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Discurso da ministra Sonia Guajajara no Vaticano, durante Seminário sobre conhecimento dos Povos Indígenas e as Ciências - 14/03/2024
Sua Santidade Papa Francisco,
Muito obrigado pelo convite para estar aqui e pelas palavras em sua audiência.
Prezados parentes indígenas, demais colegas e autoridades neste Seminário, bom dia.
Lembro-me da última vez em que estivemos em Roma, ainda como representantes do movimento indígena. Viemos assistir à missa. Foi emocionante, assim como é grande a emoção de poder estar nesta academia pela primeira vez, podendo participar e dialogar diretamente com Sua Santidade e com tantas lideranças.
O tema deste Seminário é importante. Falar do conhecimento tradicional dos povos indígenas como parceiros e aliados da ciência para o enfrentamento das mudanças climáticas. Com este Seminário, o Vaticano também nos traz pra sentar à frente, no mesmo espaço de tantos cientistas e autoridades do mundo.
E assim queremos seguir, Papa Francisco. Quando tomei posse como primeira Ministra dos Povos Indígenas do Brasil, o lema do meu discurso foi: Nunca Mais um Brasil sem nós. Estamos aqui, com o apoio do Vaticano, para reforçar que o mundo precisa dos conhecimentos tradicionais indígenas. O mundo preciso do modo de vida indígena, de sua espiritualidade e de sua relação com a natureza, como condição necessária para a proteção da Biodiversidade.
Antes de dar sequência sobre estes temas e as centralidades dos conhecimentos e do modo de vida indígena, gostaria de me antecipar, como uma das primeiras oradoras, e propor alguns encaminhamentos. Lembro que este tema está sendo discutido em outros dois fóruns globais que devem aprovar resoluções neste ano: a Organização Mundial de Propriedade Intelectual e a Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica.
As contribuições sistematizadas e apoiadas pelo Vaticano e pelos povos indígenas podem ter um peso relevante nestes espaços. Terão ainda mais se houver presença efetiva dos povos e de suas organizações. Vale também disseminar as contribuições em outros espaços de organização indígena, como o Fórum Permanente das Nações Unidas e a Plataforma dos Povos Indígenas e Comunidades Locais da COP do Clima.
Falando em COP do Clima, me comprometo a dar seguimento a estes debates por lá, na COP que sediaremos em 2025. Para isto, vamos criar uma comissão internacional para preparar a participação qualitativa e quantitativa dos povos indígenas na COP 30.
Os conhecimentos e os modos de vida indígena são centrais para a solução de problemas que afetam o Planeta. Não é por coincidência que 80% da Biodiversidade protegida no mundo está em territórios indígenas. É porque sabemos como fazer esta proteção. Estou certa que várias falas que virão depois de mim vão apontar neste sentido.
Mas este debate também é central porque estamos entre os mais atingidos pelas mudanças climáticas. E somos atingidos de diversas formas. Algumas mais violentas e abruptas, forçando inclusive povos a terem que se deslocar de seus territórios tradicionais. Também somos impactados por ações de mitigação e de transição que não levam em conta aspectos centrais das comunidades. E somos impactados ao longo do tempo, à medida que as mudanças climáticas afetam os biomas, alteram o ciclo das chuvas, a fertilidade do solo, a presença de espécies de animais e plantas, afetam o nosso meio de vida e, por fim, a própria capacidade dos povos indígenas de reagir. Afinal, nossos conhecimentos milenares vêm deste conhecimento profundo e da relação espiritual com a natureza, com cada bioma. A cada mudança no Bioma, é como se fosse uma doença que se alastrasse também por nossos corpos e por nossas comunidades. Inclusive, as mulheres indígenas no Brasil costumam se referir não a corpos, mas a corpos- territórios, porque nossos corpos são parte dos Biomas onde vivemos.
A cura para esta doença que se alastra sobre nossos corpos-territórios e que perpassa todo o Planeta é bastante complexa. Ela envolve, ao fim e ao cabo, uma mudança radical nos modos de vida de toda a sociedade. Mais uma vez, os povos indígenas podem e devem ser também exemplos. Enquanto esta reflexão mais geral dos modos de vida não ocorre, precisamos estar atentos e tentar alterar outras situações.
A primeira delas é a nossa mensagem de sempre, mas que precisa ser dita porque muitos a querem evitar, como observamos no Brasil, onde sofremos bastante nos últimos anos. Não é possível avançar em direitos indígenas, em proteção da biodiversidade e na valorização dos conhecimentos tradicionais, sem entender que precisamos avançar no reconhecimento de nossos territórios tradicionais.
A posse plena dos territórios tradicionais para os povos indígenas assume formas jurídicas distintas em cada país. Mas, sem avançar neste processo de regularização, fica mais difícil avançar com mais políticas públicas e, mais importante, fica mais difícil para as comunidades, há séculos ameaçadas, conseguirem manter suas tradições, sua relação com a natureza e seus conhecimentos tradicionais.
A luta contra as mudanças climáticas exige o aumento do reconhecimento formal e do direito à posse plena dos territórios pelos povos indígenas e comunidades locais.
