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Segurança alimentar e etnodesenvolvimento das comunidades indígenas
O presente artigo busca trazer reflexões acerca do atual cenário de insegurança alimentar e nutricional junto às comunidades indígenas brasileiras e da situação de experiências de etnodesenvolvimento nas comunidades indígenas brasileiras, abordando questões referentes à regularização de terras indígenas, ações de gestão ambiental e territorial de terras indígenas, acesso a financiamentos de projetos produtivos, implementação de ações de atenção à saúde dos povos indígenas e saneamento básico, acesso ao programa de cestas de alimentos etc, junto ao Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
No Brasil, os mais de 700 mil índios, pertencentes a pelo menos 250 povos distintos, têm ao longo do tempo presenciado constantes violações aos seus direitos coletivos e/ou também individuais de cada integrante dessas etnias. Direitos Sociais e Fundamentais postos na Constituição Federal, como educação, saúde, moradia e o que seria essencial que seria uma alimentação digna, ainda estão distantes da realidade das comunidades indígenas brasileiras.
No interior das terras indígenas, as maiorias das violações dos direitos indígenas estão ligadas diretamente a questões que envolvem a política ineficaz do Estado Brasileiro referente à regularização fundiária de terras indígenas. A limitação de acesso e usufruto dos territórios dos povos indígenas acaba contribuindo para que diversas comunidades indígenas estejam atualmente inseridas em contextos muitas vezes crônicos de insegurança alimentar e nutricional, especialmente as terras indígenas que tiveram seus recursos naturais impactados por grandes obras, muitas vezes financiados pelo próprio Estado Brasileiro.
Mesmo com os esforços de agências governamentais em pensar alternativas para colaborar com a sustentabilidade das comunidades indígenas em seus territórios, não vemos mudanças significativas no atual cenário vivido por nossas comunidades. Ações como a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas – PNGATI, ações de fomento a programas de etnodesenvolvimento no âmbito da Funai, quando não são implementados de forma efetiva, evidenciam descasos com a má gestão na falta de aplicação de recursos orçamentários e financeiros previstos.
Acerca da PNGATI, após três anos de sua publicação, ainda não se conseguiu implementar programas que possam efetivar tal política. Na Funai, os recursos destinados ao fomento de atividades de etnodesenvolvimento das comunidades indígenas não são aplicados na sua íntegra. Mesmo com o processo de reestruturação da Funai, que buscou aperfeiçoar a prestação de serviços junto às comunidades indígenas e eficiência na gestão dos recursos públicos, verificamos diversas Coordenações Regionais devolvendo recursos orçamentários e financeiros, destinados ao fomento de atividades produtivas, justamente pela incapacidade operacional de gestão de tais recursos, prejudicando as comunidades indígenas que necessitam de tais apoios.
Programas inovadores, como a edição dos editais da Carteira Indígena, de responsabilidade do MDS e MMA, foram paralisados pela ausência de autorização para a previsão de matriz orçamentária dessa ação. Mesmo com a previsão nos editais para apoio somente a pequenos projetos, tal programa contribuiu com diversas comunidades indígenas que nunca tinham sido contempladas com o financiamento de projetos pelo Governo Federal.
Nos últimos anos temos assistido descasos emblemáticos envolvendo a insegurança alimentar e nutricional em comunidades indígenas. Não podemos deixar de citar o caso Guarany Kaiowá, em que diversas crianças morreram desnutridas. Por detrás desse grande problema identificou-se que os intensos conflitos motivados por disputas territoriais, limitação do acesso aos territórios indígenas que estão nas mãos de fazendeiros que usam tais áreas para o cultivo de monoculturas e a ausência de ações assistenciais são as principais causas para a ocorrência desse problema. Além da etnia Guarany Kaiowá, verificamos a ocorrência de diversas comunidades indígenas do Nordeste Brasileiro sofrendo com o contexto de insegurança alimentar e nutricional.
Os motivos pelo crescimento de comunidades indígena inseridos no contexto de insegurança alimentar e nutricional, também estão ligados à situação fundiária desfavorável, já que a maioria das terras indígenas ainda não foram regularizadas. Além da falta de regularização da maioria das terras indígenas do Nordeste Brasileiro, diversas terras indígenas estão sendo afetadas pela estiagem que assola essa região há pelo menos dois anos de forma intensificada. A limitação de acesso à água para o consumo humano e para a produção de alimentos tem levado diversas comunidades indígenas a se enquadrarem como comunidades vulnerabilizadas, o que tem deixado diversos segmentos do Governo Brasileiro preocupados com tal cenário, no entanto, não temos acompanhando a implementação de ações emergenciais atingir essas comunidades.
