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ATENÇÃO PRIMÁRIA
Prevenção e tratamento da obesidade sem gordofobia: como o SUS pode (e deve) se organizar nesse sentido
Foto: Adobe Stock
A obesidade é uma doença e, ao mesmo tempo, um fator de risco para outras doenças crônicas que atinge cerca de 41,2 milhões de adultos no Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS 2019). Segundo o Atlas da Federação Mundial da Obesidade, a previsão é que metade do planeta viva com a condição até 2035 – o que exige ações efetivas de prevenção e tratamento como parte das políticas de saúde pública. Entretanto, em uma sociedade que valoriza a magreza e exclui corpos considerados fora do padrão, essas ações devem ser baseadas no respeito e na garantia de direitos, especialmente nos serviços de saúde.
O estigma do peso ou da obesidade configura-se quando as pessoas sofrem abuso verbal e/ou físico associado e secundário ao excesso de peso, podendo levar à marginalização, exclusão e discriminação. É uma das formas de preconceito mais comuns sofrida pelas pessoas que vivem com obesidade, sendo caracterizada por atitudes gordofóbicas traduzidas em comportamentos e ações depreciativas aos indivíduos associados ao peso corporal.
Esse comportamento produz estereótipos. “Quantas vezes ouvimos que pessoas com obesidade não têm força de vontade, disciplina, autocontrole e que não estão preocupadas com o cuidado de si? Se essas pessoas sentem que, ao irem para o serviço de saúde, estarão em um local onde esses estereótipos serão reforçados, você acredita que elas se sentirão motivadas?”, questiona a coordenadora-geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, Kelly Alves.
Segundo ela, para que essas pessoas queiram procurar os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), é necessário que os profissionais de saúde não pratiquem abordagens de culpabilização e estigmatização, além de considerar os múltiplos determinantes da obesidade, como aqueles que estão fora do controle dos indivíduos. Entre eles, estão fatores socioeconômicos e ambientais, como a alta disponibilidade e exposição à alimentos ultraprocessados e menor acesso físico e financeiro a alimentos in natura e minimamente processados; ausência de locais seguros para a prática de atividade física e lazer nas cidades; e dificuldade de mobilidade urbana, diminuindo o tempo disponível para cozinhar e dormir adequadamente. “É urgente ultrapassar a ideia de que a obesidade é apenas resultado de escolhas totalmente individuais de uma alimentação não-saudável e prática insuficiente de atividade física”, explica.
Neste mês de conscientização sobre a obesidade, o Ministério da Saúde reuniu orientações, dicas, cursos, materiais de leitura e a legislação vigente para auxiliar trabalhadores do SUS a oferecer um cuidado mais empático, respeitoso e de qualidade para as pessoas com sobrepeso. Confira:
Linguagem e abordagem
A nutricionista, doutora em saúde pública e professora (UFBA) Poliana Cardoso Martins orienta, primeiramente, que os trabalhadores do SUS evitem o adjetivo “obeso”, que é gordofóbico e associa a pessoa imediatamente à doença. “Um indivíduo não deve ser definido por seu diagnóstico. Ao invés de dizer a expressão ‘uma pessoa obesa’, deve-se usar a frase ‘pessoa vivendo com obesidade’. Essa distinção evita o rótulo e coloca o indivíduo em primeiro lugar”, explica. “É só pensar que uma mulher com câncer de mama nunca é chamada de ‘cancerosa’, por exemplo.”
