Nota Técnica sobre o Projeto de Lei 2.903/2023
RESUMO
A presente nota técnica versa sobre o PL n.º 2.903/2023, proposta legislativa de caráter bicameral, que originalmente foi debatida, submetida a apreciação, votada e aprovada na Câmara dos Deputados e, atualmente, tramita no Senado Federal. O aludido projeto regulamenta o artigo 231 da Constituição Federal, para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas; e altera as leis: n.º 11.460, de 21 de março de 2007, n.º 4.132, de 10 de setembro de 1962 e n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973.
O escopo primordial deste projeto de lei, reside na busca pela disciplina e normatização do artigo 231 da Constituição Federal. Nesse passo, o resultado esperado seria um arcabouço jurídico que regulasse, de forma precisa e detalhada, aspectos cruciais relacionados ao reconhecimento, demarcação, utilização e administração das terras pertencentes aos povos indígenas; além de conferir clareza e segurança às diretrizes concernentes à proteção dos direitos territoriais, culturais e tradicionais dos povos indígenas, conciliando esses direitos com outros interesses sociais e estratégicos, notadamente por meio da gestão das áreas e da regulamentação de atividades desenvolvidas nas mesmas.
Contudo, é imperativo salientar que, na perscrutação desses objetivos, emergem inquietações e críticas sobre potenciais prejuízos à integridade dos povos indígenas, acentuando-se a importância de um escrutínio acurado das disposições do projeto para garantir a efetiva tutela dos direitos e prerrogativas desses povos no contexto jurídico e social.
De modo geral, a propositura finda por:
- alterar os parâmetros para demarcação das terras indígenas, criando normativas que não estão previstas na Constituição Federal;
- desferir para as terras indígenas o mesmo estatuto jurídico da propriedade privada, sem levar em conta a distinção entre posse civil e posse indígena, consolidada na Carta Magna da República Federativa do Brasil;
- restringir o direito ao usufruto exclusivo dos povos indígenas aos seus territórios, direito já consolidado pela Lei Maior da Nação;
- desobrigar o Estado Brasileiro de observar o direito dos povos indígenas a consulta livre, prévia e informada, como prenuncia a Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho-OIT, tratado internacional do qual o Brasil é signatário;
- flexibilizar a política de não contato, já estabelecida pelo Estado Brasileiro, em relação aos povos indígenas que vivem em isolamento voluntário;
- legitimar a prática de apropriação das terras indígenas, prevendo o pagamento de indenizações aos invasores, até mesmo em situações nas quais o usurpador não possua título de propriedade;
- estabelecer a possiblidade de retomada de terras indígenas pela União caso sobrevenha “alteração dos traços culturais da comunidade”, a revelar a clara intenção de promover ideário assimilacionista, já rechaçado pela Carta Magna;
- alterar o artigo 1° da Lei n.°11.460/2007, autorizando o cultivo de transgênicos em terras indígenas, o que poderá ocasionar a contaminação das espécies e sementes nativas, infringindo os usos, costumes e tradições dos povos indígenas;
ANÁLISE
O Projeto de Lei nº 2.903/2023, se apresenta de modo temerário aos direitos constitucionais dos povos indígenas inscritos na Constituição Federal de 1988, em especial, os direitos territoriais e, por extensão, o direito à vida indígena em seus termos. O Ministério dos Povos Indígenas- MPI, por meio da presente nota, evidencia alguns aspectos presentes na referida proposição normativa que atentam contra a vida e os territórios indígenas do Brasil.
De imediato, cabe afirmar que os povos indígenas contemporâneos se compreendem em continuidade histórica, cultural e cosmológica, anterior à sociedade não indígena brasileira, sobretudo no que diz respeito à ocupação territorial. Suas memórias e experiências coletivas remontam a um passado milenar, latente nas suas narrativas, nas línguas, nas artes, nos símbolos e sistemas culturais.
O PL 2.903/2023 impõe um conjunto de critérios que inviabilizam os processos demarcatórios das Terras Indígenas e, assim como o genocídio, que historicamente vem sendo praticado contra os povos, se apresenta como um dos principais passivos do violento processo colonial. Tal projeto reitera os preceitos levantados pela tese jurídica do Marco Temporal, atenta contra a autonomia dos povos indígenas, seus projetos societários, autodeterminação, usufruto exclusivo e o desenvolvimento sustentável em seus territórios.
Considerando que a Terra Indígena é a parcela territorial cuja materialização é expressão do reconhecimento do Estado Brasileiro ao direito originário dos povos às terras que tradicionalmente ocupam e, sendo essa sua faceta territorial, afigura-se como base material e simbólica que sustenta as alteridades indígenas, isto é, impedir sua demarcação fere princípios constitucionais inegociáveis. Submeter as parcelas territoriais já regularizadas e reconhecidas a projetos de desenvolvimento não leva em consideração a autodeterminação dos povos indígenas. De igual modo, forçar o contato com os povos indígenas que vivem em isolamento voluntário, bem como flexibilizar a legislação vigente para facilitar a implementação de práticas que ferem os usos, costumes e tradições dos povos indígenas são proposições anacrônicas do ponto de vista da política indigenista, da ética e da moral. Tal expediente normativo se anuncia de forma deplorável e se configura como uma atualização do genocídio e do esbulho dos territórios indígenas, marcas indeléveis da colonização.
O direito originário dos povos indígenas as suas terras, se baseia na perspectiva de que, para os povos indígenas, a terra(território) é condição primordial para sua sobrevivência, tanto física quanto cultural. Desse modo, o direito a terra é a base para os demais direitos. Tal direito, conforme nos preceitua o texto constitucional promulgado em 05 de outubro de 1988, é originário e antecede, inclusive, a própria Constituição da República Federativa do Brasil. Diante do exposto, percebe-se que esse projeto se converte num instrumento para fomentar a disputa pelas terras indígenas por parte daqueles que não possuem as cosmovisões dos povos indígenas, bem como, não acolhem os preceitos constitucionais no que tange aos seus direitos. Caso seja aprovado, o projeto culminará em ataques sistemáticos, simbólicos e materiais a história e a dignidade dos povos indígenas.
