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Eterno Galeano
“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
Nós, jovens sonhadores das pastorais dos anos 1970, mal saídos das fraldas e descobrindo o mundo, tínhamos uma segunda Bíblia. Além da Bíblia do Antigo e Novo Testamento, carregávamos debaixo do braço As Veias Abertas da América Latina, o livro mais celebrado de Eduardo Galeano, presente dado pelo presidente Hugo Chávez ao presidente Obama anos atrás. Nos Cursos de Base da Pastoral da Juventude, nos Encontros das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), nos embates das Oposições Sindicais, nos cursos de formação dos movimentos de bairro, Galeano era um companheiro que caminhava ao nosso lado, dizia as verdades com coragem (não por outro motivo, acabou exiliado do seu querido Uruguai), e nos fazia descobrir e conhecer a dura história da América Latina e de seu povo.
A América Latina, nossa América Latina, era nosso campo de batalha e de alegria. Nela travávamos todas as lutas, subíamos coxilhas e montanhas como guerrilheiros redivivos, nela investíamos o futuro e a esperança. Como no futebol, que Galeano tanto amava e de tantas belas páginas por ele escritas sobre os mistérios da bola e do gol (era apaixonado por Garrincha), queríamos ganhar. Ganhar era a libertação do jugo e da dominação históricas do continente latino-americano. Ganhar era caminhar de queixo erguido, sem submissão. Ganhar era poder dizer com orgulho: este chão é nosso, suas riquezas são nossas e não de quem as roubou ao longo do tempo. E poder cantar e proclamar que éramos parte deste povo pobre e sofrido, mas guerreiro e lutador, que a unidade latino-americana, como disse o Che na sua histórica viagem pela América do Sul nos anos 1950, sustentava nossos sonhos, nossa utopia, unidade que um dia haveria de acontecer, como vem acontecendo e se concretizando.
Não por outro motivo a presidenta Dilma Rousseff falou na VI Cúpula das Américas, cidade do Panamá, 11 de abril, dois dias antes do passamento de Galeano, em fala premonitória: “O século XXI tem que resgatar a esperança que um dia marcou nossa região. Região que, como disse Eduardo Galeano, ‘se encuentra al outro lado de la mar – mágica mar que transfigura destinos –, la gran promessa de todos los tiempos’. A geografia nos legou um só continente onde vivemos juntos, separados do resto do mundo por dois oceanos. Estamos todos neste mesmo e imenso barco. Cabe a nós levá-lo a porto seguro e garantir que todos, que toda a sua população tenha uma vida digna com todos os direitos humanos, sociais, econômicos e, sobretudo, protegidos contra a discriminação de qualquer espécie”.
A utopia está, sim, no horizonte, Galeano, assim como a unidade latino-americana começa a tornar-se realidade. Mas como você chamou a atenção, muitos anos depois de escrever As Veias Abertas: “O sistema internacional de poder faz com que a riqueza continue se alimentando da pobreza alheia. Sim, as veias da América Latina ainda continuam abertas”.
Em 2015, nós os de esquerda, que continuamos de esquerda, que não temos vergonha de ser de esquerda, nós os latino-americanos que sonhávamos/sonhamos com a revolução, que não nos distanciamos dos ideais da liberdade, da democracia em todos os níveis e fronteiras, da justiça, da igualdade, nós que acreditamos na solidariedade, estamos vivos.
O Uruguai, este ‘paisinho’ de poucos milhões de habitantes, este hermanito que nos deu Pepe Mujica, os Tupas, Juan Carlos Onetti, Mario Benedetti, tantos escritores, lutadores, revolucionários, segue sendo referência. Continuaremos lutando, eterno Eduardo Galeano, para que as veias onde corre nosso sangue alimentem nosso próprio corpo, não o corpo dos outros, nossas pátrias e nosso continente, onde pulsam nossos corações de fé, nossas mentes pensam o mundo, onde nossos pés fazem gols e história, sejam de seu povo. A utopia é nosso ponto de partida e nosso ponto de chegada. O horizonte está lá longe, mas a gente o perseguirá sempre, passo a passo, até a eternidade.
Selvino Heck é assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República