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Conselhos populares e democracia participativa
O decreto presidencial nº 8.243, de 23 de maio de 2014, criando Conselhos Populares, objetivando o aperfeiçoamento do instrumental de apoio ao Poder Executivo para a implementação de uma Política Nacional de Participação Social, e para tanto criando um Sistema Nacional de Participação Social, é um passo importante, altamente positivo, no sentido de ampliar as práticas de democracia participativa na sociedade brasileira. Na realidade, essa iniciativa deverá contribuir significativamente para que se dê efetividade ao disposto no parágrafo único do artigo 1º da Constituição, segundo o qual “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Numa rápida visão retrospectiva, é oportuno lembrar que no século dezoito, como resultado das revoluções burguesas, foi proclamado o objetivo da implantação de sistemas democráticos, com sistemas governamentais em que o povo é o titular do poder político. Esse foi o primeiro passo para dar ao povo um papel positivo nas decisões fundamentais de seu governo.
Pela impossibilidade prática de obter a participação direta e imediata do povo em grande número de decisões de seu governo acabou prevalecendo a democracia representativa, na qual a vontade popular deveria ser manifestada por meio de representantes eleitos. Entretanto, ocorreu uma importante evolução, criando-se novos instrumentos de participação popular nas decisões governamentais, consagrando-se o plebiscito e o referendo como veículos de expressão da vontade do povo, convivendo com as instituições representativas. Mais recentemente, com a criação e o aperfeiçoamento de novos meios para a obtenção da vontade do povo surgiu a democracia participativa. E quanto a essa importante inovação a Constituição brasileira de 1988 é das mais avançadas do mundo, como tem sido reconhecido e proclamado por constitucionalistas e defensores da sociedade democrática em diferentes países.
O decreto presidencial número 8.243, criando instrumentos para a efetivação de uma Política Nacional de Participação Social, tem sólido embasamento constitucional, a partir do já referido parágrafo único do artigo 1º da Constituição, segundo o qual deve ser dado ao povo um papel ativo no exercício do poder. Relativamente à competência da Presidenta da República para decretar a criação dos novos instrumentos de participação popular, para colaborar com o governo e influir sobre as decisões relativas à definição, aos objetivos e aos meios de implantação da Política Nacional de Participação Social, existe disposição expressa no artigo 84 da Constituição, que estabelece as competências privativas do Presidente da República, entre as quais está expressamente referida, no inciso VI, “dispor, mediante decreto, sobre a organização e funcionamento da administração federal”. Os Conselhos Sociais, previstos no decreto 8243, atuarão junto a órgãos da administração federal, colaborando para a melhor definição de objetivos e a maior eficácia em seu desempenho.
Contrapondo-se a essa iniciativa presidencial, foram divulgadas pela imprensa as opiniões de alguns juristas tentando sustentar a inconstitucionalidade dessa iniciativa presidencial, mas com argumentos absolutamente inconsistentes, que podem ser facilmente rejeitados com a simples referência a disposições expressas da Constituição. A par disso, é oportuno assinalar que foram publicadas com grande ênfase críticas da grande imprensa, que pretende ser reconhecida como o veículo de expressão da vontade de todo o povo. Assim é que, a par da insinuação de que os conselhos poderão ser “instrumentalizados”, foi referida na imprensa como negativa a intenção da Presidenta Dilma Roussef de dar voz a “uma tal sociedade civil”, esquecendo-se esses críticos de que os conselhos terão apenas a natureza consultiva, não participando da tomada de decisões. Para os juristas opositores dessa inovação, ela seria inconstitucional porque os meios de participação política do povo seriam apenas aqueles enumerados no artigo 14 da Constituição, ou seja, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, não havendo aí referência a outras formas de participação popular. Na realidade, quem fez essa afirmativa parece não ter conhecimento do total dos dispositivos constitucionais. Com efeito, basta lembrar alguns artigos da Constituição nos quais há referência expressa à participação popular, por meios não constantes da enumeração do referido artigo 14. Assim, no artigo 198, que trata das ações e dos serviços públicos de saúde existe a determinação de que sejam observadas algumas diretrizes, entre as quais consta, expressamente, no inciso III, “participação da comunidade”. Nessa mesma linha, no artigo 205, que trata do direito de todos à educação, está expresso que esta será “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”. No artigo 29, que dispõe sobre a organização e a atuação do Município na ordem política brasileira, dispõe-se que deverão ser observados os preceitos a seguir enumerados, entre os quais consta, no inciso XII, a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal”.
Como fica mais do que evidente, um dos preceitos básicos da Constituição é justamente a criação de meios para que o povo participe efetivamente do exercício do pode, como está expresso no parágrafo único do artigo 1º. Seguindo essa diretriz podem e dever ser criados novos meios de participação social na definição de políticas e na busca de sua implantação. A par disso, é muito importante lembrar a grande importância que já assumiu no Brasil a prática das audiências públicas, instrumento de participação popular não referido no artigo 14 da Constituição, que vem exercendo influência no desempenho do Legislativo, do Executivo e do Judiciário e cuja constitucionalidade ninguém jamais contestou.
Por último, é importante e oportuno assinalar que os Conselhos criados pelo decreto número 8243 têm caráter consultivo, não afetando de qualquer modo os direitos e poderes dos membros do Legislativo nem restringindo as atribuições e competências de qualquer órgão público brasileiro. As restrições a essa importante e louvável iniciativa só podem ser explicadas pela persistência de uma mentalidade formalista e elitista, ancorada nos argumentos e nas práticas do século dezenove. Além disso, várias manifestações deixaram evidente a resistência de parlamentares que pretendem preservar para si a exclusividade e o privilégio de serem os únicos veículos de expressão da vontade do povo, que formalmente representam, povo que muitas vezes tem sido prejudicado por decisões de representantes que privilegiam os interesses de segmentos sociais ou econômicos a que se vinculam.
Em conclusão, bem ao contrário das críticas negativas e das tentativas de questionamento da constitucionalidade, o decreto número 8243 é rigorosamente fiel à Constituição e dá importante contribuição para a prática da democracia participativa, ou seja, para que tenha efetividade à proclamação constitucional do Brasil como Estado Democrático de Direito.
* Dalmo de Abreu Dallari é jurista e advogado. O artigo foi publicado no site Migalhas no dia 24 de junho de 2014.