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A rua, o sul e o projeto
Selvino Heck*
“A rua é o nosso chão, a nossa base”. A frase não é de um militante social, de um dirigente sindical em greve, de um ativista das jornadas de junho, nem de um indígena na Semana de Mobilização em Brasília. Não foi dita numa assembleia de estudantes, numa mobilização de jovens em marcha, nem é de um parlamentar falando para trabalhadores, de um padre ou pastor da Teologia da Libertação, de um cristão nas Romarias da Terra. A frase é da presidenta Dilma Rousseff na 68ª Assembleia Geral da ONU, em 24 de setembro de 2013.
“Amigos, sou do sul, venho do sul”. A frase, histórica, abre o discurso do presidente Uruguaio Pepe Mujica na mesma Assembleia Geral da ONU.
O jornalista Jura Passos escreveu no Diário do Centro do Mundo: “Dilma Rousseff puxou o orelhão de Obama. Pepe Mujica deu um soco no estômago do mundo inteiro. Ela levantou a bola, ele cortou. Se o discurso de Dilma foi considerado áspero, contundente ou agressivo por jornais de vários países, o do presidente do Uruguai foi demolidor de toda ordem internacional vigente. Foi pedra pra todo lado, sobrou pra todo mundo. Não chegou a propor o socialismo global, mas deixou implícito. Para mau entendedor, nenhuma palavra basta. Só poupou os pobres. Poupou, não; defendeu”.
Foram dois discursos históricos, que se complementam, na mesma Assembleia Geral da ONU. Senão vejamos.
O discurso da presidenta Dilma foi de estadista e líder mundial. Denunciou fortemente “as atividades de uma rede global de espionagem eletrônica (que) provocaram indignação e repúdio em amplos setores da opinião pública mundial”. “Estamos, senhor presidente, diante de um caso grave de violação dos direitos humanos e das liberdades civis; da invasão e captura de informações sigilosas relativas às atividades empresariais e, sobretudo, de desrespeito à soberania nacional do meu país.”
Propôs “estabelecer para a rede mundial mecanismos multilaterais capazes de garantir princípios como: 1. Da liberdade de expressão, privacidade do indivíduo e respeito aos direitos humanos; 2. Da governança democrática, multilateral e aberta; 3. Da universalidade que assegura o desenvolvimento social e humano e a construção de sociedades inclusivas e não discriminatórias; 4. Da diversidade cultural, sem imposição de crenças, costumes e valores; 4. Da neutralidade da rede.”
Ao falar dos protestos e mobilizações de junho no Brasil, a presidenta Dilma disse: “As manifestações de junho, em meu país, são parte indissociável do nosso processo de construção da democracia e de mudança social. O meu governo não as reprimiu. Pelo contrário, ouviu e compreendeu a voz das ruas. Ouvimos e compreendemos porque nós viemos das ruas. Nós nos formamos no cotidiano das grandes lutas do Brasil”. E emendou com a frase que merece ser cartaz: “A rua é o nosso chão, a nossa base”.
Falando da crise na Síria, a presidenta Dilma afirmou: “Não há saída militar. A única solução é a negociação, o diálogo e o entendimento.”
Pepe Mujica (segundo Jura Passos, “se fosse brasileiro, Pepe seria Zé. Pois, no fundo, ele é importante por ser exatamente isso: o Zezinho, nosso vizinho, um cara que a gente conhece e gosta, que vive como nós e entende o que a gente sente) roncou grosso, e bonito: “Minha história pessoal, a de um rapaz – por que, uma vez fui rapaz – que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes.
Carrego as culturas originárias esmagadas, com os restos de colonialismo das Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América. Carrego o dever de lutar por pátria para todos”.
E arremata: “Mas para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nós mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização que estamos desenvolvendo. (...) Pensemos na causa profunda, na civilização do esbanjamento, na civilização do usa-tira que rouba tempo mal gasto de vida humana, esbanjando questões inúteis. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e nada vale mais que a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a vida e impulsioná-la, cuidá-la, procriá-la e entender que a espécie é nosso ‘nós’”.
Alegria de ser brasileiro, feliz por ser sul-americano, orgulho de ser latino-americano, de ter presidentes como Dilma, Lula, Pepe Mujica, Chávez, Maduro e de estar vivendo e participando desta quadra da história de nossos países tornando-se nações. De ser deste continente, ao qual Che, no Peru, na sua viagem pela América do Sul, anos 1950 (ver no filme Diários de Motocicleta), brindou à futura unidade da América do Sul e Latina, continente que não aceita mais ditaduras, não é mais subserviente ao Norte, continente da democracia, de um projeto transformador que é luz para o mundo em crise.
A rua é, tem sido e deverá continuar sendo nosso chão e nossa base. Chão e base de nossas lutas e sonhos. Porque somos do Sul, viemos do Sul, estamos emprenhados de Sul. O Sul do continente latino-americano, onde os pobres, os trabalhadores, indígenas, negros, quilombolas, homens e mulheres, jovens e idosos marcam a história e fazem do chão da vida a certeza e a urgência da construção de um mundo com justiça, igualdade e fraternidade.
*Selvino Heck é assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da Republica