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Juiz afirma que instituição do marco temporal aumenta violência no campo e insegurança jurídica
- Foto: Gustavo Moreno/STF
Na 10ª audiência da Comissão Especial de Autocomposição em torno do marco temporal, realizada no Supremo Tribunal Federal (STF), na segunda-feira (18), em Brasília, o senador Hiran da Silva insistiu na manutenção de uma data para definir a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. Em resposta, o juiz auxiliar Diego Viegas afirmou que não existe marco temporal na comunidade internacional e que sua permanência contribui para aumentar a insegurança jurídica, a violência em conflitos no campo e condenações contra o Brasil por órgãos da comunidade internacional.
Senador pelo estado de Roraima, Doutor Hiran, como é conhecido, é autor da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48, que visa alterar o artigo 231 da Constituição Federal e instituir a data de 5 de outubro de 1988 como marco temporal. A PEC foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em julho deste ano. Do modo como foi aprovada pelo Congresso Nacional, a lei do marco temporal (14.701/2023) limitou o direito constitucional indígena às terras que estivessem ocupadas por indígenas na data de promulgação da Constituição ou que delas tivessem sido afastados por violências que persistissem até a data.
“A lei vem sendo discutida desde 2007. Temos uma PEC de minha autoria e pelo que tenho sentido precisa ser amadurecida para ser votada, pois acho que não fere em nada a Constituição. Não vejo como retrocesso. Precisamos estabelecer um prazo porque senão vamos criar mais insegurança jurídica”, defendeu o senador, que classificou a lei do marco como uma construção responsável do parlamento a ser aproveitada pela Comissão em curso.
O juiz auxiliar Viegas, que representa o ministro do STF Gilmar Mendes nas audiências, trouxe como devolutiva que o próprio Congresso Nacional se comprometeu a não avançar a tramitação da PEC 48 enquanto a Comissão não trouxesse uma nova proposta para substituir a lei do marco temporal. “Divergir do mundo ocidental civilizado, e reconhecer o marco, em nada impedirá o Brasil de ser condenado por tribunais do exterior, a exemplo do caso Xukuru”, avaliou Vegas.
Caso Xukuru
De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), o tribunal internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) concluiu que o Brasil agiu com lentidão para demarcar o território Xukuru, em Pernambuco, o que provocou o afastamento de 2.300 famílias do local que ocupavam. O governo demorou 16 anos, a partir de 1989, para reconhecer a titularidade e demarcar as terras dos Xukuru, ao passo que atrasou a remoção dos invasores. A condenação do Brasil se deu em 5 de fevereiro de 2018, na gestão Temer, e o território foi reconhecido durante a primeira gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2005.
Diego Viegas ponderou que se o marco for mantido, a lei desagua para a desapropriação por interesse social público no caso da persistência de conflitos fundiários, o que resultaria em valores de indenização abaixo do mercado para os particulares não indígenas em territórios tradicionais. O juiz alertou que isso também desencadearia uma onda de processos dos indígenas na CIDH, tomando como base a ação envolvendo os Xukuru, em que o estado brasileiro foi condenado a realizar a desintrusão da área, pagar as benfeitorias e ressarcir ocupantes com titulações dentro da Terra Indígena.
De acordo com o juiz, o marco em si prolonga o problema indefinidamente e gera disputas por áreas com prazo superior a uma década de litígio, em vez de garantir o direito de retenção da terra aos não indígenas até o pagamento da indenização por benfeitorias ou dos valores incontroversos, como estipulou o STF.
A consultora jurídica do Ministério dos Povos Indígenas, Alessandra Alves, fincou que a Comissão deveria se ater às premissas traçadas: a busca pela segurança jurídica e a celeridade na garantia de direitos, uma vez que a mora de demarcação do estado é grande.
“Há um julgado no STF referente ao Tema 1031 da Repercussão Geral que diz que os particulares com terras tituladas em Terras Indígenas precisam ser ressarcidos, mas como faremos isso ainda está em aberto. O Poder Executivo tem feito uma revisão sobre seus procedimentos e a Funai trouxe propostas de alterações dos artigos 5 e 6, diante do que ouviu na Comissão, para atender o outro lado e conseguir avançar”, enfatizou a consultora para demonstrar o tom de diálogo do governo.
Cerne da discussão
O artigo 4º da lei do marco temporal afirma que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas brasileiros aquelas que, na data da promulgação da Constituição Federal, eram: (1) simultaneamente habitadas por eles em caráter permanente; (2) utilizadas para suas atividades produtivas; (3) imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e (4) necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
A 10ª audiência teve como tônica o prosseguimento da discussão em torno do artigo citado, mais especificamente sobre a forma como a legislação deve tratar as comunidades indígenas transfronteiriças. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) trouxe um novo texto para substituir o artigo 4º que omite a palavra “brasileiros” porque há povos com traços culturais e linguísticos diversos que não necessariamente respeitam as divisões criadas pelo mundo não indígena.
A retirada da palavra gerou manifestações contrárias de fazendeiros, advogados e do senador Dr. Hiran. Como contraponto, Simone Karipuna, representante indígena do povo Karipuna, região do Rio Oiapoque, disse que o direito de ir e vir nos territórios não é uma visão romântica indígena e que as políticas públicas precisam abarcar essa particularidade.
“Quando ouço pessoas que não conhecem nossa realidade e querem mexer no modo como nos relacionamos com nossos territórios, isso corta minha alma. Existem estruturas que fomos obrigados a entrar, mas não criamos essas fronteiras”, protestou Simone.
A atual coordenadora do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Interior Sul, em Palhoça (SC), Eunice Kerexu, deu como exemplo a Terra Indígena de Morro dos Cavalos, cuja população indígena habita o Paraguai, a Argentina, o Peru, a Bolívia e o Brasil. “Comunidades transfronteiriças são levadas em consideração quando estudos territoriais são feitos. Precisamos tomar cuidado com essas alegações porque elas são usadas para nos atacar e o custo é muito alto.”
BNDES
Na audiência, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) apresentou um estudo, de 2024, com a identificação de valores pelo Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). O estudo discorre sobre como aproveitar áreas públicas do Brasil para receber créditos ambientais, principalmente na Amazônia, e atrair investimentos para essas áreas.
Para tanto, foram consultados o Ministério do Meio Ambiente (MMA), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e consultorias privadas.
Apesar de não analisar Terras Indígenas, o estudo foi mostrado como uma possibilidade para a Comissão no intuito de os próprios territórios gerarem renda para se sustentarem por meio da conservação ou restauração de florestas. Conforme o juiz Vegas, o ministro Gilmar Mendes deu carta branca para que o BNDES crie um projeto de governança e ele seja desenvolvido com base no Fundo Amazônia para encontrar mecanismos que possam garantir benefícios econômicos para os povos que vivem em Terras Indígenas.