do tecido associativo e chegou a envolver a participação de cerca de 40% de mulheres nos projetos. A atual redução de recursos do PAA, a desconstrução de seu escopo inicial, associados ao processo de criminalização das organizações sociais, é um retrocesso que atinge a vida das mulheres.
É fundamental tratar a indivisibilidade de direitos como princípio basilar das políticas públicas. Nesse sentido, o direito humano à alimentação saudável e adequada não pode ser tratado separadamente do campo dos direitos das mulheres.
É preciso conjugar programas e políticas como iniciativas do PAA e Bolsa Família, por exemplo, com a manutenção dos equipamentos públicos de alimentação, como cozinhas comunitárias, restaurantes populares, feiras, que favorecem a participação organizada das mulheres, ao mesmo tempo em que sejam garantidos equipamentos de proteção social contra a violência sobre as mulheres. Mas lamentavelmente há também retrocesso em relação a essas iniciativas.
Nesse 8 de março, as manifestações contra todas as formas de violência, contra os retrocessos do processo de construção da democracia, contra a violação de direitos, fizeram ecoar as vozes de milhões de mulheres. A contrarreforma da Previdência Social foi objeto de recorrentes protestos. No campo, a aposentadoria estará mais distante para os trabalhadores rurais, tanto os segurados especiais quanto os assalariados. O impacto será mais sentido pelas mulheres, dada a relação entre elevação dos requisitos de idade e de tempo de contribuição, imposição da contribuição individual, redução do valor das pensões e desvinculação delas do salário mínimo.
Nesse contexto de retrocessos, quero destacar a importante missão do Consea como espaço de resistência, de monitoramento de programas, de reverberação das denúncias da violação de direitos e de formulação de propostas de programas e políticas de SAN. Estávamos avançando na produção de informação desagregada de gênero em relação às políticas e é preciso dar continuidade, incorporando também a questão de raça, de etnia.
A realização do Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável requer programas e políticas específicos que incorporem a perspectiva de superação das estruturantes desigualdades de gênero e raça.
Fonte: Ascom/Consea