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Direito à água no semiárido
As políticas públicas, quando analisadas com profundidade, podem desvendar inúmeras questões, dentre elas a relação entre governo e sociedade civil e a forma de abordar os sujeitos de direito. O Programa de Cisternas, integrante atualmente do Plano Brasil sem Miséria, vem atendendo populações rurais difusas do semiárido que não dispõem de água encanada e que têm renda per capita inferior a ½ salário mínimo.
O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza (MDS), através de termos de parcerias firmados com a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), já construiu mais de 500 mil cisternas com capacidade de 16 mil litros, captados da chuva, para atender o consumo humano, como parte do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC).
Também tem avançado a construção de outras tecnologias sociais, como cisterna calçadão, tanque de pedra, barragem subterrânea e outras, que proporcionam às famílias a água para produção através do Programa Uma Terra, Duas Águas (P1+2), destinado à produção - quintais produtivos, hortas e criação de animais (a ASA dispõe de instrumentos de monitoramento e gestão física e financeira, a exemplo do software SIGA.Net, com alimentação mensal, que possibilita uma base de informação atualizada sobre a implementação dos programas).
A água de beber é muito importante para a saúde humana, sobretudo das crianças e dos idosos. Com o acesso mais fácil da água, as mulheres ficam mais disponíveis para realizar outras atividades dentro e fora de casa. As famílias que já conquistaram a 2ª água ampliam e diversificam a produção e, além do sustento familiar, o excedente muitas vezes é trocado por outros alimentos com os vizinhos ou mesmo comercializado nas feiras, por meio dos Programas de Aquisição de Alimentos (PAA) e da Alimentação Escolar (PNAE), garantindo a intersetorialidade, os circuitos curtos de produção e maior sustentabilidade à agricultura familiar no semiárido.
Além destes avanços, os ganhos políticos são expressivos, face à capilaridade que o P1MC e o P1+2 geram. Cerca de 1.000 entidades se articulam no semiárido com abrangência nos municípios e comunidades afirmando a importância dos processos organizativos e a constituição de redes sociais. Uma teia de relações é tecida a partir da utilização de instrumentos pedagógicos, recursos financeiros e humanos associados à troca de experiência e ao aprender-fazendo.
Nesta dinâmica foi se desvendando que as investidas de "combate à seca" centradas nas grandes obras não garantiam mudanças nas várias dimensões da vida dos(as) agricultores(as) familiares. As estratégias baseadas nos interesses e necessidades das comunidades e na valorização dos saberes e modos de vidas dos(as) trabalhadores(as) rurais fez emergir o novo paradigma de "Convivência com o Semiárido".
Assim, o aporte de recursos financeiros do governo federal e as articulações através do P1MC e o P1+2 têm possibilitado inúmeros aprendizados que incidem na ampliação e qualificação destes programas ao longo de suas implementações. Os processos de mobilização, capacitações, visitas de intercâmbio e outras modalidade de formação perpassam a execução dos programas e valorizam as relações horizontais e emancipatórias, em contraposição ao poder da tutela e à cultura da submissão. Além das tecnologias sociais construídas e instaladas, com a participação direta da população, os ganhos no plano da subjetividade e da cultura política deixam marcas expressivas, sobretudo através das narrativas das mulheres.
A partir de 2013 o Programa de Cisternas deu um salto significativo quando o MDS aprovou o Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e Outras Tecnologias Sociais de Acesso à Água, ao regulamentar, por meio dos artigos 11 a 16 da Lei 12.873, de 24.10.13, que desburocratizou a execução e criou regras claras para a implementação do programa.
Frente a estes e outros avanços, não se pode perder de vista vários desafios que estão postos na direção da construção de uma política para o semiárido: assegurar o direito à terra para todos os trabalhadores do campo, ampliar e qualificar as políticas públicas que considerem, também, as especificidades dos povos e comunidades tradicionais e priorizar a produção agroecológica e orgânica, dentre outros.
Convém destacar neste contexto a atuação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que, através de suas diferentes estratégias, tem contribuído para a priorização de políticas voltadas para o semiárido brasileiro. Este bioma envolve oito estados do Nordeste e o norte de Minas Gerais e abriga 58% da população pobre do país.
As deliberações das Conferências Nacionais e as discussões e exposições de motivos elaboradas pelo Consea têm apresentando proposições que reafirmam a água de qualidade como um direito humano básico a ser universalizado, aliado ao exercício permanente de seu controle social.
Ademais, vale registrar a participação de representantes deste Conselho na Comissão de Monitoramento e Avaliação dos Programas P1MC e do P1+2, no âmbito do MDS. Esta instância, que funciona há mais de uma década, tem gerado aprendizados significativos para além do acompanhamento físico e financeiro dos termos de parcerias entre o MDS e a ASA.
Um conjunto de informações – o Sistema Integrado de Gestão e Auditoria (software SIGA NET) e os relatórios da ASA, constando de indicadores quantitativos e qualitativos, associados aos relatos das visitas de campo do MDS - compõe uma base de dados, com informações detalhadas sobre a implementação dos programas, de modo a permitir a avaliação de processos e resultados alcançados em relação às metas estabelecidas e realizadas e a apresentação de sugestões que contribuam para o aperfeiçoamento dos mesmos.
A atualização permanente de informações, através do SIGA NET/ASA, possibilita visualizar dados valiosos que expressam as características do público atendido, situando aspectos socioeconômicos sobre as famílias em suas respectivas localidades (estado, municípios e localidades) e, a partir do ano em curso, incorporou a identificação dos povos indígenas e populações tradicionais, além de explicitar vários indicadores demonstrativos dos distintos momentos de desenvolvimento dos programas: oficinas de planejamento (em âmbito microrregional e estadual) e de monitoramento e avaliação; capacitações de pedreiros e pedreiras, gerenciamento de recursos hídricos (GRH) para comissões municipais e microrregionais; atividades de divulgação, elaboração de cartazes, folderes, boletim e vídeos, dentre outras.
O reconhecimento nacional e internacional deste programa valoriza, sobretudo, a exemplaridade do seu modelo de gestão participativo, de um lado com aporte financeiro e acompanhamento do governo federal, que permite sua expansão no semiárido e, de outro, por meio da articulação e coordenação da ASA, possibilita identificar os sujeitos de direito e envolver uma teia de atores sociais, tais como os fóruns microrregionais, as comissões municipais e comunitárias, os grupos informais de jovens e mulheres e cerca de mil organizações sociais na sua implementação.
Esta e outras políticas vêm demonstrando que a "Convivência do Semiárido" significa viver, produzir e afirmar a soberania e segurança alimentar e nutricional e reduzir a pobreza rural no Brasil. De acordo com Naidison Baptista Quintella e Antônio Gomes Barbosa, em "A Convivência com o Semiárido - realidade, desafios e perspectivas, "Quando o Estado consegue apoiar uma iniciativa da sociedade para resolver problemas comuns, este não apenas cumpre seu papel, como amplia o conceito de gestão, fortalecendo-se enquanto espaço público".
Elza Franco Braga é conselheira do Consea e integrante da Comissão de Monitoramento e Avaliação dos Programas P1MC e do P1+2.