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ONU deveria adotar como padrão o modelo do Comitê de Segurança Alimentar
A nova institucionalidade precisava ser mais efetiva e, para tal, era necessária que fosse inclusiva e participativa. O órgão máximo é o Pleno de governos – atualmente cerca de 130 países aderiram ao CSA – que se reúne uma vez por ano, em Roma, na semana em volta do Dia Mundial da Alimentação, 16 de outubro. O braço executivo do Pleno é o Bureau composto por 13 representantes governamentais que se apoia nas informações produzidas por dois órgãos: o Grupo Assessor integrado por agências das Nações Unidas, especialmente as chamadas três irmãs de Roma – FAO, PMA e FIDA que financiam grande parte das atividades do CSA –, instituições financeiras internacionais, órgãos de pesquisas, fundações filantrópicas, setor empresarial e organizações e movimentos sociais; e o Painel de Especialistas de Alto Nível (HLPE, na sua sigla em inglês). Até recentemente, Renato Maluf, professor do CPDA/UFRRJ e ex-presidente do Consea, era membro do Comitê Executivo do Painel, o que revela os laços estreitos mantidos entre o conselho brasileiro e o comitê global desde sua reforma.
O mandato do CSA é o de: coordenar uma visão global da segurança alimentar e nutricional, promover convergência das ações em âmbitos nacional, regional e global, apoiar países e regiões, prestar contas e intercambiar boas práticas, desenvolver um marco estratégico que seja inclusivo e participativo.
Nesse contexto, foi criado como parte integrante do CSA o Mecanismo da Sociedade Civil (MSC/CSA), que tem poder de voz, que se faz representar no Grupo Assessor e que tem a palavra nas sessões plenárias. O Mecanismo é integrado por mais de 40 pessoas que representam organizações e movimentos das pessoas mais afetadas pela insegurança alimentar: camponeses, pescadores artesanais, trabalhadores da agricultura, consumidores, mulheres, jovens, pastorialistas, povos indígenas, pobres urbanos e sem terra, entre outros segmentos. Além desses grupos populacionais, chamados de constituencies, existe representação regional de modo que as vozes de todas as partes do planeta sejam ouvidas. Os integrantes do Comitê Coordenador do Mecanismo são eleitos pelas suas respectivas bases e regiões. Na nossa região, a institucionalidade interlocutora do Mecanismo é a Aliança pela Soberania Alimentar dos Povos da América Latina. O MSC é composto por distintos grupos de trabalho que se reúnem presencialmente e virtualmente ao longo do ano para elaborar seus conteúdos e construir suas estratégias de luta e incidência junto ao CSA.
Além do MSC existe também órgão semelhante do Setor Privado que participa do Grupo Assessor e das Plenárias.
Desde a Reforma do CSA em 2009, vários temas foram abordados e merece destaque a elaboração participativa das Diretrizes Voluntárias para uma Gestão Responsável da Posse da Terra, Pescas e Florestas. Tais Diretrizes descrevem os princípios e práticas que os governos e outros atores podem implementar quanto à administração do direito sobre terras, pesca e florestas, de modo a servir melhor os interesses das populações e promover a segurança alimentar e nutricional e o desenvolvimento agrário. Outros assuntos vêm sendo abordados como princípios para investimentos responsáveis, segurança alimentar para proteção social, segurança alimentar e mudanças climáticas, perdas e desperdícios de alimentos, segurança alimentar em crises prolongadas, pesca e aquicultura, água e nutrição. Nesta 42ª Plenária foi eleita nova Presidente do CSA, Amira Gornass, do Sudão.
O Mecanismo da Sociedade Civil se reúne no final de semana anterior ao início das plenárias do Comitê para preparar suas intervenções bem como suas estratégias de incidência. Além dos integrantes do Mecanismo também participam desse evento organizações e movimentos interessados no tema. É o caso do Consea que vem atuando ativamente desde a reforma do Comitê. Este ano não foi diferente e, como em outras ocasiões, o Inesc representou o Conselho. Em 2015 participaram do Fórum da sociedade civil cerca de 250 organizações e movimentos sociais de todos os cantos do mundo.
Em geral há uma avaliação por parte das organizações e movimentos sociais de que o CSA é efetivamenteum espaço inclusivo e participativo. Não se entende porque esse modelo legítimo e bem-sucedido não é implementado em outras negociações das Nações Unidas como clima, biodiversidade, sustentabilidade e, mais recentemente, a agenda Pós-2015 e o financiamento para o desenvolvimento, entre outras. No entanto, apesar desse reconhecimento, várias preocupações permeiam os debates. Entre elas pode-se mencionar o recuo em relação a agenda dos direitos humanos. A obrigação de os Estados respeitarem, protegerem e promoverem os direitos é substituída por uma linguagem mais neutra, como “empoderamento”, “parcerias”, “plataformas de múltiplas partes interessadas”, “acesso a mercados”, “necessidades das pessoas”. Esse esvaziamento da agenda de direitos é simultâneo, e não por acaso, ao progressivo crescimento do poder e da atuação do setor privado por meio de suas transnacionais, de redes empresariais e de fundações filantrópicas. A situação se agrava frente ao déficit orçamentário de CSA que, no momento, é da ordem de U$ 5 milhões. A Fundação Gates aportou recursos e com isso certamente acaba influenciando a agenda para o lado que lhe interessa, que é o da Revolução Verde e da “medicalização” da nutrição, entre outros temas. Esse poder cada vez maior das corporações e suas articulações (i.e, Scaling Up Nutrition, Climate Smart Agriculture, Agricultura Sensível à Nutrição) não somente dificulta a inserção na agenda do CSA de questões caras à sociedade como agroecologia, direitos das mulheres, direito à terra como despolitiza o debate sobre as reais causas da alimentação inadequada. Ademais, contribui para fortalecer a lógica de mercado e enfraquecer o papel do Estado.
O Mecanismo da Sociedade Civil do CSA é um espaço de resistência que precisa ser fortalecido por aqueles, governo e sociedade, que acreditam que um “outro mundo é possível”. E mais: esse modelo global de participação social institucionalizada deve ser levado para outros campos do multilateralismo, regionais e internacionais, porque vem mostrando que é inclusivo e legitimo. O Brasil tem papel importante a desempenhar nessa área. Ele esteve por detrás da reforma do Comitê e continua sendo ator central nas negociações, na defesa dos direitos humanos. Além de aprofundar essa linha no CSA, tem obrigação de levar alhures esse mecanismo que permite por mais sociedade no Estado.
Nathalie Beghin é coordenadora da assessoria do Inesc e conselheira do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).