AUSÊNCIA DE CONSULTA LIVRE, PRÉVIA E INFORMADA NOS MOLDES DA CONVENÇÃO N. º 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO
De início, observando-se que o Projeto de Lei se encontra no Senado Federal, é cediço que os povos indígenas já sofreram a primeira violação, tendo em vista que houve afronta direta ao artigo n. º 6 da Convenção 169 da OIT- Organização Internacional do Trabalho, que atualmente está vigente no país por força do Decreto n. º 10.088, de 5 de novembro de 2019, uma vez que os povos interessados deveriam ser consultados cada vez que houvessem medidas legislativas ou administrativas suscetíveis a afetá-los diretamente.
A Convenção 169 da OIT determina aos governos dos Estados que tenham em seus territórios povos indígenas, que procedam a consulta sobre as medidas legislativas que possam afetá-los, para que estes tenham direito a dizer o que compreendem do Projeto de Lei e os pontos que, possivelmente, desrespeitam seus direitos constitucionais e, dessa forma, possam contribuir e influenciar no processo de tomada de decisão, ou seja, um instrumento para que, em tese, estes sejam escutados e tenham suas opiniões consideradas em decisões importantes para o país.
Trata-se então de uma asserção precedente da autodeterminação dos povos, princípio de direito internacional enraizado no artigo 4º, inciso III da Constituição Federal, devendo ser reconhecido aos povos indígenas, o devido respeito a sua soberania enquanto povos e nações.
Importa ressaltar que o processo de consulta deve se pautar pela boa-fé, de maneira que as informações prestadas pelo Estado devem ser verdadeiras, em linguagem de fácil acesso, de forma simplificada que cause clareza e não confunda em momento algum quem está sendo consultado e, principalmente, que estas informações não sejam distorcidas ou maquiadas, mostrando exatamente os possíveis impactos, maneiras de prevenção e mitigação encontradas, para que indígenas possam se manifestar de forma segura sobre o que irá lhes afetar.
Também é um processo que não se trata de um “check list” a ser cumprido, não se funda em uma mera formalidade ou etapa a ser ultrapassada, mas sim representa um instrumento de tomada de decisões importantes para as comunidades indígenas, de maneira que seja possibilitada a compreensão do impacto do Projeto de Lei, como é o caso em apreço.
A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no caso do Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Estado do Equador – Sentença de 27 de junho de 2012, dispõe sobre a Consulta Livre, Prévia e Informada:
“167. Posto que o Estado deve garantir esses direitos de consulta e participação em todas as fases de planejamento e desenvolvimento de um projeto que possa afetar o território sobre o qual se assenta uma comunidade indígena, ou tribal, ou outros direitos essenciais
para sua sobrevivência como povo, esses processos de diálogo e busca de acordos devem ser realizados desde as primeiras etapas da elaboração e planejamento da medida proposta, a fim de que os povos indígenas possam participar verdadeiramente e influir no processo de tomada de decisões, em conformidade com as normas internacionais pertinentes. Nesse sentido, o Estado deve assegurar que os direitos dos povos indígenas não sejam ignorados em qualquer outra atividade, ou acordos, que faça com terceiros particulares, ou no âmbito de decisões do poder público que afetariam seus direitos e interesses. Por esse motivo, caso seja cabível, compete também ao Estado realizar tarefas de fiscalização e de controle em sua aplicação e dispor, quando pertinente, formas de tutela efetiva desse direito, por intermédio dos órgãos judiciais respectivos."
Sobre a consulta prévia, preleciona a jurista Deborah Duprat, em seu artigo A Convenção 169 da OIT e o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada (Revista Culturas Jurídicas, Vol. 1, Núm. 1, 2014):
A consulta é prévia exatamente porque é de boa-fé e tendente a chegar a um acordo. Isso significa que, antes de iniciado o processo decisório, as partes se colocam em um diálogo que permita, por meio de revisão de suas posições iniciais, se chegar à melhor decisão. Desse modo, a consulta traz em si, ontologicamente, a possibilidade de revisão do projeto inicial ou mesmo de sua não realização. Aquilo que se apresenta como já decidido não enseja, logicamente, consulta, pela sua impossibilidade de gerar qualquer reflexo na decisão. A Resolução CONAMA nº 1, de 23 de janeiro de1986, que “dispõe sobre critérios básicos e diretrizes gerais para a avaliação de impacto ambiental”, diz, em seu art. 5º, I, que o estudo de impacto ambiental deve “contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização do projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto”. Esse é um norte bastante adequado também para a consulta, inclusive naqueles casos em que se exige prévia autorização do Congresso Nacional. A Convenção 169 não deixa dúvidas quanto a esse ponto: a consulta antecede quaisquer medidas administrativas e legislativas com potencialidade de afetar diretamente povos indígenas e tribais.
Também decorre da racionalidade do sistema que, nas medidas que se desdobram em vários atos, como ocorre, por exemplo, no procedimento de licenciamento ambiental, a consulta prévia seja renovada a cada geração de novas informações, especialmente aquelas relativas a impactos a serem suportados pelos grupos. O consentimento inicial para a obra se dá a partir dos poucos dados disponíveis. Uma vez realizado o estudo de impacto ambiental e adicionadas outras tantas informações, a consulta tem que ser renovada, e, mais uma vez, iniciado o processo dialógico tendente ao acordo.
Esse é um imperativo que decorre, primeiro, dos próprios vetores da consulta (especialmente, nesse ponto, o seu caráter de boa fé), e, segundo, da natureza do estudo de impacto ambiental. Esse estudo, nos termos do art. 6º da Resolução CONAMA 001/86, deve fazer (i) o diagnóstico da área de influência do projeto sob três perspectivas – meios físico, biótico e socioeconômico, e as interações entre eles; (ii) a análise dos impactos ambientais do projeto e suas alternativas; (iii) a definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos. É o conjunto dessas informações que habilitará os grupos impactados a decidirem pela realização ou não da obra, ou pela adoção de projeto alternativo. Não seria razoável conclusão no sentido de que aquela primeira adesão, feita com base em informações um tanto quanto precárias, pela ausência dos estudos cabíveis, esgotasse o processo de consulta da Convenção 169. Portanto, é imperativo considerar que a consulta é de natureza procedimental sempre que a medida projetada assim se apresentar, e se renova a cada fase do procedimento que agregar novas informações sobre impactos a serem suportados pelos grupos diretamente atingidos, bem como sobre as medidas tendentes a mitigá-los e compensá-los.
