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Webinário em alusão aos 10 anos da tragédia na boate Kiss debateu ações, aprendizados e desafios
Os aprendizados e desafios após 10 anos da emergência na boate Kiss, em Santa Maria (RS), foram tema de um webinário, nesta quinta-feira (2), aberto a profissionais de saúde e interessados na pauta. “Se não fosse o SUS, em todos os níveis, em toda a sua organização, com certeza teríamos muito mais vítimas e o problema teria sido ainda maior. Olhar para o passado é aprender para melhorar o futuro”, declarou Márcio Garcia, atual diretor do Departamento de Emergências em Saúde Pública (SVSA/MS), na abertura do evento online.
Márcio destacou, entre os muitos aprendizados, a articulação imediata das três esferas de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS): União, estados e municípios. Também ressaltou o maior transporte aeromédico da história do Brasil e a liberação da hidroxicobalamina, antídoto ao cianeto - gás tóxico produzido pela queima da espuma que revestia o local - que, até então, não era um remédio autorizado para uso no Brasil.
“O comando deve ser único, organizando uma resposta coordenada, mesmo com vários níveis de operação”, defendeu Márcio, afirmando que, naquele momento, a resposta à emergência na boate Kiss foi a prioridade do governo federal.
Nesse mesmo sentido, a ex-consultora técnica de Urgência e Emergência da Força Nacional do SUS, Conceição Mendonça, contou que recebeu uma ligação ainda de madrugada. “Lembro como se fosse hoje do ministro Padilha me ligando às 4h da manhã, pedindo para eu pegar o primeiro voo para o Rio Grande do Sul. Fui uma das primeiras a chegar e ele foi claro: a gente tinha a obrigação de organizar e planejar essa gestão de emergência para salvar o maior número de vítimas. Esse recado foi muito forte pra mim”, lembrou, emocionada.
Conceição explicou que as reuniões aconteciam mais de uma vez por dia, haviam coletivas de imprensa, comissões de trabalho e grupos de comunicação organizados para atualizar dados. “Houve a instituição de protocolos, plano de contingência, abertura de posto médico, além de muitas oficinas e treinamentos. Foi um trabalho conjunto fundamental entre Ministério da Saúde, Conitec, Anvisa e vários outros”, lembrou.
O médico Carlos Dornelles, que era profissional do SAMU de Santa Maria na época da tragédia, contou que o Ministério da Saúde se colocou prontamente à disposição. “Essa conexão interfederativa foi primordial. Nós tínhamos uma equipe muito qualificada e isso facilitou a disciplina dentro dessa organização”, salientou.
Para Nilton Pereira Júnior, diretor do Departamento de Atenção Hospitalar, Domiciliar e Urgência (SAES/MS), a Força Nacional do SUS, mesmo recém criada naquela época, conseguiu mobilizar uma série de atores sociais do Sistema Único de Saúde. “Isso mostra que o SUS, apesar das dificuldades, é um sistema cooperativo, solidário e interfederativo. Precisamos olhar para histórias como essa e entender que nós só conseguiremos atuar de forma intersetorial com o envolvimento dos usuários, dos cidadãos que foram vitimizados. Não há atuação governamental, tanto emergencial, quanto continuada, se for de cima pra baixo. É necessário um comando único, mas é fundamental que as pessoas atingidas tenham atuação protagonista”, declarou o diretor.
Atenção psicossocial
A psicóloga e pesquisadora da organização Médicos sem Fronteiras, Débora Noal, contou como foi a atuação em Santa Maria. “Nas primeiras 24 horas, articulamos um núcleo de gestão de saúde mental e atenção psicossocial, com representantes das três esferas. Isso não é fácil, mas nas primeiras 12 horas, tínhamos todas essas pessoas. Essa oferta de pronta resposta foi realmente muito rápida”, relembrou.
“O mapa da cidade foi estudado. Juntamos os profissionais disponíveis na rede pública, além dos voluntários, todos com formação próxima da necessidade de atendimento naquela situação e fizemos o primeiro plano de educação permanente. Em menos de duas horas nós formamos 250 profissionais de saúde em PCP - Primeiros Cuidados Psicológicos”, explicou, citando que eles aprenderam como produzir estabilização emocional, como articular a rede, como alimentar prontuários que pudessem ser enviados ao SUS, já que esses prontuários precisavam voltar para a atenção básica, para acompanhamento de cuidado. “E ainda juntamos uma central para regulação de saúde mental”, acrescentou.
Débora esclareceu que foram três meses intensos nessa primeira fase de resposta. “A pedido do Ministério da Saúde, eu voltei à Santa Maria no final do primeiro trimestre, no final do primeiro semestre e no final do primeiro ano, para fazer uma avaliação dos serviços da cidade. Tudo sempre em conjunto com governo federal, estado e município”, declarou.
Emocionada, ela afirmou ser uma ação de grande impacto. “Foi a primeira vez que a gente pensou estratégias de curto, médio e longo prazo para saúde mental e atendimento psicossocial, ainda na primeira fase da resposta. De pronto, não havia plano de contingência, de preparação ou de mitigação, mas conseguimos pensar estratégias já nas primeiras 24 horas, além da fase de reconstrução. Isso é muito raro de acontecer, e não é só no Brasil, é raro no mundo todo. E foi com essa premissa, com essa base de política pública, que foram montadas estratégias para as tragédias de Mariana e Brumadinho, por exemplo. Ainda hoje, essa é uma estratégia ‘ponto de virada’ que serve de referência para outros países”, concluiu.
Documentário
No último dia 27, o Ministério da Saúde anunciou a produção de uma série documental com depoimentos, relatos e lembranças sobre os aprendizados desde então. Três episódios estarão disponíveis, em breve, no canal do Ministério da Saúde no Youtube. O trailer foi exibido durante o webinário.
Taya Carneiro, gerente de Projetos Estratégicos em Comunicação do Departamento de Emergências em Saúde Pública (SVSA/MS), foi uma das idealizadoras do documentário. Durante o encontro, ela falou sobre a produção. “A princípio, a ideia era documentar a experiência e usá-la nos cursos do Programa de Formação em Emergências em Saúde Pública, mas percebemos que isso precisava ser revivido. Essa é uma história que precisa ser contada, até para que possamos aprender e fazer a gestão da resposta e da preparação em outras ocasiões”, explicou.
Para Gabriel Barros, sobrevivente da tragédia e presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, o trabalho realizado no documentário faz parte dessa missão de resgate da memória. “Nossa principal luta é para que não se repita. Resgatar a memória é construir o futuro”, defendeu.
Tragédia
Em 2013, o Sistema Único de Saúde (SUS) atendeu uma das maiores emergências da história do Brasil. Na madrugada de 27 de janeiro daquele ano, 242 pessoas morreram e mais de 600 ficaram feridas em razão do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS). A tragédia foi considerada, à época, a segunda maior no Brasil em número de vítimas em um incêndio, sendo superada, apenas, pela emergência do Gran Circus Norte-Americano, ocorrida em 1961, em Niterói, que matou 503 pessoas.
Bianca Lima, com informações da SVSA
Ministério da Saúde