Cabotagem no Brasil: Entendendo os contorno legais até a criação do BR do Mar
A legislação brasileira de navegação de cabotagem sempre esteve intimamente ligada à política de proteção à marinha mercante e de garantia da segurança nacional de transportes.
Trata-se de uma tendência mundial que encontra no protecionismo regulatório vantagens estratégicas, como proteger a frota nacional; legais, como garantir que os navios de cabotagem cumpram a legislação nacional e internacional; econômicas, como promover o desenvolvimento da indústria naval ou proteger a indústria da cabotagem; sociais, como proteger o emprego da tripulação nacional; culturais e ambientais, como desenvolver uma indústria de cabotagem ambientalmente sustentável¹.
Segundo estudo realizado pela Consultoria Legislativa do Senado Federal, a marinha mercante brasileira foi protegida por cerca de 25 anos (1960-1986) por uma legislação que incluía reserva de mercado, concessão de subsídios e estabelecia a vinculação do seu crescimento ao da construção naval².
Apesar do grande impulso da navegação de longo curso, incremento da frota mercante brasileira e incentivo à entrada de empresas brasileiras no setor, o estudo revelou os problemas que começaram a surgir: fretes elevados e programas de construção naval equivocados, com embarcações consideradas operacionalmente ineficientes, já que as encomendas eram definidas pelo governo e não pelas empresas de navegação³.
Ainda de acordo com o estudo em referência, no final dos anos 80 e o início da década de 90, a navegação brasileira passou por sério processo de esvaziamento, sobretudo em razão da conjuntura econômica do País [4]. Nesse contexto, confira-se do apontamento feito pela Consultoria Legislativa do Senado Federal:
O Brasil atravessava um período de baixo crescimento, recorrentes crises de balanço de pagamentos e de inflação galopante que obrigou a indústria a trabalhar com estoques baixos e giro rápido, em função dos custos financeiros. No âmbito da cabotagem, essa conjuntura direcionou a carga geral para o modo rodoviário, que atendia os usuários em menor prazo, com maior frequência e custo final mais competitivo [5].
Foi nesse contexto que duas emendas constitucionais ampliaram as possibilidades de abertura do mercado: a Emenda n° 6, de 1995, que eliminou o conceito de empresa brasileira de capital nacional, por meio da alteração do § 1°, do art. 176; e a Emenda n° 7, de 1995, que deu nova redação ao art. 178 da Constituição Federal, remetendo para a legislação ordinária a regulamentação do mercado de navegação.
Com isso, foi editada a Lei n° 9.432, de 8 de janeiro de 1997, sobre o ordenamento da marinha mercante, que consolidou a política até a pouco vigente, com a abertura do capital das Empresas Brasileiras de Navegação (EBN) ao capital estrangeiro, sem qualquer restrição, e com o afretamento de embarcações estrangeiras liberado para a navegação internacional, com prévia aprovação apenas quando do transporte de cargas prescritas à bandeira brasileira.
A navegação de cabotagem, porém, permaneceu restrita às EBNs, admitido o afretamento de embarcações estrangeiras nas seguintes situações: (i) por tempo ou viagem, sujeito à prévia autorização, quando por inexistência ou indisponibilidade de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte pretendido; interesse público justificado; ou em substituição a embarcações em construção no país, em estaleiro brasileiro com contrato em eficácia, enquanto durar a construção; (ii) a casco nu, com suspensão de bandeira, independentemente de autorização, em proporção à tonelagem de porte bruto da frota própria da empresa ou das embarcações em construção em estaleiro nacional.
Assim, apesar de não haver nenhuma exigência ou limitação sobre a constituição do capital da empresa brasileira, podendo este ser integralmente proveniente de capital externo, a imposição de que a EBN detenha a posse de embarcações brasileiras constitui uma barreira à entrada para que potenciais interessados ingressem no mercado de cabotagem [6]. Outra barreira à concorrência é a imposição de contratação de embarcação em estaleiro nacional para que seja possível o afretamento de embarcação estrangeira a casco nu [7].
O argumento em defesa dessas medidas reside na necessidade de garantir a regularidade da oferta de embarcações para realizar a cabotagem no mercado brasileiro [8].
Existem outras barreiras além das aqui mencionadas, relacionadas com a garantia de um percentual de tripulantes brasileiros e os subsídios governamentais, a exemplo da política de estímulo à indústria de construção naval e à marinha mercante, estruturada por meio do tributo Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) e do Fundo da Marinha Mercante (FMM), nos termos da Lei n. 10.893, de 13 de julho de 2004.