Nesta mesma linha, precisamos enfrentar os desafios que existem mesmo naqueles territórios que já avançaram no seu reconhecimento jurídico. A mineração e seu escoamento privado é uma ferida aberta há séculos em nossos continentes. O uso de minérios estratégicos precisa ser encarado como um desafio social. Não podemos permitir a mineração e o garimpo em territórios indígenas pois, como tem mostrado a situação dos povos Yanomami, Munduruku, Kaiapós, dentre outros no Brasil, esta atitude é destruidora da natureza, da nossa saúde, de direitos. É destruidora da vida.
Outro desafio, agora mais moderno, é também regulamentar os mercados de crédito de carbono. Não é possível permitir que os territórios indígenas passem a ser controlados por acordos mediados por terceiros, que buscaram recursos junto a empresas e governos poluidores.
Vejam que isto é diferente do financiamento direto, que parte de organismos internacionais e fundos climáticos, que dialogam a partir de metas globais de proteção da biodiversidade e que também são de interesse das próprias comunidades. Este tipo de financiamento é necessário e precisa ser mais estimulado. Já a lógica do crédito de carbono precisa, no mínimo, de regulamentação, para evitar que contratos abusivos acabem com a relação da proteção da biodiversidade via conhecimentos tradicionais e meios de vida.
Todas estas situações que citei levam a que muitas comunidades indígenas ainda no mundo sofram com consequência drásticas: a expulsão de seus territórios, violências, suicídios, a dificuldade de acesso a políticas públicas e a fome. Aqueles povos que possuem conhecimentos milenares, formas de preservação da natureza e produção dos seus próprios alimentos, estão sendo expulsos e passando fome. Isto é inaceitável. Por isto, anunciamos hoje, neste evento, a adesão do Brasil à Coalizão dos Sistemas Alimentares Indígenas da FAO.
O Governo brasileiro lançou uma nova cesta básica que valoriza os sistemas alimentares locais e afasta os alimentos processados. Também lidera, no âmbito do G20, a Coalizão Global contra a Fome e a Pobreza. Entendemos que esta Coalizão precisa se conectar e ajudar no financiamento dos sistemas alimentares indígenas e no apoio à sua produção. Muitas vezes, naquelas comunidades mais atacadas e violentadas, a melhor saída para manter vivos os conhecimentos tradicionais, é garantir alimentação e apoio à produção, conforme estes conhecimentos.
Tudo isto aponta para outros dois debates que precisam estar no centro da agenda mundial. Um deles é o de que precisamos unir as pautas do Meio Ambiente e dos Direitos Humanos. Precisamos dizer que eles caminham juntos e apresentar resoluções neste sentido em todos os fóruns. Nas três convenções do Meio Ambiente, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, na Assembleia Geral das Nações Unidas, nos acordos comerciais, de propriedade intelectual, junto às filantropias, aos organismos internacionais e aos fundos gestores do clima, assim como em tantas outras frentes.
As COPs tem avançando a respeito. Os debates sobre transição justa e perdas e danos, na COP do Clima, ou a perspectiva da COP da Convenção sobre Biodiversidade de transformar o Grupo 8J em um subcomitê, são importantes sinalizações. Mas ainda é pouco.
O conceito de justiça climática ainda parece mais ligado às demandas dos povos indígenas e movimentos sociais do que realmente incorporado aos grandes fóruns. As resistências são muitas e esta mensagem precisa estar muito forte e clara. Não haverá solução climática sem compreender as demandas dos povos atingidos. Não haverá solução climática sem reconhecer os conhecimentos tradicionais como parte inerente do processo. Sem reconhecer que direitos humanos e da natureza precisam caminhar juntos.
Tentamos avançar de alguma forma, em todos os assuntos citados, no primeiro ano de nosso Ministério — um ministério cuja criação esteve atrasada há 5 séculos no Brasil. São tantas as urgências que as políticas precisam ser mescladas entre aquelas mais emergenciais e as que darão retorno em um prazo maior.
Nestes cinco séculos, não só no Brasil, mas em todos os continentes, sofremos ataques que muitas vezes se converteram em genocídios de povos inteiros. Aqueles que resistiram, como nossos povos que aqui representamos, não estão sem a marca da violência sofrida em algum momento. Inclusive a própria Igreja Católica foi agente desta violência no passado e hoje estamos aqui, Igrejas e povos indígenas, para avançar no debate sobre conhecimentos tradicionais e passar grandes mensagens ao mundo.
Por isto a última mensagem que gostaria de deixar neste seminário precisa ser uma mensagem de paz. Não é possível falar em enfrentamento à mudança climática em um mundo em guerra. Dói diretamente em nós, indígenas, que já sofremos tanto com o genocídio, ver processos semelhantes ocorrendo na Palestina. Ocorrendo em tantos outros lugares no mundo.
Falei no começo do discurso que a cura para a doença das mudanças climáticas é complexa. Que exige uma mudança radical nos modos de vida da sociedade. Nossas culturas, nossa espiritualidade, sejam elas católicas, indígenas e tantas outras, são culturas de paz, que querem a harmonia do ser humano com a natureza, ao invés da ganância e da expropriação dos territórios. Que a disposição em construir este novo mundo, com a valorização das culturas e dos conhecimentos, a preservação dos direitos e da biodiversidade e a promoção da paz e do respeito em tantas dimensões, sele esta aliança importante e fundamental, a partir deste Seminário.
Muito obrigada.