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Encontro com Lideranças
MPI trabalha pela instalação da Comissão Nacional Indígena da Verdade
- Foto: André Corrêa
Na terça-feira (12/12), em Brasília, o Ministério dos Povos Indígenas finalizou a programação oficial do "Seminário Cultura e Justiça de Transição Indígena". A agenda reuniu lideranças, instituições e convidados de territórios brasileiros para fomentar o reconhecimento e o ensino de saberes e tradições. O evento serviu como um dos primeiros passos para discutir a instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, prevista para o ano de 2024.
De acordo com a secretária substituta de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas, Joziléia Kaingang, os dados do Censo de 2010, que atribuem ao Brasil cerca de 305 povos indígenas (1,7 milhão de pessoas), com 274 línguas, que ocupam 13% do território nacional, demonstram que há elementos e características suficientes para a valorização da cultura dos povos originários, uma vez que resistiram por séculos de colonização a ainda preservam seus costumes e raízes.
A secretária defendeu que parte da reparação histórica precisa ocorrer em patamar simbólico, ou seja, que a memória indígena seja inserida como parte da memória social brasileira por meio de trabalhos, estudos e pesquisas com o propósito de enraizá-la como parte da cultura nacional.
Justiça de Transição
No segundo dia de Seminário, focado na apresentação dos relatórios e na discussão sobre como concretizar a Justiça de Transição no país, a professora do Departamento de Estudos Latino-americanos (ELA) e coordenadora do Observatório de Direitos e Políticas Indigenistas (OBIND) da Universidade de Brasília (UnB), Elaine Moreira, citou a atuação do pesquisador Marcelo Zelic - falecido em maio de 2023 -, responsável por introduzir estudos de violência contra povos indígenas na Comissão Nacional da Verdade, oficialmente instalada em 2012, durante o governo Dilma (Lei 12.528/2011).
A professora endossou a instalação de uma Comissão temática indígena em virtude da capacidade que ela tem de convocar depoimentos de envolvidos e de exigir a revelação de documentos sigilosos. Elaine defendeu o uso da Comissão não só para analisar eventos do passado colonial do Brasil, mas de ações e negligências recentes da última gestão. "Vivemos, no último governo, ao longo de quatro anos, o assassinato de quase 800 indígenas. Houve a repetição de problemas da ditadura, como a Funai ser apropriada por militares, e agora temos a questão do Marco Temporal, que é a negação da memória, dos territórios e da verdade dos povos indígenas", elencou a docente.
Elaine situou a Comissão temática como uma maneira de compreender como violências do passado vão se reproduzindo com novas faces pelo Estado e pelo meio privado para seguir negando direitos e perpetuando violações. "Só com visibilidade é possível criar mecanismos que impeçam a repetição contínua de crimes e abusos. Zelic costumava dizer: 'Nunca mais um Brasil sem nós' exatamente para que os indígenas sejam incluídos na história nacional de modo realista e verdadeiro."
A doutora em História Social, Ana Zema, que atua no Centro Virtual Indígena Armazém Memória, que reúne mais de oito milhões de documentos para consulta pública, afirma que Marcelo Zelic deu início ao estudo das ações de reparação em 2016, quando poucas delas estavam em curso. A primeira foi em 1997 e envolveu indígenas Panarás, que ganharam na Justiça o direito de reaver o território com indenização de R$ 2 milhões.
"Atualmente há 12 ações no Judiciário brasileiro referentes à reparação por dano histórico. No entanto, não estão dentro da categoria reparação histórica, e sim como dano moral porque a categoria não existe no direito de responsabilidade civil. Isso, por sua vez dificulta o enfrentamento de crimes históricos estruturais e o processo de reparação, visto como algo impossível de ser feito de forma integral para os povos indígenas. Restituir vai além da compensação e indenização. A mudança precisa ser na mentalidade do sistema jurídico e político", analisou Ana Zema.
Relatórios
Um dos principais objetivos do Seminário foi realizar a entrega de dois relatórios sobre as ações de duas empresas em territórios indígenas durante o período da ditadura militar que ocorreu no Brasil.
De acordo com Gilberto Marques, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), ambos os documentos são resultado de uma investigação inicial conduzida por ex-sindicalistas da Volkswagen. A montadora cometeu violações contra trabalhadores durante a ditadura, quando empregados foram torturados dentro das fábricas da empresa e enviados a órgãos de repressão do estado.
