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Contra racismo, ativista defende comida como patrimônio cultural
Maria Noelci: "Especialmente em segurança alimentar e nutricional, é importante que a cultura preserve a brasilidade. Que nos represente, enquanto mulheres negras". Imagem: Facebook
Os shows e competições de culinária inundam a TV. E o que era considerada uma atividade relegada ao fundo da casa, subiu até o palco do estrelato. Cozinhar é cultura, sim. Mas qual cultura? A italiana, a japonesa, francesa, espanhola. Todas estão no “cardápio sofisticado” da nova mania nacional, enquanto a culinária brasileira parece meio esquecida. Ou pouco lembrada como legitimamente brasileira, caso da tapioca, de origem indígena e hoje adotada em todo o país.
Ampliar o reconhecimento da cultura alimentar como patrimônio nacional e enfrentamento ao racismo e ao etnocentrismo é uma das vertentes que estão sendo debatidas nesta semana, em que se comemora o Dia de Teresa de Benguela (25 de julho), líder quilombola que resistiu bravamente à escravidão por duas décadas em Mato Grosso, no século XVIII.
“Temos de buscar espaço para uma sociedade plural, pois possuímos diversidades que são extremamente importantes. Especialmente em segurança alimentar e nutricional, é importante que a cultura preserve a brasilidade e reconheça a ancestralidade africana. Que nos represente, enquanto mulheres negras. Para isso, são necessárias ações de reconhecimento do legado dos povos tradicionais. É preciso dar visibilidade e reconhecimento a esse legado”, afirma Maria Noelci Homero. Ela é gaúcha, bibliotecária, com curso de especialização no enfrentamento à violência contra mulheres e meninas, ativista do Movimento de Mulheres Negras e integrante da Rede de Mulheres Negras para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Redessan) e Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB).
Em entrevista realizada na quinta-feira (28/7), Noelci citou o caso da feijoada que, segundo ela, passou por uma desconstrução. Porque nem se lembram mais de que é feita de partes que não eram nobres: cabeça, pé, rabo, orelha. Então, você dá o que não é nobre aos que você considera não nobres. Esqueceram-se de que, enquanto do lado opressor estava gente que a Europa tinha mandado embora, porque não era bem-vista por lá, entre os escravos havia rainhas, reis, princesas e príncipes. “A história de resistência é inviabilizada. Não é dada a esse prato a nobreza que ele tem”.
É dessa forma, explica ela, que o racismo apaga tudo, a tudo abrange e constrange. “É uma dizimação. Da vida, da língua, dos nomes, do modo de vida. Visa a anular toda a resistência de uma história, como vem ocorrendo com os negros, negras e com os indígenas. Contra isso, é preciso visibilizar nossa história na vocalização da cultura alimentar com políticas públicas específicas. O racismo promove as desigualdades e devemos lutar por uma sociedade melhor, com desenvolvimento equitativo e plural”.
Para Noelci, é indispensável também, dentro da luta pela soberania alimentar, dar atenção às necessidades regionais e étnico-raciais, preservando as características que são justamente uma das maiores riquezas de um povo, a cultura alimentar, por meio de políticas públicas envolvendo o Estado e a sociedade. “Isso valoriza o desenvolvimento local”.
Novos obstáculos
A ativista alerta que, aos velhos desafios ligados ao racismo e ao sexismo herdados do patriarcalismo, estão se somando outros novos. “O assassinato da juventude negra, que é uma tragédia, e a ampliação da violência contra as mulheres negras. É uma reação contra o empoderamento destas populações, o fortalecimento da identidade racial negra nos espaços de representação da sociedade e nas intervenções para inclusão social para uma sociedade mais justa e igualitária. Mudam os tempos e a opressão de gênero e raça continua”.
Dados oficiais mostram que a pobreza e a violência afetam mais os negros, especialmente as mulheres. Tanto que, em 2013, cerca de 93% das pessoas beneficiadas pelo programa Bolsa Família eram mulheres – e 68% delas, negras. E, recentemente, o Mapa da Violência 2015 apontou que, entre 2003 e 2013, o número de homicídios de mulheres negras aumentou 54,2%, passando de 1.864 para 2.875. No mesmo período, o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8% (de 1.747 para 1.576).