A consulta também pressupõe que nenhuma, absolutamente nenhuma, fase da obra se inicie antes que estejam disponíveis todos os dados técnicos acima referidos, que permitam aos grupos se posicionarem nesse processo dialógico. A despeito da obviedade da assertiva, o que se vem observando, no Brasil, é que muitas das informações que deveriam constar do diagnóstico só são produzidas mais tardiamente, como condicionantes das licenças de instalação e de operação. Assim a obra, no mais das vezes, chega à fase final sem que os grupos tenham acesso à principal informação que os capacitaria a uma decisão consequente: a avaliação dos impactos do empreendimento sobre eles próprios. É evidente a subversão do processo de consulta em seus três pilares: deixa de ser prévia, de boa fé e dialógica.
Dessa forma, verifica-se que, por se tratar de um Projeto de Lei que poderá afetar diversos povos indígenas, detentores de enorme pluralidade em suas linguagens, costumes, crenças e principalmente, considerando que cada um desses povos possui diferentes protocolos de consulta, ou estão se reunindo para construí-los, o PL já padece do vício de não convencionalidade em seu nascimento.
INCONSTITUCIONALIDADES
MARCO TEMPORAL PARA IDENTIFICAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS
Acerca do tema, o Projeto de Lei dispõe:
Seção II
Das Terras Tradicionalmente Ocupadas
Art. 4º São terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas brasileiros aquelas que, na data da promulgação da Constituição Federal, eram, simultaneamente:
I – habitadas por eles em caráter permanente;
II – utilizadas para suas atividades produtivas;
III – imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
IV – necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§1º A comprovação dos requisitos a que se refere o caput deste artigo será devidamente fundamentada e baseada em critérios objetivos.
§2º A ausência de comunidade indígena em 5 de outubro de 1988 na área pretendida descaracteriza o seu enquadramento no inciso I do caput deste artigo, salvo o caso de renitente esbulho devidamente comprovado.
§3º Para os fins desta Lei, considera-se renitente esbulho o efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data de promulgação da Constituição Federal, materializado por circunstâncias de fato ou por controvérsia possessória judicializada.
§4º A cessação da posse indígena ocorrida anteriormente a 5 de outubro de 1988, independentemente da causa, inviabiliza o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupada, salvo o disposto no §3º deste artigo.
A indecorosa tese do marco temporal, que é objeto principal do Projeto de Lei n. º 2903, de 2023, pretere o caráter originário dos direitos territoriais indígenas, reconhecido pela Constituição Federal de 1988, sendo certo que a história dos povos originários não deve estar afastada da análise sobre os seus direitos territoriais, uma vez que desde a chegada dos colonizadores, começou o final da história para muitos povos indígenas, dizimados por armas, escravidão, doenças que não existiam aqui, ou seja, o genocídio das comunidades indígenas acompanhou o nascimento da sociedade brasileira.
A Constituição Federal de 1988 reconheceu o Estado brasileiro como uma nação multicultural, formada a partir dos valores supremos de uma sociedade sem preconceitos, fraterna e pluralista, se tratando de um disparate a ideia de que o mesmo texto constitucional tenha estabelecido qualquer marco temporal para que as terras indígenas fossem reconhecidas.
Não que a vida dos povos indígenas tenha se tornado fácil a partir da promulgação da Carta Magna, uma vez que estes não deixaram de ser assassinados, de ter os seus territórios invadidos e o seu sossego para perpetuar seus modos de vida, costumes, crenças e tradições, muito pelo contrário, estes tem que lutar todos os dias para que seus direitos sejam minimamente reconhecidos, como por exemplo as “retomadas” dos territórios que foram invadidos no decorrer do processo de invasão e expulsão, são a materialização das tentativas de recuperar seus territórios, dos quais foram expulsos no passado.
Em seu artigo 231, a Carta Magna reafirma o caráter originário dos direitos territoriais, cujo o reconhecimento não depende exclusivamente da efetivação dos processos administrativos de demarcação, uma vez que aos povos indígena foi imposta relações de opressão, discriminação e marginalização, sendo justo que a Constituição reconheça a eles o direito as terras tradicionalmente ocupadas, se tratando, outrossim, de um direito fundamental dos povos indígenas, reconhecido desde a Constituição de 1934.
Além disso, a Constituição Federal reconhece os indígenas como parte indissociável da comunidade política brasileira, garantindo-lhes o direito à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários as terras que tradicionalmente ocupam, bem como em seu §1º define a ocupação tradicional a partir dos modos de ocupação e não pelo tempo de ocupação indígena em uma determinada área, ou seja, ocupação tradicional não se confunde com ocupação imemorial.
Outro ponto inviável seria estabelecer o “renitente esbulho” como exceção, obrigando os povos indígenas a comprovar sua resistência aos atos de violência aos quais foram submetidos no processo expropriação de seus territórios, sendo certo que, por vezes, resistir vai além do embate físico, dando-se na forma de reunir quem sobreviveu e procurar um local seguro para se reestruturar, com o peso e a dor no coração de ter perdido – naquele momento – parte de seu corpo-território, local onde os indígenas se conectam com sua ancestralidade, com suas crenças e reproduzem o seu modo de vida e cultura.
Não é razoável comparar a ocupação indígena, prevista na Constituição Federal, com a posse prevista no direito civil, principalmente no tocante a exigência de posse efetiva e ininterrupta, uma vez que de acordo com o Instituto do Indigenato[1], seus direitos territoriais precedem qualquer outro, se tratando de identidade étnica indígena.
Conforme se manifestou o Ministro Roberto Barroso no MS n. º 32.262 MC/DF, em 2013, os direitos e garantias individuais são cláusulas pétreas, como disposto no artigo 60, §4º, inciso IV, da CF/88: Como a cultura integra a personalidade humana e suas múltiplas manifestações compõe o patrimônio nacional dos brasileiros (arts. 215 e 216 da CF/88), parece plenamente justificada a inclusão do direito dos índios à terra entre os direitos fundamentais tutelados pelo art. 60, §4º, IV, da Constituição Federal.