Estudos de entidades governamentais e não governamentais apontavam a necessidade de aprimoramento da legislação. Especificamente no que concerne à liberalização do setor e ao protecionismo existente, cabe destacar a conclusão apresentada pelo estudo da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência (SEAE), o qual foi mencionado na Nota Técnica Nº 10/2020/CGNV/DNHI-SNPTA/SNPTA [9]:
O tema central deste estudo envolveu a discussão sobre a liberalização do setor de cabotagem. Os argumentos historicamente empenhados em favor do protecionismo, quais sejam, a questão de segurança nacional de transportes e o fomento à indústria naval, vêm se tornando obsoletos. O Brasil continua com baixo grau de integração dos mercados internos, com baixa inserção no comércio internacional e com produtividade estagnada há décadas. Muitas das empresas brasileiras de navegação são efetivas subsidiárias de multinacionais de afretamento; os estaleiros locais não conseguem suprir a demanda por novas embarcações e a participação da cabotagem no transporte de cargas gerais permanece pouco expressivo, a despeito da extensão do litoral brasileiro. Dessa forma, não só as barreiras à participação estrangeira no mercado são apenas nominais, como o direcionamento da demanda por embarcações brasileiras tem falhado em estimular uma indústria de construção naval internacionalmente competitiva.
Em razão disso, foi proposto o Projeto de Lei n. 4.199/2020, posteriormente convertido na Lei n. 14.301, de 7 de janeiro de 2002, que cria o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem - BR do Mar e tem como objetivos, entre outros, ampliar a oferta e melhorar a qualidade do transporte por cabotagem, bem como revisar a vinculação das políticas de navegação de cabotagem das políticas de construção naval.
Dentre as principais inovações podemos citar novas hipóteses de afretamento de embarcação estrangeira, inclusive sem a obrigatoriedade de as EBNs possuírem embarcações próprias.
Trata-se da possibilidade de uma Empresa Brasileira de Navegação, desde que habilitada no BR do Mar, afretar por tempo embarcações de sua subsidiária integral estrangeira ou de subsidiária integral estrangeira de outra empresa brasileira de navegação para operar a navegação de cabotagem, nos casos autorizados na lei.
Nesse contexto, destaca-se a hipótese do afretamento para a prestação exclusiva de operações especiais de cabotagem, caracterizada como a cabotagem para o transporte de cargas em tipo, rota ou mercado ainda não existentes ou consolidados na cabotagem brasileira.
Por fim, sem a pretensão de esgotar o tema, convém mencionar que outros estímulos fazem parte da nova lei, como a criação de novas possibilidades de utilização de recursos depositados nas contas vinculadas ao Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM), conforme arts. 19 e 26 da Lei nº 10.893, de 2004. Ainda, medidas que estimulam a redução de burocracias e custos de operação relacionados à cabotagem, a exemplo da possibilidade de comprovação da entrega e do recebimento da mercadoria por meio eletrônico.
Sobre os pontos aqui mencionados, verifica-se que a nova lei buscou a flexibilização das regras de afretamento de embarcação estrangeira com vistas ao estímulo à cabotagem, a fim de conferir maior relevância ao transporte aquaviário na matriz logística do país.
Isso porque, conforme consignado na Exposição de Motivos que acompanhou o Projeto de Lei n. 4.199/2020, “o transporte aquaviário é comparativamente mais eficiente e de menor custo que o modal rodoviário ou ferroviário, pois possui como característica natural a desnecessidade de aportes de recursos públicos para viabilização da via, além de proporcionar maior segurança para o usuário do serviço, para a carga transportada e menor impacto ambiental”.
Para saber mais sobre o assunto, recomenda-se a leitura do artigo “BR do Mar: uma análise sobre a cabotagem no brasil e as inovações do PL n. 4.199/20”, de autoria de Camilla Araújo Soares da Silva e Marcela Muniz Campos, disponível aqui.
Notas de rodapé
[1] Antaq. Estudo de Cabotagem: subsídio ao debate regulatório sobre a competição no transporte de cargas no país, em média e longa distâncias, com foco no transporte de contêineres na cabotagem. Disponível em: < http://sophia.antaq.gov.br/terminal/Acervo/Detalhe/27613?returnUrl=/terminal/Home/Index&guid;=1606089608521>. Acesso em 05 mai. 2022.
[2] Senado Federal. Evolução e Perspectivas de Desenvolvimento da Marinha Mercante Brasileira – Agosto 2008. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-45-evolucao-e-perspectivas-de-desenvolvimento-da-marinha-mercante-brasileira>. Acesso em 05 mai. 2022.
[3] Senado Federal, op. cit.
[4] Senado Federal, op. cit.
[5] Senado Federal, op. cit.
[6] Ipea. Diretoria de Estudos e Políticas Setoriais de Inovação e Infraestrutura. Nota Técnica n° 73. Reforma do Setor Brasileiro de Cabotagem: impactos sobre a comparação internacional – julho de 2020. Disponível em: < https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view;=article&id;=36201>. Acesso em: 05 mai. 2022.
[7] Ipea, op. cit.
[8] Ipea, op. cit.
[9] Ministério da Infraestrutura. Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários. Departamento de Navegação e Hidrovias. Nota Técnica nº 10/2020/CGNV/DNHI-SNPTA/SNPTA, de 17 de março de 2020. Disponível em: <https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/imagens/2020/09/NotaTcnicaBRdoMar.pdf>. Acesso em: 05 mai. 2022.
Marcela Muniz Campos
Advogada da União, Coordenadora-Geral de Portos e Transportes Aquaviários na Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Infraestrutura.