Um dos erros mais comuns entre profissionais de saúde é julgar moralmente os pacientes, que percebem que são tratados de maneira desfavorável e muitas vezes internalizam o estigma do peso, levando à autodesvalorização. Além de não culpabilizar, é necessário adotar uma abordagem motivadora, com foco na autonomia e na construção de cuidados baseados em decisões compartilhadas. “Sendo assim, a comunicação é fundamental, pois nossa linguagem reflete e molda nossos pensamentos, sentimentos, comportamentos e experiências, gerando um impacto profundo na vida das pessoas. A forma como falamos e as tratamos pode predizer o sucesso do cuidado”, diz. A especialista dá mais dicas:
- Só fale sobre o peso quando a pessoa introduzir o assunto ou, caso necessário, sempre peça a permissão para discutir o peso do indivíduo e fazer uma avaliação do peso e altura. O ideal é iniciar a conversa perguntando à pessoa o que ela pensa sobre seu peso e sobre a sua saúde;
- O cuidado não deve ser pautado exclusivamente no peso corporal, e sim na qualidade de vida das pessoas;
- Antes de iniciar qualquer discussão oportunista sobre obesidade durante uma consulta com outra agenda, é importante abordar primeiro a preocupação que o indivíduo apresenta e o que o levou a buscar o serviço de saúde. Lembre-se: o cuidado é focado na pessoa;
- Não faça suposições sobre dieta e atividade física. Uma vez que o peso de uma pessoa não reflete apenas a sua alimentação e a prática de atividade física;
- Lembre-se que também nos comunicamos com os nossos gestos, olhares, expressões e silêncios, entre outros. Logo, esteja atento à comunicação não verbal;
- Atente-se à saúde mental da pessoa vivendo com obesidade. O estigma pode levar a sintomas depressivos, ansiedade, baixa autoestima, estresse, aumento do consumo alimentar e até compulsão;
- Seja um(a) agente de transformação da narrativa pública sobre obesidade, aumentando a autorreflexão e mudando crenças profundamente enraizadas na sociedade.
“É necessário lembrar, ainda, que nem sempre as queixas da pessoa que vive com obesidade estarão relacionadas ao seu peso. Ou seja, inclusive para ter o melhor resultado no atendimento, é preciso enxergar a pessoa para além do IMC”, acrescenta a coordenadora Kelly Alves. Poliana concorda: “Estudos mostram que profissionais de saúde negam oportunidades de atendimento ou são menos propensos a sugerir opções de cuidados, bem como se observa o diagnóstico tardio de algumas doenças (como câncer de mama e do colo do útero) em pessoas que vivem com obesidade”, conta.
Estrutura e ambientação
Os serviços de saúde devem ser estruturados de forma que as pessoas com obesidade possam se sentir acolhidas. Isso significa pensar em todos os tamanhos de corpos que ocupam esses espaços. “Quando não há cadeiras, macas, balanças, aparelhos para aferir a pressão arterial, dentre outros, que suportam o peso e tamanho dos corpos das pessoas que vivem com obesidade, esses indivíduos compreendem que esses espaços não foram criados para eles”, afirma doutora e professora de nutrição clínica e social (UFOP) Erika Cardoso dos Reis.
Segundo a especialista, isso é chamado de “estigma estrutural”, ou seja, toda a estrutura dos serviços já produz sofrimento. A primeira dica que ela dá a gestores municipais e estaduais é visitar os estabelecimentos sob sua gestão para avaliar se as estruturas estão adequadas ao atendimento de todos os tipos e tamanhos de corpos, e não apenas os aceitos socialmente. “Por exemplo, as cadeiras e macas atuais suportam o peso das pessoas com obesidade sem que quebrem? As portas têm abertura suficiente para que elas passem? Equipamentos como a balança têm capacidade para todos os corpos? Os aparelhos para aferir a pressão arterial medem a circunferência de braços maiores? E, caso existam, esses equipamentos estão disponíveis ou ficam guardados, fazendo com que pessoas com obesidade se sintam diferentes ao perceberem que não vão usar aqueles que fazem parte do cotidiano da unidade?”, questiona. A partir disso, é possível reestruturar os espaços com reformas ou construções, além de organizar uma linha de cuidado às pessoas com sobrepeso e obesidade efetiva e respeitosa.
Para que as unidades de saúde estejam adequadamente ambientadas para a avaliação nutricional, a Portaria nº 2.975, de 14 de dezembro de 2011, orienta a aquisição/existência dos seguintes equipamentos: balança antropométrica com capacidade de pesagem de, no mínimo, 200 kg e plataforma com, no mínimo, 74 cm de largura x 90 cm de comprimento; e fita métrica com, no mínimo, 200cm úteis.
