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A história de um povo de quatro países: os Guarani e Kaiowá
Guaranis estão em 4 países, mas são considerados um mesmo conjunto de povos, que falam línguas semelhantes, têm costumes e hábitos parecidos, afinidade de interesses, além de traços históricos e tradições comuns. Marcello Casal/ABr
Há 147 anos, em março de 1870, um sucesso musical retumbante estreava na Europa, no teatro Scala de Milão, na Itália. Era a ópera O Guarani, do brasileiro Carlos Gomes, ainda hoje tema de abertura do programa de rádio A Voz do Brasil. A obra se baseava no romance homônimo de José de Alencar, publicado em forma de folhetins em 1857, no jornal Diário do Rio de Janeiro. Estamos em pleno romantismo. O nacionalismo e o amor à natureza são as ferramentas que vão esculpir um herói brasileiro idealizado, o indígena Peri, mistura de cavaleiro medieval e dono do conhecimento da terra selvagem.
Mas quem era esse guarani? No romance, Peri abandona tribo, língua e religião em nome da amada Ceci. Assim, a imposição da cultura branca e do cristianismo se dá por amor, supostamente sem violência, com o casal sumindo no horizonte como símbolos fundadores da nação. Nas praias do Brasil, na região do Chaco no Paraguai, no noroeste da Argentina e leste da Bolívia, no entanto, os guaranis viviam nessa época – e ainda vivem – realidades bem diversa das salas de teatro e romances do indianismo literário.
Na verdade, desde os idos de 1500, no século XVI, sofriam perseguições e massacres por parte dos colonizadores espanhóis e portugueses. Nas regiões litorâneas do Sul e Sudeste do Brasil, bem como nas bacias dos rios Paraná e Prata, eram os Tupis-Guaranis os primeiros a entrarem em contato com os europeus. Na medida em que avançavam continente adentro, as expedições avistavam diferentes povos guaranis e lhes davam nomes de acordo com o que ouviam das pessoas encontradas: Karió, Tobatin, Guarambaré, Itatin, Mbaracayú, gente do Guairá, do Paraná, do Uruguai, os Tape e muitos outros.
Pelas matas, os “brancos” seguiam levando doenças que dizimavam aldeias inteiras; sua ambição de conquista e riqueza, que acelerava a assimilação cultural forçada dos indígenas; a escravização dos ameríndios e seu uso indiscriminado como mão de obra para os mais diversos fins. As diferentes trajetórias vividas pelos grupos guaranis na fuga a esse processo levaram a novas distinções culturais entre eles.
Os povos guaranis que se refugiaram em florestas, montes e pântanos, escapando do alcance dos bandeirantes, dos encomenderos espanhóis ou às missões jesuíticas, teriam sido chamados genericamente de kainguá, kaaiguá, cainguá ou ka'ayguá – termos derivados da palavra guarani ka'aguyguá, "habitantes das matas". Para muitos estudiosos, esta seria a origem do nome de um dos atuais subgrupos guaranis, os Kaiowás.
O preço do contato com os conquistadores foi alto para os guaranis. Calcula-se que somavam até cerca de 1 milhão e 500 mil indivíduos quando da chegada dos europeus. Em 2008, estimava-se que haviam apenas 51.000 deles, entre os Kaiowá (31.000), Ñandeva (13.000) e Mbya (7.000).
Fronteiras antropológicas
Os guaranis, embora espalhados por quatro países, são considerados até hoje um mesmo conjunto de povos, que falam línguas muito semelhantes, têm costumes e hábitos parecidos, afinidade de interesses, além de traços históricos e tradições comuns. São pessoas que têm uma origem étnica comum, mas que foram se diferenciando entre si no decorrer da história. Por isso, para eles, as fronteiras políticas entre Brasil, Paraguai, Argentina e Colômbia não têm muita importância, o que costuma provocar conflitos com as autoridades locais.
Mesmo perseguidos e acuados, eles guardam com zelo costumes e lembranças de antes da chegada do conquistador, quando praticavam uma agricultura produtiva e abundante, que gerava amplos excedentes, servidos em grandes festas. Os produtos eram distribuídos entre todos os povos guaranis, termo que significa “guerreiro”. Ao chegarem ao local onde hoje se ergue a cidade de Assunção, no Paraguai, os europeus ficaram maravilhados com a "divina abundância" que encontraram entre os indígenas. Hoje a realidade destes povos é a fome e a pobreza.
Espoliação da terra e insegurança alimentar
Uma das principais “famílias” dos Guaranis são os Kaiowás, explica o líder Sílvio Ortiz, integrante do Conselho Indígena da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), área do Ministério da Saúde que coordena a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). De acordo com Sílvio, os Kaiowás são hoje a maioria no estado do Mato Grosso do Sul.
No Brasil, especificamente, a situação dos Guarani e Kaiowá no interior do país sofreu profundas alterações após a Guerra do Paraguai (1864-1870). Em 1880, se iniciou a ocupação sistemática do território ao sul do então estado de Mato Grosso, marcada a princípio pela exploração econômica da erva-mate em grandes propriedades. Em 1943, o então presidente da República, Getúlio Vargas, criou em pleno território indígena a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (Cand), para dar acesso à terra a milhares de famílias de colonos, migrantes de outras regiões do país.
A criação dessa e de outras colônias agrícolas nacionais situou-se dentro da política da "Marcha para o Oeste", buscando incorporar novas fronteiras e aumentar a produção de alimentos e produtos primários necessários à industrialização a preços baixos. A partir da década de 1950 acentua-se a instalação de empreendimentos agropecuários nos demais espaços ocupados pelos Kaiowá e Guarani, ampliando o processo de desmatamento desse território.
Um número significativo de comunidades indígenas foi obrigado a abandonar suas aldeias e deslocar-se para dentro de oito reservas de terra demarcadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão que deu origem à Funai. Assim, acentuou-se o confinamento das aldeias. A instalação de poderosos grupos de fazendeiros na região gerou um processos de ocupação pela força e com uso de violência.
Conta-se que em 1960, por exemplo, um único fazendeiro mandou expulsar de forma violenta centenas Guarani e Kaiowá (crianças, mulheres, idosos) de seus territórios tradicionais. Em seguida, se apropriaria de amplas terras indígenas, formando uma propriedade de 30 mil hectares. Para o grupo de 170 indígenas Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay sobraria apenas um hectare de terra.
A divisão do Mato Grosso, com a criação do Mato Grosso do Sul, não alterou substancialmente esse quadro, em que fazendeiros buscam se apossar da terra indígena.Desta forma, os antigos guerreiros, que formavam uma das populações indígenas de maior presença territorial no continente sul-americano, encontram-se agora encurralados à beira de estradas ou em acampamentos precários, onde padecem de problemas graves de saúde e, principalmente, sofrem as consequências da insegurança alimentar.
A terra, para os indígenas, é a fonte de alimentos, água, remédios, matéria-prima para suas casas e espaço físico para manifestações culturais e espirituais. Para eles, um dos piores males é a invasão e destruição da terra, as ameaças contra seu modo de viver, a expulsão e a discriminação que passam a sofrer com a chegada de colonos e fazendeiros.
Essa é a situação dos Kaiowá no sul do Mato Grosso do Sul, para onde, a pedido do Ministério Público Federal, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) enviou vários representantes em uma missão que constatou as severas ameaças a que estão submetidas as comunidades indígenas locais (veja o relatório da missão aqui).
Fonte: Ivana Diniz Machado/Consea