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Indígenas se manifestam contra a criminalização dos processos de retomada
- Foto: MPI/ASCOM-Rony Eloy
Durante a 9ª audiência da Comissão Especial de Autocomposição em torno da lei do marco temporal (14.701/2023), realizada na segunda-feira (11), em Brasília, representantes da indígenas defenderam que os processos de retomadas de territórios tradicionalmente ocupados não são invasões de propriedade particular e que o estado brasileiro não deve criminalizar condutas indígenas que visam cumprir a Constituição de 1988.
O representante Douglas Kaingang, pesquisador com ênfase nos campos da gestão ambiental, antropologia, etnologia, direitos territoriais dos povos indígenas, legislação ambiental e indigenista, frisou que o estado brasileiro precisa lidar com o fenômeno social das retomadas tendo em mente que a livre determinação dos povos indígenas é prevista por órgãos internacionais.
“Reforço que precisamos observar a retomada à luz de suas complexidade para percebê-la não como invasão de propriedade privada. É, sim, um conceito relativamente recente do movimento indígena que parte de sua experiência com entes do estado ao buscar o cumprimento de seus direitos constitucionais. Trata-se de uma mobilização coletiva de regularização fundiária que responde ao passado, à política colonial em relação aos indígenas.”
Na esteira da fala de Kaingang, Ysso Truká, mestre pela Universidade Federal do Pará (UFPA), afirmou que Terra Indígena não comporta propriedade particular ou titulação a não indígenas, segundo a legislação nacional. “O maior invasor de território indígena é o estado brasileiro, que força os conflitos. Impedir retomada e garantir indenização de particular não traz segurança nenhuma para os indígenas, pois quem vai nos trazer estabilidade enquanto o pagamento não é feito?”, refletiu Truká.
“Retomada não é invasão. Queremos o local em que nascemos para viver. Nossa relação com a terra não é de exploração, não estamos aqui para acabar com ela. Esse pacto tem que trazer segurança para os dois lados porque quem morre nos conflitos são os indígenas. O Estado foi omisso e fomentou essa guerra. Quais das leis fundiárias foram criadas pelos indígenas? O que elas fazem é vetar nosso acesso às terras”, acrescentou Truká.
Liderança indígena do povo Krenak e atual coordenador regional da Funai em Minas Gerais e Espírito Santo (CR-MGES), Douglas Krenak pontuou que, desde o início da Comissão, a discussão sobre a questão das indenizações dos não indígenas é um dos pontos mais pisados por quem os defendem.
“Essa mesa foi criada para amenizar os conflitos, mas a demarcação é a reparação de erros históricos cometidos no passado, quando os estados deram títulos de terras que não os pertencem. Não adianta entregar reparação financeira para não indígenas e nos deixar terras com recursos escassos nós. Não se trata apenas de devolvê-las. Precisa ser criado um caminho para recuperação, restauração e monitoramento dos territórios.”
Direito de retenção
O juiz auxiliar Diego Vegas deu início à audiência recapitulando os procedimentos da sessão anterior, realizada no dia 4, quando o artigo 4º da lei do marco temporal e seus vetos presidenciais foram lidos e debatidos, assim como as Ações de Controle Concentrado que motivaram a instalação da Comissão, a decisão do STF no Tema 1031 e pareceres da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) acerca do tema.
Vegas também mencionou um ponto central sobre a indenização de particulares com titulações em territórios indígenas. A Alta Corte estipulou aos particulares não indígenas o direito de retenção da área ocupada até o pagamento da indenização por benfeitorias ou pagamento dos valores incontroversos, mas abriu a possibilidade de outro modelo ser adotado mediante sugestão dos membros da Comissão.
O juiz então citou o protocolo das Nações Unidas para lidar com conflitos em disputas fundiárias envolvendo populações indígenas, pautado pela diplomacia e desarmamento preventivo, em que o estado precisa atuar para o reconhecimento da tradicionalidade das Terras Indígenas e para a remoção de não indígenas. Vegas defendeu agilidade nos processos administrativos com prazos menores, direitos de indenização para particulares e segurança jurídica para todos como o conjunto de soluções para resolver os conflitos fundiários nacionais.
“De acordo com o relatório do CIMI [Conselho Indigenista Missionário] ‘Violência contra os Povos Indígenas no Brasil’, de 2023, houve 1.276 casos de invasão e conflitos em territórios indígenas no passado e isso é causado pela omissão e morosidade nos processos de demarcação”, resumiu Vegas.
