A chegada
Trinta e três venezuelanos, em média, entram no Brasil por hora. Aproximadamente, 800 por dia. Uns dias mais; outros dias menos.
A maior parte deles cruza a fronteira dos dois países deixando Santa Elena de Uiarén para trás, e tocando pela primeira vez o solo brasileiro em Pacaraima, cidade minúscula e fria ao Norte de Roraima. Todos, sem exceção, fogem do país natal que não lhes oferece mais dignidade para viver. Chegam ao Brasil com o que podem carregar consigo: algumas peças de roupas, documentos, poucos objetos pessoais e um resto de força e coragem, suficientes para que possam buscar uma vida mais decente, ainda que distante de casa.
Entre 2017 e 2018, o Brasil recebeu 111 mil venezuelanos.
Em março deste ano, o fluxo migratório se intensificou e, de acordo com a Polícia Federal, chegou a mil pessoas/dia. Ao cruzarem a fronteira, encontram longas filas nos locais de identificação e uma barreira além do posto da Polícia Federal: o idioma.
Muitos chegam doentes e famintos, em situação precária. Alguns casos são alarmantes, em função da falta de medicamentos e interrupção dos tratamentos aos quais estavam sendo submetidos.
Psicologicamente, os venezuelanos chegam degradados, com a tristeza no olhar de quem precisou deixar para trás suas casas, parentes, filhos e esposas, buscando conseguir meios para levá-los a um novo local e recomeçar suas vidas.
Os dramas com os quais os voluntários e profissionais, que estão atendendo diretamente os imigrantes, se deparam são diversos. Fernando Souza, representante do Serviço Humanitário SUD, uma das muitas entidades que estão em Roraima, lembra de uma ocasião que lhe impactou.
"Estava em uma visita ao Ginásio Tancredo Neves, antes da atual reforma realizada pelo Exército. Uma senhora de aparentemente 40 anos me procurou e disse que precisava de ajuda"
Fernando Souza, representante do Serviço Humanitário SUD
“Eu estava em uma visita ao Ginásio Tancredo Neves, antes da atual reforma realizada pelo Exército. Uma senhora de aparentemente 40 anos me procurou e disse que precisava de ajuda de todo o tipo", afirma Souza.
"Ao procurar entender suas necessidades, ela me contou fazer parte da oposição ao governo de Nicolás Maduro e que, por fazer parte deste grupo, teve suas pernas queimadas com um lança-chamas por membros fiéis ao governo. É uma cena dura de ver e de entender."
Em busca de abrigo
Nesse cenário, os primeiros a sofrerem o impacto desse fluxo migratório no Brasil são os moradores de Pacaraima. No início, a população reagiu bem, mas com o aumento do fluxo, mesmo com o suporte do pároco local, a sociedade parou de apoiar a vinda dos vizinhos. Eles chegam ali de diversas formas: por meios de transportes pagos, caronas e até a pé. E dali partem na mesma pegada. Muitos chegam a andar mais de 200 km até Boa Vista, às margens da Rodovia 174.
"A situação de Roraima hoje é caótica, precária. Não temos condições de manter serviços que não se tem parâmetro de quando irão terminar. O momento crítico é diário”
Haydée Magalhães, secretária de Segurança Pública do Estado de Roraima
Se em Pacaraima o clima não é bom, em Boa Vista é ainda mais intenso o sentimento negativo em relação aos novos moradores da cidade. De acordo com Haydée Magalhães, secretária de Segurança Pública do Estado de Roraima, a população sofre em ver a cidade tomada por venezuelanos, pedintes, coisa que não se via antes da migração. Muitos entendem que passou a haver uma concorrência por trabalho com os venezuelanos, que oferecem mão de obra mais barata, ocasionando um aumento do desemprego entre os locais.
O temor do integrante do SUD, Fernando Souza, é de que um sentimento xenófobo possa estar sendo estimulado por críticas recorrentes da imprensa que, no seu entender, deveria estar exercendo um papel mais educativo.
