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Ministério dos Povos Indígenas: a concretização da presença indígena no Estado brasileiro
A criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) é um marco histórico de reconhecimento da necessidade imprescindível de representação indígena participativa no processo de construção democrática da sociedade brasileira. As raízes do Brasil vão aos poucos se expandindo e assumindo seu lugar original de liderança.
A estrutura ministerial por si só já registra a mudança de tom do próprio Estado brasileiro em relação à percepção dos povos indígenas. Após anos de negacionismo científico, o governo deixa de enxergá-los como empecilho para o progresso para colocá-los como figuras centrais, protagonistas em questões territoriais, de conservação ambiental, de reparação histórica e de luta contra a violação de direitos humanos que se arrasta há séculos.
Como instituição, o estabelecimento do MPI atende a uma demanda dos 305 povos indígenas que representam quase 1,7 milhão de brasileiros, conforme dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por meio da inserção de lideranças indígenas em assentos de tomada de decisão, o governo assume a luta para manter diálogo e um canal de alinhamento com as bases e com as exigências de uma população alvo de exclusão, porém símbolo da resistência, que defende a sustentabilidade com respeito aos costumes e à diversidade que varre nosso país.
Apesar de recente, a atuação do MPI, em colaboração com Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Casa Civil, Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP), Ministério da Saúde (MS), Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e outras áreas do Poder Executivo, retirou o Brasil do estado de paralisação em que se encontrava na última década, no que tange a demarcação de Terras Indígenas (TI). Em menos de um ano e meio, dez territórios distribuídos pelo país foram devolvidos a quem tradicionalmente os ocupava, atendendo assim o anseio de mais de cinco mil indígenas de diferentes etnias e garantindo a perpetuação de saberes, línguas e a própria continuidade de modos de vida que enriquecem a nação.
A missão institucional do MPI é refundar a política indigenista a ponto de, gradativamente, ela ser substituída por uma política indígena: a elaboração, orientação, implementação e o monitoramento de qualquer política que reflita na existência indígena precisa da participação dos povos indígenas para ser bem-sucedida. Por isso, a nova política indigenista está focada no tripé proteção territorial, gestão de direitos sociais e gestão ambiental dos territórios, com o propósito claro de expressar as principais preocupações dessa população.
Conselho Nacional de Política Indigenista
Com essa visão, ao longo de 2023 e início de 2024, o MPI realizou oito consultas regionais pelo país por meio da “Caravana Participa, Parente!”, segundo uma divisão apontada pelos próprios indígenas, com o objetivo de eleger 90 representantes - titulares e suplentes - para reativar o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) neste ano.
Responsável por orientar e avaliar o governo na proposição de ações que afetam os povos indígenas, o Conselho é uma demanda antiga, que nasceu no Acampamento Terra Livre, ainda nos anos 2000, e só foi efetivado via decreto pela presidenta Dilma Rousseff, em 2015. Entretanto, o Impeachment no ano seguinte impediu que a iniciativa prosperasse. Em 2019, o último governo extinguiu o CNPI.
Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas
O Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (CG-PNGATI) também foi reinstalado via decreto, em 2023. Os primórdios da PNGATI começaram em 2008, como o estabelecimento de um novo diálogo entre o Estado, organizações indígenas e a sociedade civil. O CG-PNGATI proporcionou novas bases jurídicas e morais para o entendimento dos povos indígenas como elos diretamente conectados ao uso sustentável da biodiversidade nos biomas nacionais.
O Comitê funcionou de 2013 a 2016 e deu ignição à histórica articulação entre Ministério do Meio Ambiente, Funai, demais esferas do setor público e não governamental para dimensionar os principais desafios para a gestão ambiental conciliada com a territorial. O CG-PNGATI retornou oficialmente em 2024 e irá implementar 14 Planos de Gestão das Terras Indígenas (PGTAs), específicos para contextos e territórios indígenas, além de mais 13 Planos que serão feitos por Cooperações Técnicas Internacionais com o objetivo de analisar cada local selecionado e atender necessidades que se manifestam em condições particulares.
Atuação transversal
Esse processo de reconstrução que o país atravessa se tornou lema do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A agenda indígena caminha junto com pautas de outros ministérios. O MPI cultiva a transversalidade interministerial para ramificar suas ações e aplicá-las com maior eficiência diante de um esforço conjunto entre MMA e seus órgãos (Ibama e ICMBio); Ministério da Saúde, com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai); MJSP; Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome; Ministério das Mulheres; Casa Civil, entre outros.
Trata-se de uma estratégia de retomada. Retomar, segundo a própria ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, é recuperar algo que foi tomado sem autorização, como território, línguas, rituais, costumes, cultura, conhecimentos, sentimento de pertencimento e até mesmo a própria existência indígena. Isso justifica os 788 atendimentos de mediação e conciliação de conflitos, três desintrusões concluídas nas Terras Indígenas do Alto do Rio Guamá, Apyterewa, Trincheira Bacajá e duas desintrusões em andamento em Karipuna e Ituna-Itatá.