“Esses dados demonstram que as mulheres negras não estão sendo alcançadas pelas políticas públicas de enfrentamento a violência contra a mulher. Ou seja, essas políticas não reconhecem a situação de vulnerabilidade vivida pelas mulheres negras e que são incrementadas pelo racismo”, analisa Maria Noelci Homero.
E por que essa violência cresce?, questiona a ativista. “Porque estamos saindo do lugar onde nos colocaram. Estamos em novos lugares. O lugar das mulheres negras é em todos os lugares que escolhemos estar. Vamos continuar a enfrentar as manifestações machistas, racistas. Trabalhando para que que esse enfrentamento cada vez mais tenha o reconhecimento de que a nossa história resiste. É uma história de resistência. Como a de Teresa de Benguela”.
Fome
Diversos estudos mostram que a desnutrição também é maior entre negras e negros que entre outros segmentos da população. E se reflete no Brasil inteiro, embora com variações regionais. A Pesquisa de Avaliação da Situação de Segurança Alimentar e Nutricional em Comunidades Quilombolas Tituladas, por exemplo, divulgada em 2014 pelo governo brasileiro, apontou que 55,6% dos adultos ficavam um dia sem se alimentar ou comeram apenas uma vez no dia porque não tinha comida em casa.
Esse fato ainda é mais expressivo quando analisado separadamente pelas regiões pesquisadas. O maior percentual registrado foi no Baixo Amazonas (86,3%). E o maior grau de insegurança alimentar se dá quando as crianças do domicílio passam por privação alimentar devido à falta de disponibilidade do alimento. No Baixo Amazonas, esse quadro é considerado grave (79,1%) – a cada cinco residências, quatro têm crianças que passam por privação de alimentos.
Por isso, durante em suas falas referentes ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, comemorado em 25 de julho, Noelci colocou entre os pontos que elas consideram inegociáveis: o direito à terra, território e moradia e o direito à cidade.
“É imprescindível garantir a preservação, proteção, demarcação, homologação e registro incondicional das terras quilombolas, indígenas e de outros povos tradicionais. Necessário se faz também assegurar recursos orçamentários da União para a titulação das terras e para o desenvolvimento de políticas sociais econômicas voltados para o desenvolvimento sustentável dessas comunidades, com participação de representantes delas no processos de decisão”, destaca.
Essa seria uma das condições para garantir a permanência ou o retorno da população negra ao campo, especialmente a juventude, ao lado de políticas e leis que protejam, preservem e recuperem as sementes nativas e crioulas. “Deve-se salientar que os mecanismos governamentais de compra e distribuição de sementes devem respeitar as formas tradicionais de organização local da agricultura familiar, camponesa, quilombola e dos povos tradicionais. E estimular a formação de estoques de sementes. Exigir o reconhecimento e a garantia dos direitos de trabalhadores e trabalhadoras do campo, valorizando a remuneração justa e equitativa e o fim da violência e da discriminação contra as mulheres”.
Urbanização
Por fim, Noelci enfatiza a necessidade de promover a urbanização de bairros de periferia e de fazer a prevenção de riscos, priorizando a segurança da posse e o respeito de todos os direitos humanos, impedindo os despejos forçados, remoções e o monopólio sobre a terra.
“É vital garantir o direito à cidade, por meio do reconhecimento da função social da propriedade, para assegurar moradias e acesso a serviços; contribuindo assim para o fortalecimento dos interesses coletivos sociais, culturais e ambientais em detrimento dos interesses individuais e econômicos”, diz ela.
A ativista gaúcha relata que participa ainda de programas de estímulo à agricultura urbana e periurbana, como forma de enfrentar a perda de referência das populações que deixaram o meio rural e de construir um local de habitação melhor. E, depois de citar tantas iniciativas e desafios, volta a falar em resistência, garantindo que nada a fará desistir de suas bandeiras. Pois, apesar do cenário de desigualdade ainda presente, vale salientar os avanços conquistados a partir da luta de movimentos de mulheres negras. “É uma luta incessante. Mas, segundo Lélia Gonzáles, nossa história, como mulheres negras, é feita de resistências e de lutas, onde somos protagonistas graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral”.
Fonte: Ascom/Consea