Nos últimos dois anos, especialmente com a criação da Secretaria Nacional de Saúde Indígena (Sesai) cresceu a expectativa entre as comunidades e organizações indígenas brasileiras, de que a situação do saneamento básico e acesso a água nas comunidades indígenas brasileiras que enfrentam com essas dificuldades seja finalmente solucionada. Ações estruturantes previstas nos Planos Distritais dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) começam a ser implementados, no entanto, não dá para serem avaliados no momento atual, por conta dessas ações estarem muito no início, a maioria delas em suas regiões de abrangência.
Considerando o cenário de insegurança alimentar e nutricional encravado em diversas comunidades indígenas e da ineficiência de fomento a atividades de etnodesenvolvimento das comunidades indígenas brasileiras, faz-se necessário garantir que programas como os Programas de Distribuição de Cestas de Alimentos, de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), como o apoio da Conab e Funai, além de continuar atendendo as comunidades indígenas já assistidas, possa também ampliar além do número de etnias beneficiárias também ampliar o número de remessas realizadas.
No âmbito da Funai, espera-se que a Política de Regularização fundiária possa ocorrer com mais eficiência, alterando o cenário atual, que é extremamente preocupante. Temos conhecimento da ocorrência de pelo menos 100 processos de identificação e delimitação de terras indígenas sem a expectativa de conclusão desses processos - e mais pelo menos 450 terras indígenas inclusas no Sistema de Terras da Diretoria de Proteção Territorial da Funai, sem a previsão de criação de novos grupos técnicos, que serão responsáveis pela realização dos Relatórios de Identificação e Delimitação de Terras Indígenas, que é a primeira etapa de regularização dessas terras, conforme dispõe o Decreto nº 1.775/96 e Portaria nº 14/96.
No campo político, nos traz profunda preocupação a tentativa de violação aos direitos indígenas por diversos segmentos do Congresso Nacional, especialmente da bancada ruralista e bancada evangélica, que tentam a todo custo dar celeridade à votação e aprovação da Proposta de Emenda a Constituição (PEC) 215, que transfere a responsabilidade de regularização de terras indígenas da União para o Congresso Nacional, o que seria uma tragédia e um retrocesso irreversível caso tal PEC seja aprovada.
Na contramão dos interesses e agendas defendidas pelas populações indígenas brasileiras, o Ministério da Justiça e Casa Civil, têm de forma irresponsável, cedido às pressões da bancada ruralista do Congresso Nacional e ordenado a paralisação de regularização fundiária de terras indígenas em curso no nosso país, o que têm ocasionado o crescimento de conflitos entre comunidades indígenas e ocupantes não indígenas das terras indígenas e a realização de diversos protestos que têm tomado conta do nosso país.
Esperamos que o Estado Brasileiro suspenda todas as suas investidas contra as terras e comunidades indígenas que seriam justificadas pelo suposto Desenvolvimento Econômico. Obras de infraestrutura como a construção da barragem do Xingu, que atinge diversas comunidades indígenas do Pará, a obra de transposição das águas do Rio São Francisco, que atinge diversas comunidades indígenas no Nordeste Brasileiro, e obras de construção e duplicação de rodovias, ferrovias e gasodutos nas terras indígenas no Brasil, têm contribuído para que o atual cenário de insegurança alimentar e nutricional dessas comunidades indígenas seja ainda mais piorado.
Diante do aqui exposto, não há alternativa para o estado Brasileiro, caso seja de seu real interesse respeitar os direitos indígenas e contribuir para que nossas comunidades saiam desse cenário desolador, se não há de garantir que as terras indígenas sejam definitivamente regularizadas e sejam previstas ações estruturantes para o fomento as atividades de etnodesenvolvimento, gestão ambiental e territorial junto a essas comunidades, bem como de acesso a financiamento para projetos produtivos e de garantir a ampliação de assistência a programas assistenciais de repasse de cestas de alimentos e acesso à água para o consumo humano e para a produção de alimentos.
*Antônio Ricardo Domingos da Costa (Dourado) é indígena e representa, no Consea, a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme)
Artigo publicado originalmente em 06/08/2013