“A informação educativa é o grande segredo do melhor acolhimento destas pessoas, também com o número crescente de refugiados pelo mundo e o Brasil sendo um país de dimensões continentais, é possível absorvê-los sem maiores traumas, distribuindo-os pelo país sem sobrecarregar somente uma única região. Com certeza a informação é a maneira de levar o correto entendimento de como os refugiados se sentem e de como podemos efetivamente ajudá-los em nossa pátria”, acredita Souza.
Para apoiar os brasileiros e ajudar os venezuelanos que se instalaram na região, o presidente Michel Temer visitou Roraima, em fevereiro de 2018, onde anunciou a edição de uma medida provisória de atendimento emergencial aos imigrantes, que foi aprovada em definitivo pelo Congresso Nacional na primeira semana de junho. O presidente ressaltou que o Brasil segue vigilante em relação à deterioração das condições humanitárias no país vizinho.
O trabalho das Forças Armadas na Operação Acolhida é montar estruturas para abrigo, fornecer comida, dar transporte, entre outras questões operacionais. Mas o trabalho de lidar diretamente com os venezuelanos nos abrigos fica, em sua maior parte, a cargo da Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Em junho, em uma nova visita a Roraima, o presidente Temer acompanhou as ações de acolhimento aos imigrantes venezuelanos. Ele visitou o centro de triagem de imigrantes da Polícia Federal, um abrigo e batalhões do Exército.
Crise humanitária
A crise econômica na Venezuela se intensificou após a morte de Hugo Chávez, em março de 2013, por problemas decorrentes de um câncer. Seu herdeiro político, Nicolás Maduro, assumiu o governo no mês seguinte, para um mandato de seis anos. Em 2015, após 18 anos de domínio chavista, a oposição conquistou maioria no Parlamento, o que fez eclodir um conflito entre poderes. Nesse cenário, o Tribunal Superior de Justiça, aliado a Maduro, restringiu as funções legislativas da Assembleia Nacional. Em abril de 2016 uma série de protestos tomou as ruas de Caracas, exigindo a saída de Maduro. Ao fim de quatro meses de confrontos, o saldo era de 125 mortos e uma crise de proporções humanitárias.
Carlos Jarochinski, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima, classifica a situação atual dos cidadãos do país vizinho como uma migração forçada. E faz um comparativo entre os períodos de governo de Hugo Chávez e de Nicolás Maduro.
“No começo do governo chavista, em 1998, começa a ter um movimento migratório que, até 2014, os pesquisadores venezuelanos calculam que um milhão e meio de pessoas deixaram a Venezuela. A partir de 2014 até hoje já se fala em mais de 700 mil pessoas. Ou seja, teve um aumento significativo no número de saídas”, compara Jarochinski.
Em janeiro de 2018, Francisco Toro escreveu uma matéria para o jornal The Washington Post em que apresentava o descalabro que a hiperinflação tem provocado na economia venezuelana. De acordo com o jornalista, há aproximadamente seis anos seria possível pagar, com 500 bolívares, uma refeição para duas pessoas, com direito a vinho, no melhor restaurante de Caracas. No final de 2017, os mesmos 500 bolívares seriam suficientes apenas para pagar uma xícara de café. Em maio de 2018, seria necessário desembolsar 70 mil bolívares por um café expresso.
Como promessa de sua campanha eleitoral, Nicolás Maduro anunciou um aumento do salário mínimo para 1 milhão de bolívares, o equivalente a US$ 1,61. Com 6.000% de hiperinflação anual, de acordo com a Assembleia Nacional, é provável que esses valores de referência já estejam defasados.
O Brasil acolhe
“As principais organizações participantes da ajuda humanitária, atualmente, em Roraima, além do Exército Brasileiro, são o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR); a Organização Internacional para as Migrações (OIM), responsável por emprego e transferência; a Fraternidade Internacional (administrando os locais); a Fraternidade Sem Fronteiras (modelo diferente dos demais e ligado a um grupo espírita) e por fim o Serviço Humanitário SUD (Ligado aos Mórmons). Estas organizações empreenderam um trabalho forte nos abrigos, o que permitiu o envolvimento de outras organizações no processo”, explica Fernando Souza, representante da SUD.