Na mesma toada, o professor Daniel Sarmento[2] preceitua que a Constituição de 1988 tem um compromisso visceral com os direitos fundamentais como um todo, e não só com as liberdades individuais clássicas. Não se trata de uma Constituição liberal-burguesa, preocupada acima de tudo com a contenção do arbítrio estatal, mas sim de uma Lei Fundamental que toma como tarefa primordial promover a dignidade humana em todas as suas dimensões, inclusive das minorias vulneráveis, como os povos indígenas. Daí porque, também sob esta perspectiva as cláusulas pétreas devem se estender a outros direitos fundamentais, além dos individuais em sentido estrito, já que aqueles também compõem o núcleo de identidade da Constituição de 1988.
Corroborando com o artigo 60, §4º, inciso IV, da Constituição Federal, existe o artigo 231, estabelecendo os direitos e garantias dos povos indígenas, no que tange as suas terras, com as quais possuem relação muito mais profunda do que a mera propriedade, e desta forma, o direito à terra indígena e o respeito às suas culturas, crenças e tradições, usos e costumes, das suas línguas e a sua organização social, dá ao artigo 231 força de clausula pétrea, intangível até mesmo pelo Poder Constituinte Reformador.
Aliás, essa compreensão já há muito difundida e amplamente aceita, tanto pela academia quanto pela jurisprudência pátria, do artigo 231, da Constituição Federal de 1988, como cláusula pétrea, evidencia a inconstitucionalidade material do PL em questão, porquanto a matéria nele versada é de todo intangível, não podendo ser alterada nem mesmo por Emenda Constitucional. Neste diapasão, ainda que não se entenda como cláusula pétrea o conteúdo do art. 231, da CF/88, o que ora se admite apenas para fins argumentativos, é clarividente que o PL em questão, ao negar vigência e contrariar de forma frontal o expresso texto constitucional, não poderia sequer seguir tramitando, eis que para se mudar disposição da Constituição Federal é imprescindível o manejo de Emenda Constitucional.
Diga-se ainda, que, sobre o tema, a Carta Magna de 1988 promoveu aprimoramento dos direitos já existentes, pois rompeu com os ideários assimilacionistas até então vigentes, reconhecendo o direito à diferença dos indígenas e assegurando a preservação da língua, cultura, organização social e visão de mundo. Aliás, em nenhum momento a última Assembleia Constituinte exteriorizou algum marco temporal para o reconhecimento desses direitos originários e sequer estabeleceu dispositivo que possa induzir equivocadamente o intérprete a tal entendimento. O texto constitucional apenas reforçou o Instituto do Indigenato que, em sendo muito anterior à promulgação de 1988, não pode ser caracterizado como o marco definidor de direitos. Nesse sentido, relata a professora Manuela Carneiro da Cunha (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 283), antropóloga renomada que acompanhou de perto os debates da Assembleia Nacional Constituinte:
Os direitos sobre as terras indígenas foram declarados como sendo ‘originários’, um termo jurídico que implica precedência e que limita o papel do Estado a reconhecer esses direitos, mas não a outorgá-los. Essa formulação tem a virtude de ligar os direitos territoriais às suas raízes históricas (e não a um estágio cultural ou a uma situação de tutela) [...]
Em recente entrevista, a referida antropóloga foi ainda mais clara e contundente ao afastar qualquer intenção do legislador constituinte em fixar qualquer espécie de limitador temporal ao reconhecimento, pelo Estado Brasileiro, dos direitos territoriais indígenas (https://apublica.org/2023/06/nao-havia-discussao-sobre-marco-temporal-na-constituinte-diz-manuela-carneiro-da-cunha/).
Importa igualmente, mencionar que o acolhimento da tese do marco temporal poderá redundar em responsabilização internacional do Estado Brasileiro perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos que, em diversas oportunidades, já se manifestou sobre o tema. A título de exemplo, tem-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos – no caso Sawhoyamaxa vs. Paraguai – assentou que o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas não está submetido à condição temporal: “em claro confronto com a tese do marco temporal da ocupação, a Corte decidiu que a perda involuntária da posse e a consequente alienação da terra a terceiros de boa-fé não faz desaparecer o direito à terra ancestral.” No caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua, a Corte IDH afirmou a necessidade de um “mecanismo efetivo de delimitação, demarcação e titulação das propriedades das comunidades indígenas, em conformidade com seu direito consuetudinário, valores, usos e costumes”, rejeitando a visão assimilacionista das terras indígenas em favor da diversidade cultural. Ambas decisões podem ser acessadas em coletânea jurisprudencial disponível em: (http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/artigos/docs_artigos/jurisprudencia-corteinteramericana-direitos-dos-povos-indigenas.pdf).
Acerca do tema, também é imperioso destacar o princípio da vedação ao retrocesso, que conforme já relatado pelo Ministro Celso de Mello impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de se frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados (ARE-639337 – Relator(a): Min. Celso de Mello).
Desta forma, verifica-se a clara inconstitucionalidade do artigo 4º, seus incisos e parágrafos.
RETIRADA DA PROTEÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS ADQUIRIDAS POR MEIO DE COMPRA, VENDA E DOAÇÃO E A PREVISÃO DE INDENIZAÇÕES A NÃO INDÍGENAS, HOJE VEDADAS PELA CONSTITUIÇÃO DE FORMA EXPRESSA
Verifica-se o texto do Projeto de Lei:
Art. 9º Antes de concluído o procedimento demarcatório e de indenizadas as benfeitorias de boa-fé, nos termos do § 6º do art. 231 da Constituição Federal, não haverá qualquer limitação de uso e gozo aos não indígenas que exerçam posse sobre a área, garantida a sua permanência na área objeto de demarcação.
§ 1º Consideram-se de boa-fé as benfeitorias realizadas pelos ocupantes até que seja concluído o procedimento demarcatório.
§ 2º A indenização das benfeitorias deve ocorrer após a comprovação e a avaliação realizada em vistoria do órgão federal competente.
Art. 11. Verificada a existência de justo título de propriedade ou de posse em área considerada necessária à reprodução sociocultural da comunidade indígena, a desocupação da área será indenizável, em razão do erro do Estado, nos termos do §6º do art. 37 da Constituição Federal.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo às posses legítimas, cuja concessão pelo Estado possa ser documentalmente comprovada.
(...)
Art. 18. São consideradas áreas indígenas adquiridas as havidas pela comunidade indígena mediante qualquer forma de aquisição permitida pela legislação civil, tal como a compra e venda ou a doação.
