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Janeiro, tempo de férias, vejo propaganda num grande jornal do Sul: “Ilhas Park – Cartão postal no jardim de casa. Um lugar único, charmoso e exclusivo junto ao mar – Condomínio fechado de alto padrão com lotes de 360 a 1140 m² – Sistema de segurança completa – Condomínio com serviço de praia e hotelaria”. Nas duas páginas de propaganda, fotos coloridas da proximidade com o mar, das piscinas, das mansões etc.
No mesmo dia, o mesmo jornal publica artigo de Rosana Pinheiro Machado no Caderno de Cultura: ‘O Rolezinho é bom para pensar o Brasil’.
Dias depois, nova propaganda do Ilhas Park, e o anúncio:‘70% vendido no lançamento’.
Ilhas. Ilhas de moradia, até no nome: ninguém pode sequer chegar perto, muito menos entrar, a não ser seus muito privilegiados moradores. Dentro tem tudo e de tudo, até acesso ao mar. Tem, como diz a propaganda, “área social com 3 clubes que somam mais de 1850 m² - 3 piscinas sendo 1 térmica – Sauna e SPA – Cinema – 2 espaços gourmets – Salão de festas – Sala de poker com Texas Hold’n; Centro esportivo – 2 quadras de tênis de saibro cobertas –Quadra poliesportiva – 2 campos de futebol – Quadra de padle – Cancha de bocha coberta.’ E, claro, ‘sistema de segurança completa”.
Para que sair para o mundo, para que se comunicar? Com quem dialogar a não ser com os vizinhos ‘exclusivos’? A rua não existe, o povo está lá fora, menos o que trabalha para arrumar a cama, limpar os banheiros, arrumar a quadra de tênis e trazer a comida pronta, quentinha.
Ilhas de consumo, os shoppings. Como escreveu Luís Fernando Veríssimo, em janeiro, no seu estilo inconfundível, a começar pelo título - ‘Xópis’: “Não foram os americanos que inventaram o shopping center. (...) Mas foram os americanos que aperfeiçoaram a ideia de cidades fechadas e controladas, à prova de poluição, pedintes, automóveis, variações climáticas e todos os outros inconvenientes da rua”.
Não preciso dizer mais nada, mas Veríssimo continua: “Cidades só de calçadas, onde nunca chove, neva ou venta, dedicadas exclusivamente às compras e ao lazer – enfim, pequenos (ou enormes) templos de consumo e conforto. Os xópis são civilizações à parte, cuja existência e o sucesso dependem, acima de tudo, de não serem invadidas pelos males da rua”.
Escreve Rosana Pinheiro Machado: “O que tenho visto no Brasil nos últimos anos é ódio e medo. Medo de uma massa supostamente desordenada, incontrolável. Ódio dirigido a uma massa ‘vagabunda’ que deveria estar trabalhando. (...) Independente da intenção, o rolezinho só faz sentido no templo do consumo, no coração da sociedade capitalista. Nada disso é novo: os grupos populares brasileiros, desde a abolição da escravatura, sempre ocuparam espaços da cidade como forma de diversão investida de política. (...) A marginalidade tem assumido múltiplas faces na história do Brasil, mas há algo fora do lugar, uma massa de vagabundos. (...) Criou-se a imagem de um Brasil moderno e desenvolvido, e de um outro, arcaico e subdesenvolvido. É possível ainda acrescentar: um, branco e de elite, outro, negro nas periferias. Esses ‘dois brasis’ não se tocam, mas, quando isso acontece, o primeiro lado usa de suas armas mais poderosas: a força policial que varre a tudo e a todos”.
(Parêntesis. Ilha que é ilha, mas não é ilha, só conheço uma, que, por ser ilha, protege-se mais facilmente do inimigo distante poucas milhas. Mas, por outro lado, é A Ilha, espaço de solidariedade no seu interior e internacional – envia médicos para todo mundo -, de companheirismo, de soberania. Ilhas, portanto, não precisam ser fechadas, individualistas, preconceituosas, só voltadas para dentro. Podem abrir-se, serem generosas, companheiras.)
Evito ‘xópis’ ao máximo. Gosto das lojas de rua, da Voluntários da Pátria, Porto Alegre, por exemplo. Ruas populares, onde há de tudo – roupas, panelas, calçados, brinquedos. As pessoas circulam, brancas, pretas, ricas, pobres, bem ou mal vestidas, num vai e vem incessante, vendedores na rua chamando os potenciais clientes com sua voz potente, a vida pulsando, rica e envolvente.
Gosto das bancas e restaurantes populares do Mercado Público de Porto Alegre, onde há de tudo para comer, desde o mais simples e despretensioso cachorro-quente ou o prato feito, até o sofisticado sorvete da Banca 40. Ou você pode comprar a erva do chimarrão, o mel, a cuia e a bomba, os temperos mais variados, o charque mais que gostoso, no meio do povo, do barulho das vozes, dos cheiros surpreendentes, das bancas da agricultura familiar, agroecológica e orgânica.
Em tempos de Copa, em tempos de Brasil sétima economia do Mundo, em tempos em que a fome e a miséria diminuíram substancialmente, hora de enfrentar a desigualdade, hora de acabar com ilhas, sejam quais forem. Mais vale o abraço, o beijo, o olhar. Mais vale a convivência, o alegre encontro das torcidas em festa, o grito de gol coletivo. E que os jovens, críticos e revolucionários, ocupem as ruas, exijam serviços públicos de qualidade, gritem por mais igualdade social e econômica, cultura para todos. São o grito do futuro, são esperança.
Como escreve Rosana Pinheiro Machado, ‘não é exagero dizer que o rolezinho é tão bom para pensar o Brasil quanto os protestos de 2013’. Cinquenta anos depois do golpe, viva a democracia!
*Selvino Heck é assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República