Falsa equidade
Maria Janete Albuquerque de Carvalho, diretora de Proteção Territorial da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), aproveitou a menção dos dados para ressaltar que não há qualquer equidade de prejuízo entre indígenas e não indígenas no que se refere a ataques e atos violência perpetrados em conflitos fundiários.
A diretora deu destaque à paralisia de ações, ao alto índice de judicialização sobre processos de demarcação, à parte dos agentes do estado que praticam violências contra indígenas e aos dados de violência que demonstram um contexto desfavorável aos indígenas.
“Mais de 80% da Força Nacional está agindo em questões indígenas porque são acionados pela Funai e Ministério dos Povos Indígenas constantemente. Nos preocupa que o direito de retenção possa virar uma chuva de ações contra a Funai. As demarcações serão judicializadas de novo, com uma fila de processos impossível de ser cumprida? Em que medida isso de fato vai ajudar na celeridade da demarcação?”, questionou Maria Janete, que sugeriu levar à discussão ao Conselho Nacional de Política Indigenista, o CNPI, para análise.
Compreensão de valores e perspectivas
A consultora jurídica do MPI, Alessandra Alves, alertou para a necessidade de cautela na apreciação das condutas dos indígenas envolvidos em conflitos para não fomentar o problema da criminalização indevida das condutas dos indígenas dissociadas de provas. Ela explicitou que os direitos indígenas estão previstos na Constituição, mas não são cumpridos à risca ou assegurados integralmente. Portanto, equacionar as diferentes perspectivas sobre os conflitos é algo mandatório para trazer garantias a ambos os lados.
“Estamos abertos para entender o que de fato traz segurança aos particulares. Temos a intenção de construir propostas, mas os valores dos povos indígenas precisam ser atendidos”, disse a consultora.
Eliel Benites, diretor do Departamento de Línguas e Memórias Indígenas (Deling) do MPI, descreveu o conflito no campo como a tradição associada ao processo de identificação de territórios indígenas e que o direito de retenção, do modo proposto pelo STF, prolonga e aprofunda as disputas.
“O tempo do processo de demarcação precisa estar garantido aos indígenas, outro ponto fundamental é a questão do valor. O valor do território para o indígena tem outro conceito, obedece ao acúmulo de tempo para possibilitar equilíbrio ecossistêmico, mas outra posse o desconfigurou e vocês querem pagar por isso. O objetivo final indígena não é produção capitalista e sim reproduzir o próprio modo de vida indígena.”
A atual coordenadora do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Interior Sul, em Palhoça (SC), Eunice Kerexu, endossou a fala de Benites e questionou sobre o prazo do cumprimento da demarcação de Terras Indígenas que, segundo a Constituição, deveria ser cumprido até cincos anos após sua promulgação.
“A demora acirra os conflitos no campo e o marco temporal agravou isso. As retomadas não podem ocorrer, mas onde estão nossos direitos dentro dos nossos territórios? Não os demarcam e tampouco podemos retomá-los, mas aos não indígenas está garantido o direito de retenção e indenização. Como liderança indígena, aproveito esse espaço de discussão para exigir real avanço para que seja garantida nossa permanência nos territórios”, concluiu Eunice.
Artigo 4º
Após as avaliações sobre o direito de retenção, a audiência foi dedicada à fase de debate sobre a proposição de soluções para o artigo 4º da lei do marco temporal. Confira a íntegra do texto:
"Art. 4º São terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas brasileiros aquelas que, na data da promulgação da Constituição Federal, eram, simultaneamente:
I - habitadas por eles em caráter permanente;
II - utilizadas para suas atividades produtivas;
III - imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
IV - necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 1º A comprovação dos requisitos a que se refere o caput deste artigo será devidamente fundamentada e baseada em critérios objetivos.
§ 2º A ausência da comunidade indígena em 5 de outubro de 1988 na área pretendida descaracteriza o seu enquadramento no inciso I do caput deste artigo, salvo o caso de renitente esbulho devidamente comprovado.
§ 3º Para os fins desta Lei, considera-se renitente esbulho o efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data de promulgação da Constituição Federal, materializado por circunstâncias de fato ou por controvérsia possessória judicializada.
§ 4º A cessação da posse indígena ocorrida anteriormente a 5 de outubro de 1988, independentemente da causa, inviabiliza o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupada, salvo o disposto no § 3º deste artigo."
A próxima reunião da Comissão Especial será realizada no dia 18 de novembro, segunda-feira, das 13h às 19h.