§1º Aplica-se as áreas indígenas adquiridas o regime jurídico da propriedade privada.
Os artigos em questão destoam do que preceitua a Constituição Federal, dando-lhe uma nova interpretação restritiva dos direitos fundamentais formalmente reconhecido aos povos indígenas, bem como viola frontalmente o disposto no §6º do artigo 231 da Constituição Federal, o qual estabelece que não é devida qualquer indenização em virtude de atos ou negócios jurídicos praticados por terceiros envolvendo terras indígenas, com exceção das benfeitorias de boa-fé, uma vez que se tratam de atos nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas.
O art. 9º do PL em questão, de forma indisfarçada, altera para o término do procedimento de demarcação o marco da boa-fé hoje fixado na edição da Portaria declaratória e, a isso, esclarece que “não haverá qualquer limitação de uso e gozo aos não indígenas que exerçam posse sobre a área, sendo garantida a permanência na área objeto de demarcação”. Sabe-se o quão longo tem sido o périplo para se finalizar um processo demarcatório no Brasil, o que já ocasionou, inclusive, a condenação do país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2018, no Caso Povo Indígena Xucuru e seus membros x Brasil, cujo processo demorou mais de 30 (trinta) anos e, até hoje, ainda não foi concluído, posto que pendente a desintrusão completa do território. A redação atual do PL protege o invasor e o garante permanecer na área indígena sem ser turbado até o Estado conseguir finalizar o procedimento, a impedir, quase que indefinidamente, que os indígenas possam usufruir de suas terras. E o PL vai além: a leitura combinada deste artigo com o art. 11 permite se concluir que será possível, na prática, pagamento de indenização a terceiros não indígenas que sequer tenham título de propriedade, ainda que inválidos.
Não é à toa que a Carta Magna salvaguarda as benfeitorias erguidas por aqueles que, de boa-fé, estejam ocupando a terra indígena e, para tanto, tenham justo título e, de forma precisa, exclui dessa possibilidade de proteção àqueles possuidores de má-fé, definidos como os que, já sabendo se tratar de uma área indígena (Portaria declaratória publicada, ainda que o processo de formalização do território em nome dos indígenas ainda não tenha sido finalizado), nela adentram para grilar e usurpar o território originário. Ora, ao prever que o terceiro não poderá ser removido antes de concluído o processo, eliminando o marco atual da boa-fé, o PL cria privilégio inconstitucional ao terceiro invasor, esteja ele de boa-fé ou não, em atroz violação aos direitos dos povos indígenas sobre seu território que, relembre-se, não depende da formalização pelo Estado, não surge a partir de portaria declaratória ou homologatória, instrumentos que servem tão somente para reconhecer situação jurídica anterior, o direito dos povos indígenas é originário, precede qualquer lei ou norma constitucional. Neste cenário, a conclusão lograda não pode ser outra: PL fere de morte o art. 231, da CF/88.
Na mesma senda, pretende-se retirar a proteção das terras indígenas adquiridas por meio de compra e venda e doação, aplicando às terras indígenas que são adquiridas mediante algumas das formas previstas na legislação civil, o regime jurídico da propriedade privada, o que é inadequado no arcabouço protetivo dos direitos indígenas. Alerta importante é feito pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) no sentido de que poderá haver a utilização desta categoria de terra indígena como critério discriminatório ou limitador, para a não implementação de políticas públicas, por exemplo
VEDAÇÃO A AMPLIAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS JÁ DEMARCADAS
Verifica-se o texto do Projeto de Lei:
Art. 13. É vedada a ampliação de terras indígenas já demarcadas.
O artigo acima referido desconsidera qualquer hipótese de erro por negligência e imperícia que culminariam em vícios nos processos de demarcação anteriores a 1988, bem como o esbulho violento que os povos indígenas possam ter sofrido na terra que deixou de ser considerada à época da demarcação. Também deixa de levar em consideração as diretrizes constitucionais técnicas para a efetiva demarcação, o que viola o direito fundamental do indígena à terra. Se tratando assim de mais uma forma de atribuir um marco temporal a demarcação, diminuindo o reconhecido do Estado brasileiro sobre os direitos dos povos indígenas sob a terra.
EXPROPRIAÇÃO DE TERRA INDÍGENA POR ALTERAÇÃO DOS TRAÇOS CULTURAIS>
Verifica-se o texto do Projeto de Lei:
Art. 16. São áreas indígenas reservadas as destinadas pela União à posse e à ocupação por comunidades indígenas, de forma a garantir sua subsistência digna e à preservação de sua cultura.
§1º As áreas indígenas reservadas poderão ser formadas por:
I – terras devolutas da União discriminadas para essa finalidade;
II – áreas públicas pertencentes à União;
III – áreas particulares desapropriadas por interesse social.
§2º As reservas, os parques e as colônias agrícolas indígenas constituídos nos termos da Lei n. º 6.001, de 19 de dezembro de 1973, serão considerados áreas indígenas reservadas nos moldes desta Lei.
§3º As áreas indígenas reservadas são de propriedade da União e a sua gestão fica a cargo da comunidade indígena, sob a supervisão da Funai.
§4º Caso, em razão da alteração dos traços culturais da comunidade indígena ou de outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo, seja verificado que a área indígena reservada não é essencial para o cumprimento da finalidade mencionada no caput deste artigo, poderá a União:
I – retomá-la, dando-lhe nova destinação de interesse público ou social;
II – destiná-la ao Programa Nacional de Reforma Agrária, atribuindo-se os lotes preferencialmente a indígenas que tenham aptidão agrícola e assim o desejarem.
Tal dispositivo prevê que as terras indígenas sejam tomadas pelo Estado quando este considerar a suposta “perda de traços culturais”, medida que além de inconstitucional, desrespeita os parágrafos §2º e 5º do artigo 231 da CF, e não considera as mudanças culturais inerentes de toda sociedade humana, ainda mais quando existe o contato intercultural da forma como ocorre. Na mesma senda, também não respeita o artigo 1º, parágrafo 2º, da Convenção n. º 169 da Organização Internacional do Trabalho, que resguarda o direito aos povos indígenas de se auto identificarem.