Mais investimentos
Os avanços de ordem estrutural se traduzem no aumento de recursos para escolas indígenas, com reajuste de 55% no valor da Bolsa Permanência para estudantes indígenas e investimento de mais de R$ 36 milhões para o abastecimento de água e saneamento básico em 1.270 unidades escolares. O mesmo padrão ocorre na saúde indígena, com elevação de 49% do orçamento de 2024 (R$ 2,6 bilhões) em relação ao ano de 2022, acréscimo de profissionais ao Programa Mais Médicos e capacitação de 2.550 agentes indígenas de saneamento.
Povos Yanomami
Todo o empenho do arranjo ministerial capitaneado pelo MPI em diversos setores que atingem os indígenas visa quebrar o padrão de negligência e permissividade que se acentuou nos últimos anos e permitiu que a crise humanitária vivida pelos Yanomami se agravasse. Os mais de 31 mil Yanomami que ocupam território na divisa com a Venezuela, entre os estados de Roraima e Amazonas, são vítimas da leniência da gestão passada com a presença do crime organizado na região e dos extrativistas ilegais que envenenam os rios e ameaçam a vida de povos isolados.
Entre 2023 e 2024, mais de R$ 2,3 bilhões foram disponibilizados para a fase inicial de um processo de longo prazo para garantir o fim das violações dos direitos dos Yanomami. Em conjunto com dezenas de ministérios, autarquias e órgãos, os polos bases de saúde regionais foram reabertos, com aumento do número de profissionais de 690, em 2022, para 1.256, em 2023. Neste ano de 2024, ainda foi criada a Casa de Governo em Roraima, para aprimorar a logística e agilizar os atendimentos, de forma que o Estado fique permanentemente presente no TI Yanomami.
Duas operações para entrega de cestas básicas e mantimentos foram desenvolvidas: Operação Ágata Fronteira Norte, realizada pelo Exército, que em 5,6 mil horas de voo entregou 460 toneladas de suprimentos a 236 comunidades no ano passado, e a Operação Catrimani que irá entregar 494 toneladas de suprimentos para as mesmas comunidades, em 2024. Esta segunda marca o início da operação civil de distribuição de alimentos, com mais de 36 aeronaves e 7 mil horas de voo contratadas.
Aldeamento das instituições
Sonia Guajajara, expoente da causa indígena e a primeira mulher indígena a ocupar um cargo de ministra na trajetória do país, defende que a única maneira de o Estado compreender a importância dos indígenas é realizar um processo de aldeamento das instituições, pulverizando-as com a ótica de quem chacoalha o maracá e entoa cantos sagrados em nome de uma permanência ancestral. A ministra traz o movimento indígena para dentro do Estado ao difundir o mantra: “Nunca mais um Brasil sem nós!”.
Um dos principais retratos dessa inserção indígena no aparelho estatal pode ser observado dentro da Funai, que pela primeira vez conta com uma representação feminina e indígena na presidência, Joenia Wapichana. Também foi criado um Grupo de Trabalho de Reestruturação do órgão vinculado ao MPI, para que ele de fato contenha o entendimento dos indígenas em suas execuções. Por isso, 30% das 502 vagas do concurso público para recompor a Fundação serão destinadas aos indígenas. Mais 30 vagas serão reservadas para o próprio MPI.
Desafios
Embora os significativos avanços sejam dignos de registro, o MPI tem plena consciência dos desafios que enfrentará pelos próximos anos. Diante de um Congresso Nacional composto por parlamentares majoritariamente pertencentes à bancada ruralista, a ministra Sonia luta pela expansão da bancada do Cocar com o objetivo de eliminar o marco temporal, que pretende manter a demarcação de Terras Indígenas idênticas aos patamares anteriores à promulgação da Constituição de 1988. A ministra lidera uma frente política para frear a grilagem, a extração ilegal de madeira, o crime organizado, o garimpo, a contaminação de solo indígena com mercúrio e o avanço da fronteira agrícola desmedida, empregando agrotóxicos que respingam em Terras Indígenas.
Agenda internacional
À procura de aumentar os aliados para a agenda socioambiental atrelada aos indígenas, Guajajara realizou duas missões diplomáticas internacionais em 2024. Essas missões no exterior incluíram um encontro com o Papa Francisco, no Vaticano, e participações em eventos com autoridades da Organização das Nações Unidas (ONU), União Europeia e de universidades prestigiadas, como Harvard e Oxford, bem como reuniões bilaterais com países simpáticos ao fim do desmatamento. O propósito é a promoção da política da energia renovável e da sustentabilidade perante a crise ambiental associada às mudanças climáticas.
Reparação histórica
Chegou o momento de os povos indígenas serem valorizados por sua fina sintonia com a natureza e pela ampla disputa que travam para serem reconhecidos como guardiões da floresta e do futuro da humanidade. Essa é a era em que os povos indígenas serão admirados para além da data comemorativa do dia 19 de abril. Contudo, eles só serão coroados pela contribuição que representam se, de fato, ocorrer reparação histórica no processo de Justiça Climática para mitigar os efeitos da crise ambiental. Uma reparação palpável, que faça jus às nossas raízes. Uma reparação sagrada, como a terra em que pisam.