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A semente renovadora do país é a infância
Quem paga o preço mais caro para viver no Brasil é a criança. Não só agora, mas de longa data sobrevive penosamente no cenário da sua insignificância, contexto de uma sociedade que a respeita cada vez menos. É gestada, nasce, cresce e se desenvolve em condições precárias. A gravidez já não muda a rotina da mulher. Os efeitos de seu trabalho diário intoxicam o meio ambiente uterino do feto, expondo-o, via placenta, às substâncias tóxicas geradas pelo estresse da gestante. Isso explica as altas taxas de baixo peso ao nascer, condição que predispõe o recém-nascido a enfermidades futuras, tais como hipertensão arterial e doenças coronarianas, entre outras. O parto normal, direito do feto, é menosprezado. O índice de cesárea alcança cifras absurdas, de difícil reversão, posto que a prioridade da infância é preceito constitucional ignorado.
A licença-maternidade, requisito para a consolidação do vínculo afetivo entre mãe e filho, além da correta nutrição do bebê por meio da amamentação exclusiva nos seis primeiros meses de vida, prospera devagar, quase parando. A licença-paternidade, estímulo ao vínculo paterno e sua respeitável missão no berço familiar, é desmerecida por completo. Nos países da Escandinávia, que mantêm compromisso com o humanismo civilizatório, a licença-maternidade tem duração de mais de um ano, podendo haver alternância, após o sexto mês, entre pais e mães, de acordo com seus horários de trabalho.
Em virtude de tamanho desinteresse para com a infância no Brasil, todas as práticas que deveriam ser naturais, durante esse relevante período de vida, passam a ser artificializadas em benefício dos interesses econômicos dominantes. O ônus sobra para as pobres criaturas que vêm ao mundo nascendo em realidade tão desumana. A maioria não é devidamente amamentada, sendo nutrida com leite artificial e vários outros produtos industrializados, que nada têm a ver com os nutrientes indispensáveis ao crescimento e desenvolvimento saudáveis do ser humano.
Com a duração inadequada da licença-maternidade em vigor, norma legal a ser corrigida, os lactentes privados do acalento parental são inseridos em instituições como creches e outras que tais. Ainda que primem pela qualidade dos espaços físicos e dedicação dos funcionários, não passam de ambientes artificiais incomparáveis à doçura natural da maternidade. O legítimo afeto familiar perdeu consistência. Superando o sentimento de abandono experimentado nos primeiros anos de vida, as crianças tomam um rumo diferente daquele que lhes seria garantido pelo verdadeiro aconchego materno e paterno, fonte natural do amor humano que não lhes deveria ser negado.
O maior potencial cognitivo durante a existência de um indivíduo é próprio dos seus primeiros seis anos. Nessa fase, o cérebro aumenta de tamanho e se diferencia por conta do universo das conexões neuronais, estabelecidas graças à nutrição adequada e à estimulação segura, carinhosa e construtiva. Assim, para que sua capacidade de aprendizagem possa chegar à dimensão que lhe é inerente, o ser infantil requer uma convivência humana rica em afeto, ternura e perfis comportamentais exemplares. Infelizmente, o futuro cidadão é hoje robotizado desde a mais tenra idade. Suas relações humanas são artificializadas. Deixam de ser naturais, tornando-se eletrônicas e virtuais.
Afora o desapego afetivo que toma conta das famílias nos dias de hoje, o descuido dos pais é uma negligência muitas vezes letal para os filhos. Um exemplo é o que ocorre com bebês esquecidos dentro de viaturas, onde chegam a morrer de insolação. Ademais, embora os acidentes sejam a principal causa de mortalidade nos primeiros 4 anos de vida, nada se investe na sua prevenção. Não há programas educativos destinados aos responsáveis pelas crianças a fim de que adotem as providências para protegê-las. Além disso, graves abusos e negligências afetam o desenvolvimento neuropsicomotor e social de grande número de infantes, causando repercussões no seu futuro padrão comportamental. Outrossim, a violência urbana atual é uma crescente ameaça à sobrevida na infância. Balas perdidas já chegam a atingir o próprio feto. Infanticídio, abandono e sequestro são práticas cotidianas, banalizadas no país.
De crise em crise, a sociedade brasileira continuará no atraso se não cuidar da formação plena das suas novas gerações. Não basta fazer reformas unicamente econômicas. A semente transformadora do país é a infância. Somente germinará, com a devida exuberância, num fértil solo educacional.
*Dioclécio Campos Júnior é médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria e presidente do Global Pediatric Education Consortium (GPEC).
Artigo publicado no Correio Braziliense