A Constituição é clara quando atribui aos povos indígenas o usufruto exclusivo de suas terras, sendo esses direitos inegociáveis e imprescritíveis, sendo absolutamente inconstitucional o critério de alteração dos traços culturais da comunidade, uma vez que busca não só deixar de reconhecer a diversidade de povos existentes no Brasil, como busca outra forma de supressão de direitos indígenas através de um mecanismo jurídico que apague a história e a cultura destes.
O artigo em comento do PL, incorrendo em inconstitucionalidade cintilante, reaviva o odioso ideário assimilacionista, apregoando que a “integração” dos indígenas à “sociedade nacional” resultaria na perda de seus direitos territoriais, à extinção do regime jurídico próprio às áreas indígenas e atrela a isso a “perda de traços culturais da comunidade indígena” a nada), bem como agride o princípio da dignidade da pessoa humana, também sediado na CF/88, pois inauguraria prerrogativa ao Estado de definir quem é ou não indígena a partir de critérios subjetivos, tais quais “traços culturais da comunidade indígena ou outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”. Já o §4, do mesmo artigo, traz como consequência desta tal “perda de traços culturas” a possibilidade de expulsão dos indígenas da área para destinação do território para reforma agrária, por exemplo, sendo esta, pois, mais uma inconstitucionalidade patente do PL, face ao teor do §4º, da CF/88.
USUFRUTO LIMITADO DO TERRITÓRIO INDÍGENA E PERMISSÃO DE NEGOCIAÇÃO
Verifica-se o texto do Projeto de Lei:
Art. 20. O usufruto dos indígenas não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional.
Parágrafo único. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente.
Art. 21. Fica assegurada a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal em área indígena, no âmbito de suas atribuições, independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente.
Art. 22. Ao poder público é permitida a instalação em terras indígenas de equipamentos, de redes de comunicação, de estradas e de vias de transportes, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação.
(...)
Art. 26. É facultado o exercício de atividades econômicas em terras indígenas, desde que pela própria comunidade indígena, admitida a cooperação e a contratação de terceiros não indígenas.
A Constituição Federal assegura, em seu artigo 231, §º2º que as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e das lagoas existentes, estabelecendo também em seu §3º que o aproveitamento dos recursos hidráulicos, incluído os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivadas com autorização do Congresso Nacional, bem como após ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
É de bom alvitre ressaltar que a Constituição é clara, coesa e sucinta quanto as consequências de tal conduta, pois em seu §6º preleciona que são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere o artigo, bem como a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nela existentes, ressalvando relevante interesse público da União, devendo ser disposto em lei complementar, não gerando assim a nulidade e a extinção, direito a indenização ou ações contra a União, salvo as benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé, nos termos da lei.
Do mesmo modo, a expansão de malhas viárias, explorações alternativas energéticas de cunho estratégico e resguardo das riquezas de cunho estratégico são atividades potencialmente danosas que demandam o mais rigoroso procedimento para a sua devida autorização, uma vez que além de todo o procedimento de licenciamento ambiental e demais particularidades, no caso das atividades que se deseje realizar em terras indígenas ou até mesmo no seu entorno, é imperioso a realização de oitiva prévia das comunidades indígenas passíveis de afetação, bem como prévia autorização do Congresso Nacional.
Aprovar o artigo 20, 21 e 22 é dar o aval para que qualquer governo, seja ele a favor ou contra os povos indígenas, entre em seus territórios sem a sua devida autorização, ou sequer um aviso, efetue mudanças bruscas em seu modo de vida e costumes, e sequer lhes perguntem o que pensam a respeito, o que inevitavelmente acarretaria impactos socioambientais desastrosos.
Sublinhe-se também que o parágrafo único, do art. 20, de forma escancarada, agride a CF/88 e a Convenção nº 169/OIT, pois afasta expressamente o direito à Consulta livre, prévia e informada, sendo, pois, dispositivo inconstitucional e inconvencional, sobretudo porque a exceção por ele trazida à prerrogativa da Consulta não consta no texto da Convenção Internacional em questão, a qual o Brasil aderiu sem reservas.
Doutro norte, acerca da liberação das negociações, também se verifica a violação frontal ao §2º do artigo 231 da CF, pois se trata de uma forma de flexibilizar o usufruto exclusivo dos povos indígenas, através de conceitos vagos e genéricos, que não possuem fundamentos razoáveis e viabilizam atividades incompatíveis com a posse permanente dos povos indígenas.
DESRESPEITO AOS POVOS INDÍGENAS ISOLADOS
Verifica-se o texto do projeto de Lei:
Art. 28. No caso de indígenas isolados, cabe ao Estado e à sociedade civil o absoluto respeito às suas liberdades e aos seus meios tradicionais de vida, e deve ser evitado, ao máximo, o contato com eles, salvo para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública.
§1º Todo e qualquer contato com indígenas isolados deve ser realizado por agentes estatais e intermediado pela Funai.
§2º São vedados o contato e a atuação com comunidades indígenas isoladas de entidades particulares, nacionais ou internacionais, salvo se contratadas pelo Estado para os fins do caput deste artigo, e, em todo caso, é obrigatória a intermediação do contato pela Funai.
Os povos indígenas isolados vivem em isolamento voluntário. Com base nessa premissa, observa-se que este artigo e seus parágrafos violam o caput do artigo 231 da Constituição Federal ao respeito à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas.
Em Nota Técnica, o Observatório dos Povos Indígenas Isolados[3] apontou risco de genocídio diante da propositura do referido dispositivo, uma vez que flexibiliza a política de não contato, que prevê o respeito à recusa dos grupos isolados em fazer contato com a sociedade nacional, abrindo brechas para a volta dos contatos forçados com os povos em isolamento e que isso representa risco concreto de genocídio, de acordo com a Convenção Internacional para Prevenção e Repressão ao Genocídio, que vige no Brasil através da Lei n. º 2.889/1956.
O Observatório ressalta que a previsão de intermediar ação estatal de utilidade pública é um retorno das políticas que eram vigentes na época da ditadura militar, que provocaram a morte de milhares de indígenas e até o desaparecimento de grupos inteiros, uma vez que “utilidade pública” pode ser compreendida como qualquer atividade que seja supostamente de interesse público, até mesmo rodovias, hidrelétricas, mineração, projetos de colonização, agropecuária e demais atividades desenvolvimentistas.