Na atenção especializada, a Portaria de Consolidação nº 3, Anexo IV, Capítulo II, define normas de credenciamento/habilitação para a assistência de alta complexidade a pessoas com obesidade. Os serviços devem dispor de materiais e equipamentos adequados, para assegurar a qualidade da assistência, conforme o Anexo IV da normativa.
Além disso, a depender do caso, transportes de urgência ou o transporte sanitário eletivo (TSE) deve ser oferecido a pessoas com obesidade, conforme determinação da Portaria nº 2.563, de 3 de outubro de 2017. O TSE é voltado ao deslocamento de pessoas com obesidade grave, para a realização de algum procedimento de caráter não urgente/emergencial, dentro ou fora do domicílio de origem. Para que não ocorra constrangimento, os municípios devem ter veículos adaptados para o transporte, com espaço suficiente, assentos e macas largas e resistentes, com dispositivos que garantam estabilidade, conforto e segurança.
Publicações
O Ministério da Saúde já dispõe de documento técnico que aborda o estigma da obesidade e suas repercussões, o Manual de Atenção às pessoas com Sobrepeso e Obesidade no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS) do SUS - que, também, aponta recomendações sobre o processo de organização de aspectos estruturais na Rede de Atenção à Saúde. A leitura é recomendada para todos os profissionais e gestores de saúde. Outros materiais importantes sobre a questão da obesidade no SUS são:
- Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas de Sobrepeso e Obesidade em Adultos;
- Instrutivo para o cuidado da criança e do adolescente com sobrepeso e obesidade no âmbito da Atenção Primária à Saúde;
- Manual - como organizar o cuidado de pessoas com doenças crônicas na APS no contexto da pandemia;
- Protocolos de uso do Guia Alimentar para a População Brasileira – Volume 1: Orientação alimentar de pessoas adultas com obesidade, hipertensão arterial e diabetes mellitus: bases teóricas e metodológicas;
- Protocolos de uso do Guia Alimentar para a População Brasileira – Volume 2: Orientação alimentar de pessoas adultas com obesidade;
- Atlas da situação alimentar e nutricional da população adulta atendida na APS;
- Cartilha - Alimentação Cardioprotetora.
- Policy Brief - Obesidade Infantil - Estratégias para prevenção e cuidado em nível loca
Capacitação
Para auxiliar os profissionais de saúde a ampliarem o conhecimento sobre obesidade e a compreender a importância de ações intersetoriais e do combate ao estigma, o Ministério da Saúde ainda oferece cursos e capacitações online, gratuitas e auto instrucionais, principalmente nas plataformas UNA-SUS e AVASUS. Atualmente, estão abertos para inscrição os seguintes:
- Curso Abordagem do sobrepeso e obesidade na APS
- Curso Reconhecendo o sobrepeso e obesidade no contexto da APS
- Curso Promoção do ganho de peso adequado na gestação
- Curso Obesidade Infantil: uma visão global da prevenção e controle na atenção primária
- Curso Cuidado da Criança e Adolescente com Sobrepeso e Obesidade na Atenção Primária à Saúde
Próximos passos
Para este ano, o Ministério da Saúde planeja elaborar mais dois manuais com orientações e ferramentas de apoio para a atenção à saúde do adulto com obesidade, no âmbito da APS; um minidocumentário com orientações sobre o assunto; e apoiar o fortalecimento da implementação das Linhas de Cuidado às Pessoas com Sobrepeso e Obesidade em cinco estados brasileiros. E já estão em fase final de elaboração o Guia Prático para Cuidado das Pessoas com Sobrepeso e Obesidade na Atenção Primária à Saúde; o Instrutivo para o Cuidado da Pessoa com Obesidade Grave no SUS; e Organização do Cuidado à Pessoa com Obesidade Grave por Equipe Multiprofissional no Sistema Único de Saúde.
Além disso, o botão “Peso Saudável” do Conecte SUS - funcionalidade inserida no aplicativo no ano passado - passará por avaliação de efetividade. Fique de olho!
Laísa Queiroz/Saps/MS