Como parte do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) estipulado em ação judicial, a empresa pagou uma multa em que parte da verba foi usada para indenizar as vítimas e outra financiou estudos para analisar empresas que cometeram crimes contra a população durante a ditadura.
O primeiro deles, "Complexo Aracruz S.A. e a ditadura empresarial-militar", foi apresentado por Joana D'Arc Ferraz, professora no Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense, referente à Aracruz, a maior exportadora de celulose do país.
O empreendimento surgiu na ditadura porque o governo facilitou a instalação no Brasil, uma vez que países da Europa não queriam a degradação ambiental que a atividade gera em solo local através do plantio do eucalipto. Os sócios da empresa tinham relações com militares, ministros e governadores. Entre 1972 e 1978, a empresa adquiriu ilegalmente cerca de 200 mil hectares em território indígena Tupiniquim, inserido no Espírito Santo, e nele permanece até hoje, além de ter expandido a área de posse para 2 milhões de hectares.
Joana D'Arc relatou que o estudo identificou violações envolvendo indígenas e quilombolas em todo o estado do Espírito Santo e no sul da Bahia. Ela ainda destacou que as matrículas dos terrenos foram questionadas à época pela própria Funai, já que não havia cadeia dominial e diversos vícios de registro nos cartórios. O BNDES financiou a empresa ao hipotecar áreas compradas ilicitamente. Diante dos relatórios antropológicos que comprovaram que os Tupiniquim habitavam a região há séculos, a Funai alegou que o problema é que a etnia não registrou as próprias terras e ainda culpou os cartórios por terem feitos registros malfeitos para a empresa no município de Aracruz.
"As fábricas de celulose foram construídas na aldeia dos Macacos, em terreno sagrado. Há uma carta de Dom Pedro, de 1860, que descreve a região e a atribui aos Tupiniquim. Nossa pesquisa mostra os efeitos da Aracruz sobre os indígenas no decorrer dos anos: mutilação, envenenamento, dependência, segregação, perseguição, trabalho escravo e problemas neurológicos. Se o Marco Temporal for aprovado, a área que conquistaram com muito terror e luta vai retroceder", disse a pesquisadora.
O segundo relatório, "Equipe de Investigação sobre a Paranapanema S.A. Mineração, Indústria e Comércio: Relatório Final - Organização dos achados voltada a instruir processos de responsabilização", produzido pela Unifesp e pela UFPA, apresenta o rastro de violações deixado pela região amazônica ao trabalhar como empreiteira na construção da Transamazônica e na extração de minérios e ouro.
A empresa foi contratada para construir a estrada porque comprou terras griladas na região do povo Kagwahiva, no Alto do Rio Solimões. Ela também operava a extração de estanho para siderurgia. Assim sendo, passou a estrada por cima de aldeias, cemitérios e usou tratores para destruir de modo literal a cultura dos Kagwahiva e demais agrupamentos ramificados do povo originário.
"Era uma empresa que agia em conjunto com uma companhia formada por ex-militares, a Sacopã. Controlava garimpos de ouro, realizava trabalho escravo com indígenas e pressionava lideranças para assinarem contratos de exclusividade na extração de ouro em troca de promessas de delimitação de território. Ao construírem a BR 174, ligando Manaus a Boa Vista, retiraram mais de 526 mil hectares do povo Kinja, que já tinha território demarcado, mas foi diminuído a mando do então presidente Figueiredo. Em 1985, a Paranapanema chegou ao valor de mercado em U$ 595 milhões. Essa riqueza veio do sangue dos povos originários transformado em lucro."
Ministério Público do Trabalho
A subprocuradora-geral do Ministério Público do Trabalho, Sandra Lia Simón, que também coordena o Grupo de Trabalho (GT) de Justiça de Transição do órgão, afirmou que o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público de São Paulo (MPSP) se juntaram para investigar a denúncia feita pela associação de trabalhadores da Volkswagen que resultou no TAC.
"Vamos dar continuidade à execução do TAC. Instituímos o GT de Justiça de Transição para que possamos verificar mais de uma dezena de empresas identificadas nos relatórios dos pesquisadores. O relatório de Paranapanema servirá como experiência modelo de ação conjunta entre MPF e MPT para que as medidas sejam aplicadas as demais envolvidas em graves atrocidades contra povos originários."