Notícias
"Retrocesso é impensável, queremos revitalizar o diálogo", diz conselheiro
Em sua última reunião plenária, realizada no início de março, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) discutiu, entre outros assuntos, os impactos da conjuntura política e econômica sobre as políticas sociais e de segurança alimentar e nutricional.
Em diferentes momentos, três ministros de Estado participaram dos debates daplenária – Miguel Rossetto, da Secretaria Geral da Presidência da República,Patrus Ananias, do Desenvolvimento Agrário, e Tereza Campello, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
O ministro Rossetto foi quem participou do debate da conjuntura. Quem fez a explanação em nome do Consea foi o economista, conselheiro e ex-presidente Renato S. Maluf. Transcrevemos, abaixo, alguns tópicos da fala do conselheiro:
“A Mesa Diretiva do Consea avaliou o período pós-eleitoral e o início do segundo mandato da Presidenta Dilma e identificou sinais preocupantes deuma inflexão na orientação econômica do governo e seus possíveis impactos em outras áreas. Esta é a razão do convite feito ao ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, com vistas a revitalizar o diálogo, a interlocução com a Presidência, logo em nossa primeira plenária de 2015. Reconhecemos e somos gratos ao ministro Rossetto por aceitar esse diálogo franco, mas movido por um sentido de compromisso, com nossos conselheiros e conselheiras”.
“Quais são as nossas preocupações? A primeira e talvez a mais importante é ainflexão na condução da política econômica, preocupante em si mesma e também por seu excessivo poder de incidir sobre as demais políticas públicas.Infelizmente, a política econômica é colocada como o coração de todas as políticas públicas.”
“Nenhum de nós, do Consea, desconhece o contexto de crise econômica emque vivemos. A gente pode divergir sobre o grau desta crise e a sua amplitude,mas ninguém aqui ignora que estamos vivendo um período econômico desfavorável devido a vários fatores internacionais e nacionais.”
“Mas também nós sabemos que as crises econômicas comportam diferentesrespostas, não há uma resposta única. Aliás, o Brasil se notabilizou - nummomento de umas das piores crises do capitalismo, que foi a crise eclodida no período 2007/2008 - o Brasil se notabilizou justamente por ter adotado medidas que iam na direção contrária do receituário ortodoxo.”
“Ao adotar políticas anticíclicas ativas, o Brasil foi um dos poucos países no mundo a atravessar a crise – talvez a pior crise depois da de 1930 - criando emprego, recuperando o valor do salário mínimo e mantendo a expansão das políticas sociais.”
“Esse era o Brasil que a gente gostava de ver em construção. Hoje nós estamos vendo, com preocupação, opções que vão no caminho inverso, opções que parecem contrárias às de antes, o que significa a aceitação de um princípio bastante questionado na história econômica recente dos países, que é a austeridade.”
“O princípio da austeridade fiscal parece um princípio óbvio. É aquele que diz: ‘Se você se vê diante de situações difíceis, trate de economizar’. Mas este é um princípio enganoso e injusto.”
“É enganoso porque passa uma mensagem que associa a gestão de um país com a gestão do orçamento familiar, como se a lógica de um fosse igual à lógica do outro – e nada é mais diferente. É enganoso também porque passa a falsa ideia de que elas, as intervenções ortodoxas, são intervenções cirúrgicas, que efetuariam pequenas correções que permitiram um breve retorno aos trilhos. Não é o que mostra a história econômica recente de vários países que seguiram por esse rumo.”
“Além de enganosa, ela é injusta porque muito frequentemente quem paga a conta é quem não deve. É injusta porque causa efeitos sociais e econômicos danosos, além de promover desagregação social.”
“Esta é, portanto, uma preocupação nossa: o cenário que se está desenhando é um cenário que sugere uma inflexão na orientação do governo no sentido contrário do que vimos e fizemos antes.”
“Corremos o risco de nos submetermos a uma abordagem fiscalista da ação pública, aquela que aceita acriticamente a ideia de superávit fiscal.”
“Superávit fiscal se converteu num dogma da economia ortodoxa e do neoliberalismo, um dogma no mínimo paradoxal, pois parece que governos existem para gerar excedente. Nada mais estranho que isso, governo não éempresa, governo não existe para gerar lucro. Aliás, no caso, sabemos muito bem que o superávit fiscal serve para alimentar o ganho financeiro, já que suaprincipal justificativa é economizar recursos para pagar os juros de uma dívida pública, com origem discutível, e que é realimentada com juros extorsivos defendidos pela mesma ortodoxia. Com isto, não estamos negando a necessidade de a gente discutir como e quanto um governo deve gastar, ao contrário, o país está carecendo de um debate econômico aberto e democrático em vista do atual predomínio das opiniões de consultores privados.”