Diante das consequências historicamente genocidas do contato forçado, o Brasil abandonou essa prática em 1987, em uma mudança que foi internacionalmente pioneira, e desde o estabelecimento desta nova política, é proibida toda e qualquer ação ou projeto desenvolvimentista em território de indígenas em isolamento, portanto, tal proposta é inviável e extremamente perigosa.
ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELO PL NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO: INSEGURANÇA JURÍDICA E MOROSIDADE
Dentre a miríade de inconstitucionalidades, inconvencionalidades e ilegalidades até então já apontadas, urge ainda enfocar as modificações que o PL pretende empreender no processo administrativo de demarcação, regulado hoje no Decreto nº 1.775/1996, cuja constitucionalidade já foi expressamente pronunciada e reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal em inúmeros julgados (RMS 24.045, Min. Rel. Joaquim Barbosa, DJ 05/8/2005).
Veja-se os seguintes dispositivos:
Art. 5º A demarcação contará obrigatoriamente com a participação dos Estados e dos Municípios em que se localize a área pretendida, bem como de todas as comunidades diretamente interessadas, franqueada a manifestação de interessados e de entidades da sociedade civil desde o início do processo administrativo demarcatório, a partir da reivindicação das comunidades indígenas.
Parágrafo único. É assegurado aos entes federativos o direito de participação efetiva no processo administrativo de demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas.
Art. 6º Aos interessados na demarcação serão assegurados, em todas as suas fases, inclusive nos estudos preliminares, o contraditório e a ampla defesa, e será obrigatória a sua intimação desde o início do procedimento,bem como permitida a indicação de peritos auxiliares.
Vê-se que aqui se promove modificações profundas e desnecessárias na sistemática procedimental prevista no Decreto nº 1775/1996 e ao serem aprovadas estas alterações, o resultado será, inevitavelmente, um maior retardo na conclusão dos processos, o que, salvo melhor juízo, parece ser a intenção do legislador nestes pontos.
Na sistemática hoje vigente e estabelecida pelo Decreto nº 1.775/1996, repise-se, reconhecidamente constitucional, há amplo espaço para contraditório por todos os entes eventualmente interessados, bem como particulares e a sociedade civil, só que o Decreto prevê prazos para manifestação e momentos específicos para intervenções, o que é normal e necessário num procedimento administrativo, sob pena de eternizar o processo.
Destarte, a se permitir intervenções múltiplas, em qualquer fase do feito, sem prazos, regras e, literalmente, procedimentos mínimos a garantirem a fluidez do processo administrativo, o art. 231, da CF/88 quedará mais uma vez violado, posto que o dever da União de demarcar e proteger os territórios indígenas quedará ainda mais difícil de ser concretizado, em ofensa, também, ao Art. 37, da CF/88, que fixam os princípios de atuação da administração pública, dentre os quais se destacam a eficiência e a celeridade.
Por derradeiro, cumpre assinalar a atroz insegurança jurídica que será trazida ao processo demarcatório caso aprovado o Art. 14, do PL, in verbis: “Os processos administrativos de demarcação de terras indígenas ainda não concluídos serão adequados ao disposto nesta Lei”.
A segurança jurídica é princípio, valor e norma essencial ao Estado democrático de direito, posto que destinada a preservar direitos fundamentais dos cidadãos, dentre os quais a estabilidade das relações e a previsibilidade, características sem as quais não se lograria a pacificação social.
De sua vez, a CF/88, no seu Art. 5º, Inciso XXXVI, traz as bases da segurança das relações jurídicas, ao apregoar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
Especificamente quanto ao ato jurídico perfeito, este pode ser conceituado, em termos simples e diretos, como o ato já consumado, celebrado e concluído em consonância com a regra jurídica da época, ou seja, encontra-se protegido contra alteração futura na legislação, justamente em razão da necessidade de se estabilizar as relações e garantir segurança aos atores envolvidos.
No tocante ao procedimento demarcatório, este é sabidamente composto por diversas etapas que, em apertada síntese, constituem atos jurídicos perfeitos, logo, imutáveis por legislação alteradora superveniente. Especificamente em relação ao tema em questão, permitir a retroação dos procedimentos demarcatórios em curso para “ajustes” a esta nova sistemática sendo prevista, significa, na prática, perpetuar eternamente os procedimentos em curso, violando não só o cânone constitucional da segurança jurídica, mas também o art. 213, da CF/88 e os princípios da administração pública.
IMINENTE IMPACTO NAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS E POSSIBILIDADE DE PLANTIO DE TRANSGÊNICOS EM TERRAS INDÍGENAS
O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) publicou uma matéria[4] em junho deste ano, alertando que a combinação nefasta do Projeto de Lei – à época – PL 490 e Marco Temporal ameaçam os direitos territoriais indígenas e colocam em risco a segurança climática da Amazônia e do país.
A dinâmica se dá pela seguinte forma: se o Projeto de Lei for aprovado, poderá interromper o processo de reconhecimento e demarcação de terras indígenas e resultar em impactos adicionais para a proteção destas terras e da vegetação nativa do país inteiro, em especial na Amazônia Legal, ressaltando o papel dos povos originários na proteção da maior floresta tropical do planeta, uma vez que suas terras cobrem 23% da região e abrigam uma imensa diversidade sociocultural e ecossistêmica, e sem essa proteção exercida pelos povos indígenas, o risco de desmatamento e de desequilíbrio climático na Amazônia e no país, aumentará de maneira significativa.
Isso porque, segundo o resultado de estudos que vem sendo desenvolvido pelo IPAM, foi estimado que os efeitos do referido Projeto de Lei sobre todas as terras indígenas da Amazônia Legal cujo decreto de homologação foi assinado após 1988, farão com que as referidas terras caiam em um limbo que resultará em aumento da pressão por invasão ilegal de grileiros, o que já está em curso, bem como em uma avalanche de desmatamento.
