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Discurso
Discurso da ministra Sonia Guajajara no evento Estado de Direito Ambiental e o papel dos juízes na proteção da floresta amazônica - 10/12/2023
Boa tarde a todas e a todos. É uma honra e uma alegria estar nesta conferência com vocês para nos debruçarmos sobre um tema tão importante quanto a importância dos juízes para a proteção da floresta Amazônica.
E que bom que isto está acontecendo aqui na COP, um espaço cuja participação do Executivo e da Sociedade Civil foi sempre majoritária. Ao longo dos anos os parlamentares passaram a se apropriar deste espaço e, mais recentemente, os representantes do poder judiciário.
É ótimo ver isto acontecendo, pois é muito importante que todas as instâncias da República se envolvam com a agenda climática. Cada vez mais o poder judiciário vem sendo demandado a se posicionar diante de emergências climáticas e sobre o direito ao meio ambiente meio ambiente limpo, saudável e sustentável, reconhecido pelas Nações Unidas, em julho do ano passado, também como direito humano.
Expressões como justiça climática e litigância ambiental são cada vez mais comuns aos nossos ouvidos e isso significa que o poder judiciário está sendo chamado a olhar tanto para o meio ambiente quanto para as desigualdades sociais que fazem com que as pessoas sejam afetadas em diferentes niveis pelas mudanças climáticas.
Embora o título da conferência seja “a importância dos juízes para a proteção da Amazônia”, eu não poderia deixar de ponderar, como faço já há anos, a importância da proteção de todos os biomas brasileiros. Sim, a Amazônia é a maior. Sim, a Amazônia possui maior biodiversidade. Mas a verdade é que ela não existe sem os demais biomas que com ela congregam um fluxo intenso de troca de nutrientes, regimes de chuvas e compartilham bacias hidrográficas.
Temos um país de dimensões continentais no qual a harmonia entre os biomas é crucial para a existência do bioma Amazônia. Então, para protegermos a Amazônia, a primeira coisa a ser feita é compreendermos que ela depende da proteção de todos os biomas brasileiros.
É muito importante, também (e nisso nossa Corte Constitucional tem sido muito atenta) a compreensão integrada entre proteção do meio ambiente e proteção dos demais direitos humanos. Assim, quando falamos de proteção de biodiversidade nós devemos sempre ter em mente que há uma socio-biodiversidade que jamais deve ser esquecida.
A floresta existe porque foi e segue sendo milenarmente manejada por grupos humanos que domesticaram suas plantas e animais, que manejam suas sementes e que compõem o ciclo da vida no bioma. Os povos da floresta não apenas a habitam, mas sim compõem o corpo da mata, corpos-território cujas raízes sociais, biológicas e culturais estão fincadas no solo que protegem.
Por isso, a atuação dos magistrados para a proteção deste direito humanos que é o meio ambiente saudável requer esta compreensão, ou seja, a de que não se protege a mata sem proteger os povos que a habitam.
Isso exige dos operadores do direito uma virada paradigmática de pensamento, pois esta compreensão exige que Natureza e Cultura sejam vistas como uma coisa só, ao contrário do que prega toda a tradição moderna ocidental.
Não se trata de proteger um sujeito de direito e também seu habitat, mas, antes, de proteger um bem que transcende as noções de sujeito e de objeto.
Neste contexto, é que se encaixa a proteção das terras indígenas. Garantir a demarcação e a desintrusão de invasores é crucial para a proteção dos biomas, uma vez que estudos demonstram que as terras indígenas (bem como terras de outros povos e comunidades tradicionais) são bolsões de vida, de proteção da biodiversidade e, também, servem de barreiras para o avanço do desmatamento.
O mundo inteiro está discutindo a diminuição do uso de combustíveis fósseis enquanto que no Brasil os nossos maiores vilõespara a emissão de gases do efeito estufa são as alterações de uso do solo, especialmente o desmatamento.
O direito à terra indígena é constitucional e precisa, de uma vez por todas, ser aceito pela sociedade brasileira. Essa interminável discussão em torno da interpretação do artigo 231 não pode encontrar guarida no judiciário. Em março deste ano, a tese de doutorado defendida pela Carolina Santana, no Direito da UnB, demonstrou que existe no Brasil um processo desconstituinte dos direitos territoriais indígenas. Ela pontuou que o marco temporal era apenas mais um elemento desconstituinte dentre os tantos que são debatidos e re-debatidos há mais de 30 anos pelo poder judiciário no Brasil. Ela afirmou que quando fosse superada a tese do marco temporal, outro desafio seria interposto. E foi o que aconteceu, agora teremos que enfrentar o imenso desafio da indenização pelas terras nuas e não mais somente às bem-feitorias de boa fé.
O papel do judiciário, penso eu, é não se deixar influenciar por setores pouco republicanos de nossa sociedade que não aceitam o artigo 231 e utilizam de influência política e econômica para manter este dispositivo constitucional em eterna disputa.
Proteger a Amazônia e nossos outros biomas é proteger as pessoas e povos que historicamente mantem com a natureza uma relação não-predatória e é valorizar modos de vida tradicionais. Tenho certeza que os magistrados podem fazer ainda mais por estas populações.
Obrigada!