“Notamos que as medidas até agora anunciadas se concentram em impostos indiretos e contribuições sociais. Quase não se fala em imposto sobre patrimônio, quase não se fala em imposto sobre grandes rendas, grandes fortunas. Não se pretende corrigir as históricas injustiças fiscais do nosso país, ao contrário, as anunciadas ‘correções’ miram no corte de direitos. Parece que nós estamos agora sob a agenda que perdeu a eleição em 2014.”
“Enfim, ninguém aqui ignora a conjuntura econômica e o contexto político desfavoráveis. Saímos de uma disputa eleitoral muito difícil, com o agravante de ter sido eleito um Congresso Nacional com uma composição, no mínimo, muito preocupante. Não há como desconhecer que, infelizmente, permanece
na sociedade brasileira um ranço do golpismo, expressão de antigos e bem estabelecidos interesses que beberam na fonte do udenismo. Nós não ignoramos esse contexto político.”
“O Consea sempre foi um conselho que apoiou o processo de construção social não apenas no campo da segurança alimentar e nutricional, mas também em outros campos fundamentais para promover justiça social e aprofundar a democracia. Não nos furtamos a oferecer apoio às iniciativas do governo brasileiro, embora um apoio crítico, que é o apoio que se deve dar. E queremos continuar exercendo esse papel.”
“Porém, neste contexto, nas atuais circunstâncias, nós nos sentimos tomados por um sentimento de ‘desconvocação’. Não estamos mais nos sentindo convocados para o que sempre achamos que estávamos convocados, para a construção social antes mencionada e que estava em pleno curso. Neste momento, somos confrontados com decisões que nos afastam, que parecem nos colocar mais distantes do que de verdadeiramente importante se passa no governo. Preocupa-nos a composição do novo ministério, pelo processo para sua formação e perfil de alguns dos seus ocupantes, além das medidas contrárias àquelas que imaginávamos.”
“Da análise desse contexto nos veio a pergunta: afinal, quem ganhou a eleição presidencial em 2014? E ainda: quem permitiu o desfecho daquela difícil disputa?”
“Nós do Consea queremos uma mensagem da Presidência da República que nos convoque para seguir com a tarefa de construção. Somos um Conselho que, por localizar-se na Presidência e por sua composição, pode refletir umaagenda mais geral sem perder de vista suas atribuições específicas relacionadas com a segurança alimentar e nutricional. Pretendemos continuar valorizando essa condição ao nos debruçamos sobre a agenda geral do país, ao reivindicarmos que se renove a convocação para a participação social nas políticas públicas no Brasil.”
“O contexto atual deve servir para refletirmos sobre a relação do governo comas organizações da sociedade civil. Qual é o lugar da sociedade civil? Como é que o governo está colocando o diálogo com a sociedade?”
“Qualquer retrocesso na participação social e na orientação das políticas públicas é absolutamente impensável. Avançamos bastante e é preciso ampliar conquistas. Nós queremos que tenham visibilidade os temas que nos mobilizam.”
“Expressamos nossa preocupação com alguns sinais no horizonte: sobre os rumos do PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], sobre os rumos do PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar]. Outro motivo de preocupação permanente é que não avançamos no tratamento das questões dos povos indígenas, assim como dos povos e comunidades tradicionais”.
“Por fim, há uma dimensão não menos importante que é o papel internacional do Brasil no campo do enfrentamento da fome e da promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional e do direito humano à alimentação. Não se trata de fazer as coisas apenas para os estrangeiros verem, a gente tem que fazer porque precisa ser feito. Também não temos a pretensão de sermos melhores do que ninguém. Porém, nós não podemos subestimar a importância internacional que tem o Brasil nesse campo. O papel internacional do Brasil em defender políticas contrárias à ortodoxia, políticas que enfrentem a desigualdade, que enfrentem a fome. Uma reorientação no Brasil não se limitará ao nosso país, mas certamente terá repercussões na América Latina também.”
O Consea é um órgão consultivo de assessoramento da Presidência da República, constituído em 2/3 por representantes da sociedade e em 1/3 por representantes do governo. O conselho articula governo e sociedade na formulação de linhas e diretrizes no campo da segurança alimentar e nutricional.
Fonte: Ascom/Consea