Dentre os cenários de desmatamento, existe ‘o cenário grave’, onde 20% das terras indígenas do bioma Amazônia e 50% no Cerrado e Pantanal estariam desmatados, ocasião em que assumiram como referência os percentuais de desmatamento máximo indicado pelo Código Florestal Brasileiro para estes biomas sob um prisma conservador. O outro cenário é ‘o muito grave’, sob o qual o desmatamento atingiria 50% nas terras indígenas da Amazônia e 70% do Cerrado e Pantanal, sendo que neste cenário mais grave, parte da premissa que um avanço ainda maior da grilagem e do desmatamento ilegal em terra pública, em especial nas terras indígenas, ressaltando que, atualmente, cerca de 50% do desmatamento na região acontece em terras públicas, e para a construção destes cenários, tais percentuais de desmatamento foram aplicados às coberturas de vegetação nativa existentes em 2021, segundo o Map Biomas 2023.
Seguindo, a partir dos cenários apresentados, estimou-se o valor médio de carbono acima do solo estocado na vegetação nativa em cada área desmatada, dentro das terras indígenas, com base nos dados da Quarta Comunicação Nacional, e em seguida multiplicou-se o estoque médio de carbono pela área total desmatada prevista em cada cenário, obtendo a emissão de CO2 decorrente do desmatamento de cada terra indígena.
O estudo relata que trinta e cinco anos após a promulgação da Constituição Federal, com seu artigo 231, atinente aos direitos dos povos originários, 385 territórios foram homologados na Amazônia Legal, formando um manto verde que exerce papel fundamental na proteção da vegetação nativa, o qual é o principal responsável para o regime de chuvas do país e o clima do planeta.
Diante da proteção exercida pelos povos indígenas, suas terras representam as menores taxas (<2%) de desmatamento da região se comparado à paisagem ao redor (>30%), esta proteção, contudo, é ameaçada pela ação de grileiros e do garimpo ilegal do ouro, e para se ter uma ideia, as terras indígenas pertencentes a Amazônia Legal tiveram o maior aumento (153%) de desmatamento entre os anos de 2019 e 2021 em comparação com o triênio anterior entre todas as categorias fundiárias da região.
Observando o cenário que se apresenta e o cenário que pode se descortinar com a aprovação do Projeto de Lei, a estimativa é que entre 23 milhões de hectares (cenário grave) e 55 milhões de hectares (cenário muito grave) de vegetação nativa dos territórios indígenas poderão desaparecer, uma vez que com a segurança jurídica do território fragilizada e sem o manejo indígena, a pressão nesses territórios poderia levar à emissão de 7,6 a 18,7 bilhões de dióxido de carbono, sendo este volume de emissão equivalente a um período entre 5 e 14 anos de emissões do Brasil e cerca de 90 a 200 anos de emissões dos processos industriais.
Desta forma, o desmatamento progressivo e sem controle nestes territórios pode provocar um desequilíbrio no clima, aproximando a região do “ponto de não retorno”, o que geraria a escassez de água, ameaçando a produtividade da agropecuária e a geração de energia.
Importa ainda mencionar a inconstitucionalidade contida no art. 30, do PL que, ao alterar o art. 1º, da Lei 11.460/2007 e, assim, permitir o cultivo de organismos geneticamente modificados em terras indígenas, malfere o modo de vida indígena, sua relação com a natureza, desrespeita seus usos, costumes e tradições, implica em risco à segurança alimentar. É de se notar ainda que essa previsão autoriza interferência direta na biodiversidade e no patrimônio genético dos povos indígenas, afrontando o art. 231, da CF/88, bem como o art. 225, também da CF/88, que tutela o meio ambiente, garantido a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
CONCLUSÃO
Os direitos originários dos povos indígenas não devem ser vistos como um obstáculo ao desenvolvimento do país, muito pelo contrário, defendê-los é condição para a preservação da vida no planeta na forma em que conhecemos. Os interesses da sociedade brasileira precisam andar lado a lado com os direitos indígenas e devem ser protegidos diante da ideia obscena que está enraizada em alguns grupos sociais que buscam o lucro a todo custo. A aprovação do Projeto de Lei 2903/2023 representa um retrocesso histórico, diante das inúmeras violações de direitos, em âmbito nacional e internacional que o projeto congrega.
Diante do exposto, o Ministério dos Povos Indígenas, considera o Projeto de Lei n. º 2903 de 2023 um enorme retrocesso no que tange aos direitos constitucionais dos povos indígenas, uma vez que atende, unicamente, aos interesses de uma pequena parcela da população que visa o lucro acima de qualquer outra coisa. O PL 2903/2023, visa transformar as terras indígenas em objetos de mercantilização, afeta a organização social dos povos indígenas e suas relações sagradas com o território, compromete a vida de todos nós diante da tragédia climática anunciada que anda de mãos dadas com o referido projeto, bem como contraria os compromissos assumidos pelo Brasil com o Acordo de Paris e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o que poderá acarretar, inclusive, na perda de investimentos internacionais.
RECOMENDAÇÃO
Desta feita, por todo o exposto, além dos motivos considerados acima, que não esgota a análise do Ministério dos Povos Indígenas acerca do tema, bem como o vício formal que se dá pelo desrespeito ao direito à Consulta Livre, Prévia e Informada, bem como os vícios de constitucionalidade, ilegalidade e inconvencionalidade elencados acima, da grave violação aos direitos humanos, recomenda-se: a) a rejeição integral do Projeto de Lei n. º 2903, de 2023; ou b) se reconhecida a nulidade pelo vício formal, se proceda a realização de Consulta Livre, Prévia e Informada a todos os povos indígenas do Brasil, em articulação com suas instituições representativas, criando meios para que possam participar livremente, ter o seu pleito escutado, recebido e ao final, obter o consentimento para prosseguir com a legislação, ou de fato, encerrar sua tramitação, diante da impossibilidade deste coexistir com as normais legais já estabelecidas pelo ordenamento jurídico pátrio.
[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37ª ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional nº 76, de 28.11.2013. São Paulo: Malheiros, 2014.
[2] Nota Técnica: A PEC 215/00 e as Cláusulas Pétreas", disponível em https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/publicacoes/nota-tecnica/2013/nota-tecnica-mpf-pec-215.pdf
[3] https://povosisolados.org/nota-tecnica-do-opi-aponta-risco-de-genocidio-em-artigo-28-do-pl-2903-que-tramita-no-senado/
[4] https://ipam.org.br/bibliotecas/uma-combinacao-nefasta-pl-490-e-marco-temporal-ameacam-os-direitos-territoriais-indigenas-e-colocam-em-risco-a-seguranca-climatica-da-amazonia-e-do-pais/