Desestatização Codesa
Formas de exploração dos portos organizados: a concessão dos portos organizados de Vitória e Barra do Riacho
Quem nunca viajou de carro e se perguntou, ao trafegar por estradas concedidas e se deparar com praças de pedágio a certa altura do trajeto, se haveria dinheiro trocado o suficiente para demorar o menor tempo possível na parada? Ou ainda, quem não presenciou a completa mudança de determinados aeroportos após as concessões realizadas? Em Brasília, por exemplo, o Aeroporto Presidente Juscelino Kubitschek não só ganhou investimentos nos pátios, acessos viários, áreas de segurança, como também no tamanho e capacidade do terminal de passageiros, fazendo com que o principal desejo dos atrasados fosse não ter o embarque previsto para acontecer no último portão.
Essas são situações triviais em que é possível perceber a interação gerada no âmbito de concessões de serviços públicos, no caso, de infraestruturas rodoviária e aeroportuária. Ocorre que não há nada que se assemelhe, até o momento, à concessão de um porto público ou, em termos técnicos, à concessão dos serviços públicos de administração de um porto organizado.
Mas essa situação está prestes a mudar, haja vista a recente publicação do edital de desestatização da Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa), associada à outorga da concessão do serviço público de administração dos portos organizados de Vitória e Barra do Riacho, no Estado do Espírito Santo. A sessão pública do leilão está prevista para acontecer no dia 30 de março de 2022.
Em razão da relevância e do ineditismo da medida no setor portuário, nos propomos a abordar as formas de exploração dos portos organizados, com destaque para os contornos jurídicos da concessão dos serviços públicos de administração de um porto público.
O ponto de partida não poderia ser outro que não o comando constitucional. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 21, inciso XII, alínea “f”, prevê a competência da União para explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os portos marítimos, fluviais e lacustres.
Verifica-se que o dispositivo se refere à exploração direta ou indireta dos portos brasileiros. Antes, porém, de adentrar em cada tipo de exploração, é preciso fazer a distinção dos portos públicos e das instalações portuárias privadas.
Segundo conceito disposto na Lei de Portos (Lei nº. 12.815, de 5 de junho de 2013), porto organizado é o bem público construído e aparelhado para atender a necessidades de navegação, de movimentação de passageiros ou de movimentação e armazenagem de mercadorias, e cujo tráfego e operações portuárias estejam sob jurisdição de autoridade portuária (art. 2°, I). Dessa forma, o porto organizado consubstancia um conjunto de instalações portuárias e infraestruturas de proteção e de acesso destinados à movimentação de passageiros ou de movimentação e armazenagem de mercadorias, legalmente previsto como bem público, sob a administração e exploração da autoridade portuária. Vale mencionar que a área do porto organizado é delimitada por ato do Poder Executivo , conhecida como poligonal.
Fora da área do porto organizado, pode haver a exploração de instalações portuárias, mediante autorização, sendo esta uma atividade econômica em sentido estrito.
Feitas essas considerações, é preciso ter em mente que a exploração dos portos organizados pode ocorrer por: (i) órgão da Administração Pública federal direta; (ii) entidade da Administração federal indireta; (iii) concessão do próprio porto organizado; (iv) delegação a outro ente federativo (art. 241 da Constituição; Lei nº 9.277, de 1996; art. 6º, § 2º, da Lei nº 12.379, de 2011; art. 10, § 1º, “b” do Decreto-Lei nº 200, de 1967); ou (v) arrendamento de instalações portuárias nele localizadas (art. 1º, § 1º, da Lei nº 12.815, de 2013).
Acerca da exploração pela iniciativa privada, tem-se que tanto a concessão do porto organizado quanto os arrendamentos portuários são considerados medidas de desestatização. Isso porque a Lei n. 9.491, de 09 de setembro de 1997, conceitua como uma forma de desestatização a transferência, para a iniciativa privada, da execução de serviços públicos explorados pela União, diretamente ou através de entidades controladas, bem como daqueles de sua responsabilidade (art. 2°, § 1°, “b”) . A diferença entre eles reside no fato de que a concessão da administração do porto organizado compreende o porto em sua completude (com algumas gradações, conforme se verá a seguir), e não somente a exploração de instalações portuárias específicas, como acontece nos arrendamentos.
A título de contextualização, é preciso mencionar que, atualmente, existem portos delegados a estados ou municípios, diversas áreas e infraestruturas públicas arrendadas, bem como várias autorizações para exploração de instalações portuárias localizadas fora do porto organizado. No entanto, inexistem portos organizados explorados diretamente ou concedidos à iniciativa privada.