Até maio de 2018, cerca de quatro mil pessoas viviam em nove abrigos em Roraima. Cinco foram abertos a partir do início dos trabalhos da Operação Acolhida, do Governo Federal, que têm o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU). Os outros quatro abrigos que já existiam foram reformados. Em junho, outros quatro abrigos serão montados, com previsão de abrigar mais quatro mil pessoas. De acordo o coordenador da operação, general Eduardo Pazuello, há em Roraima entre quatro e sete mil venezuelanos em situação de vulnerabilidade, que precisam da ajuda do governo e de órgãos internacionais, mas não existem mais desassistidos em Boa Vista.
Um das estratégias do Governo Federal é interiorizar os venezuelanos, transferindo-os para outras unidades da federação. Com a participação do Ministério do Desenvolvimento Social, os estados são consultados e solicitados a participarem do processo de interiorização. No entanto, até o presente momento somente três estados se colocaram à disposição para receber venezuelanos: Amazonas, São Paulo e Mato Grosso. O governo já realizou três etapas da interiorização, levando 527 venezuelanos para as cidades de São Paulo, Manaus e Cuiabá. O governo federal pretende investir na interiorização de 15 mil venezuelanos. Estão sendo disponibilizados R$ 190 milhões para atender a operação um período de 12 meses. Essa verba é utilizada, principalmente, em contratação de estruturas para abrigos, transporte de equipamentos e na alimentação dos migrantes, além das viagens de interiorização nos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB).
O general de Divisão Eduardo Pazuello, coordenador da operação de acolhimento dos migrantes, chamada de Força-Tarefa Humanitária, estima que, daqueles que estão em Roraima, cerca de 65% querem interiorizar; outros 10% a 20% querem ficar em Boa Vista e outros 10% a 20% pretendem voltar para o país de origem.
Quem vem lá?
Um estudo realizado pela FGV DAPP, divulgado no início de 2018, mostra que começam a surgir em Boa Vista conflitos relacionados à disputa por emprego, vagas no sistema público de ensino e em hospitais. Em relação à qualificação da mão de obra dos imigrantes, o mesmo estudo mostra que "uma parcela significativa da população venezuelana não indígena que atravessa a fronteira apresenta, majoritariamente, bom nível de escolaridade (78% possuem nível médio completo e 32% têm superior completo ou pós-graduação)".
Por essa razão, outro trabalho importante tem sido realizado na triagem para a interiorização. O primeiro ponto a ser considerado é a vontade do migrante em interiorizar. Muitos preferem ficar em Roraima pela proximidade com o país de origem. Não querem se distanciar muito da família. Além disso, eles precisam ter um perfil desejado pelo mercado de trabalho dos outros estados. São Paulo, por exemplo, recebeu preferencialmente homens solteiros, o que facilitaria a empregabilidade. Já Manaus aceitou casais e famílias. Chegando lá, essas pessoas ficam em abrigos por um tempo determinado. Além dos serviços básicos, o governo federal criou uma carteira de identidade transitória para que os venezuelanos possam obter trabalho.
Dessa forma, a pesquisa da FGV DAPP, que também utiliza dados do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), mostra que , em níveis gerais, "os venezuelanos não indígenas que migram para Boa Vista possuem nível de escolaridade superior à média da população local, e o percentual dos venezuelanos inseridos no mercado formal de emprego, 28%, não é muito diferente do percentual de brasileiros, 29,3%, em 2015, segundo IBGE (2015)".
Uma maneira eficaz de atuar nessa questão, ainda de acordo com o estudo, seria "conhecer de forma ágil as habilidades dessa população imigrante e articular com o setor privado, de modo a mapear oportunidades de acordo com essas competências".
Apesar de todo o apoio, o representante da SUD ainda preocupa-se e acredita que governo, instituições e a população brasileira poderia fazer mais.
"Acordo todos os dias preocupado, pois tudo o que estamos fazendo parece pouco ante tantas necessidades que se fazem presentes no dia a dia daquelas pessoas. Minha cabeça e meus pensamentos me levam a acordar na madrugada e ficar refletindo como poderíamos ser mais efetivos nesse processo no auxílio dos refugiados", diz Souza.