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Fome do invisível
“Sozinho, a vida perde o sentido”, o motivo que levou o paulista André Luiz Gomes, 39 anos, a viver nas ruas chega a deixar nossa equipe desconcertada. Depois de perder os pais em um acidente de carro há oito anos, André se viu só. “Amigos são bons quando você está bem. Vamos pro bar, pra se divertir. Quando você não participa mais disso e você não está legal, você é excluído. E assim os amigos vão se afastando”, diz. Solteiro, sem filhos, abandonou o trabalho de açougueiro, deixou pra trás o que tinha construído até ali, foi morar nas ruas de São Paulo (SP) e depois veio para Brasília (DF). “Tinha uma vida normal como qualquer outra pessoa”, conta ele.
Fez do Centro Pop Brasília, no Distrito Federal, sua base para higiene pessoal e alimentação. A unidade pública localizada em uma área nobre da capital é voltada para o atendimento especializado à população em situação de rua. De segunda a sexta-feira, André vai até o local para receber o lanche da manhã e o almoço. Para o jantar, depende de entidades que distribuem sopa na Rodoviária, no centro da cidade. No fim de semana, a procura é por restaurantes que possam doar uma “quentinha”.
São distribuídos 400 kits com uma fruta, um pão ou bolo e um suco industrializado. No almoço, são entregues cerca de 200 marmitas prontas. A alimentação é fornecida por uma empresa terceirizada. Mata a fome, isso é certo, mesmo que temporariamente. Mas não atende a quem tem necessidades alimentares especiais. “Eles mandam muito bolo. Tem pessoas que são diabéticas. Não são todos aqui que podem comer. Deixam de comer e dão pra outro irmão. Tinha que ser mais balanceado no café”, informa André Luiz.
Assim como André, são incontáveis os casos de pessoas em situação de rua no DF. Não há números oficiais exatos. A última pesquisa é de 2011. O Centro Pop iniciou, há pouco mais de um mês, um cadastro eletrônico para fazer levantamento de dados específicos e melhorar o atendimento. Antes, tudo era anotado em um arquivo de texto. “É um sistema da Secretaria [do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos do Distrito Federal] que vai cadastrar todas as pessoas que procuram o benefício. No Centro Pop, a gente está começando a utilizar agora. Os nossos cadastros são ficheiros, por isso a gente não consegue fazer tabulação ainda”, explica Luan Grisolia, coordenador do Centro Pop Brasília.
Uma horta comunitária ocupa uma pequena parte do terreno, com hortaliças e árvores frutíferas ainda em crescimento. “Nos últimos dois anos, a gente sempre fez oficinas na horta, como oficina de agroecologia. Agora, a gente está sem oficina, mas os próprios usuários tomam conta da horta. Eles vêm, plantam e colhem”, explica. Existe um projeto para construção de uma cozinha onde os frequentadores possam preparar a própria comida.
O acesso ao Centro Pop é irrestrito. “Não precisa ter cadastro nem documento para acessar os serviços básicos que tem aqui, como lanche, banho e espaço para lavar roupas”, informa o coordenador. Na contramão da visão de que o Centro Pop é um lugar que incentiva a permanência nas ruas, o coordenador do Centro Pop Brasília acredita que sem esse apoio as pessoas não teriam como buscar uma nova vida. “Sem banho, sem alimentação, as pessoas não conseguem se organizar minimamente para sair da rua. Se a pessoa não tem um lugar adequado para comer e um lugar adequado para tomar banho, ela não consegue se cuidar e não consegue planejar uma maneira de superar as dificuldades que ela está enfrentando. Então é muito importante esta questão da alimentação para que as pessoas consigam planejar sua vida melhor. Na rua, você sempre está pensando no dia seguinte. Ter um espaço que oferta uma alimentação mínima já ajuda essas pessoas a pensarem além do dia seguinte”, defende Luan Grisolia, que também é especialista em Saúde Mental.
O conselheiro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Anderson Miranda, representante do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), acredita que houve avanço na discussão política sobre o tema. “O fato de termos o Consea, que discute a questão do acesso ao alimento saudável, é de extrema importância. Também considero que a criação de restaurantes populares e cozinhas comunitárias contribuiu para o acolhimento da população vulnerável”, afirma.
Para ele, ainda é preciso avançar nas políticas públicas para evitar o desperdício de alimentos e atender à população de rua que ainda vive como se fosse invisível aos olhos da sociedade. “Temos maneiras interessantes de minimizar os efeitos da fome. Sei como reciclar a semente do tomate para fazer caldo. Pode-se aproveitar o que as pessoas jogam fora. Desenvolver a capacidade de reutilizar ou remanejar os alimentos como forma de combater a insegurança alimentar e nutricional é uma maneira que pode diminuir a fome na população de rua”, sugere o conselheiro.
Reportagem: Beatriz Evaristo
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Fonte: Ascom/Consea