Pois bem, no que se refere especificamente à hipótese de concessão, a Lei de Portos dispõe que esta é a cessão onerosa do porto organizado, com vistas à administração e à exploração de sua infraestrutura por prazo determinado (art. 2°, IX).
Observa-se que a redação da lei pode gerar alguns equívocos quanto à natureza jurídica da concessão portuária. Ao se referir apenas à cessão de uso de bens, alguns doutrinadores questionam se a concessão portuária apenas regularia o uso de um bem público, sem se traduzir como medida de concessão de serviços públicos.
Conforme abordado na manifestação jurídica que analisou as minutas de edital e contrato de desestatização da Codesa e concessão dos portos de Vitória e de Barra do Riacho , a Lei de Portos atrela o uso do bem público, qual seja, porto organizado ou uma área deste, ao desempenho dos serviços de administração e exploração da infraestrutura do porto organizado (concessão), movimentação de passageiros ou movimentação ou armazenagem de mercadorias, destinadas ou provenientes de transporte aquaviário (arrendamento).
O porto organizado, como já dito, é considerado bem público afetado ao desempenho de um plexo de atividades descritas na lei. Esse regramento não é uma novidade no regime das concessões, que sempre disciplina a questão dos bens de uma concessão, realizando uma gradação entre aqueles imprescindíveis ao serviço público e os dispensáveis. No caso do sistema portuário brasileiro, a área do porto organizado é por natureza imprescindível para a prestação do serviço.
Assim, uma vez esclarecido que a concessão portuária não trata apenas de uma cessão de área, compreendendo também a prestação de um serviço público, é relevante destacar que esse serviço pode variar conforme o objeto concedido. Nesse sentido, o Decreto n. 8.033, de 27 de junho de 2013, aduz:
Art. 20. O objeto do contrato de concessão poderá abranger:
I - o desempenho das funções da administração do porto e a exploração direta e indireta das instalações portuárias;
II - o desempenho das funções da administração do porto e a exploração indireta das instalações portuárias, vedada a sua exploração direta; ou
III - o desempenho, total ou parcial, das funções de administração do porto, vedada a exploração das instalações portuárias.
De acordo com a Resolução CPPI n. 188, 07 de junho de 2021, que aprovou a modelagem e as condições de desestatização da Codesa e da concessão dos portos de Vitória e de Barra do Riacho, foi adotado o modelo previsto no inciso II.
O fundamento para tanto reside em evitar eventuais conflitos de interesse, derivados da atuação concorrente entre o concessionário privado e os exploradores de instalações portuárias, que poderiam emergir caso fosse adotada a opção primeira trazida pelo art. 20 do Decreto nº. 8.033, de 2013 .
Nesse contexto, e conforme bem destacado pelo Tribunal de Contas da União, a desestatização aqui tratada inaugura um novo modelo de gestão e transferência do papel de autoridade portuária para a iniciativa privada, tendo por objetivo modernizar a gestão portuária, atrair investimentos e melhorar a operação do setor .
Para saber mais sobre o caso Codesa e o contexto regulatório envolvido, recomenda-se a leitura do artigo “A Concessão de Portos Organizados: o caso Codesa”, de autoria de Felipe Nogueira Fernandes e Bruno de Oliveira Pinheiro, disponível no link https://seer.agu.gov.br/index.php/EAGU/issue/view/170/339.
Camilla Araújo Soares da Silva
Advogada da União, Consultora Jurídica Adjunta na Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Infraestrutura.
Marcela Muniz Campos
Advogada da União, Coordenadora-Geral de Portos e Transportes Aquaviários na Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Infraestrutura.
1. Competência delegada ao Ministro de Estado da Infraestrutura, conforme Decreto n°9.827, de 10 de junho de 2019.
2. Ainda, de acordo com a Lei n. 13.334, de 13 de setembro de 2016, consideram-se contratos de parceria a concessão comum, a concessão patrocinada, a concessão administrativa, a concessão regida por legislação setorial, a permissão de serviço público, o arrendamento de bem público, a concessão de direito real e os outros negócios público-privados que, em função de seu caráter estratégico e de sua complexidade, especificidade, volume de investimentos, longo prazo, riscos ou incertezas envolvidos, adotem estrutura jurídica semelhante (art. 1°, § 2°).
3. PARECER CONJUNTO n. 1/2022/PFANTAQ/PGF/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU.
4. Vide Acórdão 2931/2021-P/TCU.
5. Vide Acórdão 2931/2021-P/TCU.
6. Revista da AGU, DIREITO E INFRAESTRUTURA NO BRASIL: TEMAS RELEVANTES NOS SETORES AÉREO E PORTUÁRIO PARTE I, Ano 13 - n. 04, pt.1(2021) - Brasília-DF, dez. 2021/fev. 2022.