Entrevista do presidente Lula na premiação da iniciativa Goalkeepers
Entrevistadora — Parabéns pelo prêmio Bill Gates e obrigada por ter aceitado algumas perguntas. O que você fez pela subnutrição é incrível, presidente. Você tem agora a presidência do G20, que você quer fazer uma Aliança Global contra a Fome, e você tem trabalhado com a subnutrição e diminuiu a subnutrição há anos, quando você era presidente do seu país. Pela primeira vez, você ajudou 84% das pessoas no Brasil. Acho que isso merece uma rodada de aplausos.
Presidente Lula — É importante contar a história do começo. A obsessão que eu tenho para tentar cuidar de combater a fome no mundo é exatamente pela minha origem. Eu nasci num estado muito pobre do Nordeste, e, com 7 anos de idade, a minha mãe teve que se retirar do Nordeste para São Paulo, com oito filhos menores, na perspectiva de fazer os filhos sobreviverem.
Eu não tenho vergonha de dizer que eu fui comer pão pela primeira vez com 7 anos de idade, já em São Paulo. E é inadmissível que no século 21, num mundo com alta tecnologia, com desenvolvimento genético altamente admirável, com homens visitando vários planetas, a gente tenha criança que vai dormir de noite sem comer e levanta de manhã sem ter um pão com manteiga para tomar café.
A fome não é um fenômeno da natureza. A fome é a irresponsabilidade dos governantes do mundo que não querem enxergar as pessoas mais pobres, que não cuidam da necessidade de distribuição de alimentos. A minha experiência como presidente da República do Brasil é que eu disse no meu discurso de posse, em janeiro de 2003, eu disse se, quando eu terminar o meu mandato, cada criança, cada mulher e cada homem, tiver fazendo três refeições por dia, eu já terei cumprido a missão de vida na minha passagem pela Terra.
E foi assim que nós fizemos no Brasil. Nós criamos o programa Fome Zero, que depois se transformou no programa Bolsa Família, e nós resolvemos fazer o milagre de colocar o povo pobre dentro do orçamento da União. Eu não sei se todo mundo aqui que está neste plenário sabe como é que se faz um orçamento. O orçamento de um governo federal, você pega toda a previsão que você tem de arrecadação de todos os impostos e você vai distribuir pelas áreas que você tem que cuidar: educação, saúde, transporte, diplomacia, forças armadas, tudo que você tem que distribuir.
Acontece que nunca sobra espaço para o pobre, porque o pobre não é organizado, o pobre não está em sindicato, o pobre não tem condições de fazer passeata, de ir à capital protestar. O pobre é pobre. E eu, quando era mais jovem, eu imaginava, eu dizia assim: “As pessoas têm que passar fome para aprender a lutar. É preciso”.
Aí eu descobri que a fome não leva ninguém à revolução. A fome leva as pessoas à submissão. Então, cabe ao Estado, seja ele o americano, ou brasileiro, ou chinês, ou finlandês, ou norueguês, ter como premissa básica atender às necessidades dos mais pobres. O rico não precisa do Estado.
A classe média alta não precisa do Estado. Quem precisa do Estado são as pessoas que não tiveram oportunidade de estudar, que não têm uma profissão, que não conseguiram inventar uma Microsoft, que não tem condições. Essas pessoas precisam do Estado. Então, é para elas que o Estado precisa governar.
E esse é o sucesso que eu tive no meu governo. Nós conseguimos acabar com a fome em 2014, e depois que eu voltei à Presidência, agora em 2023, nós encontramos 33 milhões de pessoas com fome outra vez. Já tiramos 24 milhões e 500 mil pessoas. E, até 2026, eu quero outra vez apresentar ao mundo o Brasil sem fome.
Entrevistadora — E o Bolsa Família, na verdade, é o padrão ouro dos programas de inclusão social. Mas agora você também tem a presidência do G20, depois a COP. Como é que você planeja usar esses fóruns para ajudar no ataque contra a subnutrição e a fome no mundo?
Presidente Lula — Olha, não é apenas o Bolsa Família. O Bolsa Família é uma coisa extraordinária. Mas não é apenas ele. O Bolsa Família, a gente distribui uma quantia equivalente a 600 reais por cada família, mais 150 reais por cada filho até 6 anos de idade, e mais 50 reais para cada filho até 17 anos de idade.
Mas além do Bolsa Família, você tem que aumentar o salário mínimo. Além do Bolsa Família, você tem que ter política de crédito. Além do Bolsa Família, você tem que ter muito investimento para o pequeno e microempreendedor. Ou seja, a minha tese é de que na hora que o dinheiro começa a circular e a passar na mão de muitas pessoas, as pessoas começam a perceber que começa a gerar emprego, começa a melhorar o salário, começa todo mundo a ganhar.
Então, Bolsa Família, eu diria, sem medo de errar, que é possivelmente a experiência mais bem-sucedida de combate à fome no mundo. Eu, quando deixei a Presidência em 2010, eu tentei levar o programa para vários países africanos, para vários países latino-americanos. Agora, esse programa, ele só pode ser executado se houver decisão política de governo.
Eu, por exemplo, Bill Gates, acho louvável que um empresário como você crie uma fundação. Acho louvável. Mas o que vai resolver o problema da miséria, efetivamente, não é através da doação de uma fundação que é importante. É através de políticas públicas. É através de políticas públicas de decisão de governo.
Então, no G20, nós aprovamos uma coisa chamada Aliança Global contra a Fome. No G20, nós vamos discutir três coisas importantes: a questão da Aliança Global contra a Fome, vamos discutir a questão da transição energética e vamos discutir a questão da governança mundial.
O mundo está desgovernado. Ninguém respeita ninguém. A ONU, quando ela foi criada, a ONU tinha 51 países que eram sócios da ONU. Agora tem 193. Significa que mais de 140 não participaram da criação da ONU. E a ONU, que, quando foi criada, teve força para criar o Estado de Israel, a ONU hoje não tem coragem de criar o Estado palestino.
A ONU não consegue. Não tem força para decidir. Não precisaria ter tido a guerra da Rússia com a Ucrânia. Não precisaria ter tido o genocídio na faixa de Gaza. Não precisaria ter a invasão da Líbia. Não precisaria ter a guerra do Iraque.
Tudo isso poderia ter sido evitado se a ONU cumprisse com a sua tarefa de ser uma espécie de governança mundial. Uma coisa importante que você tem que saber: como é que a gente vai cuidar do planeta Terra se as decisões que são tomadas nos encontros não são cumpridas?
Aqui não se cumpriu o Protocolo de Kyoto. Não se cumpriu a decisão de Copenhague. Não se cumpriu o Acordo de Paris. Não se cumpriu as ODS. Não se cumpriu as Metas do Milênio, que era até 2015. Nada é cumprido. Porque é decidido e não é cumprido. Por quê? Porque não tem governança. Porque não tem autoridade governamental mundial e é preciso ter. É preciso ter.
Então, a nossa decisão e a nossa briga é que o mundo não pode continuar com cinco países sendo membro do Conselho de Segurança da ONU. Não pode. Tem que ter participação do continente africano, do continente latino-americano, do continente asiático, para que a gente possa ter uma instância mais plural, mais representativa e que a gente não tenha direito de veto.
Ninguém mais respeita uma decisão da ONU. Então, os pobres não têm representação. E a ONU poderia ser essa referência. A ONU poderia conquistar essa credibilidade, e é por isso que no G20 a gente vai discutir isso e também vai discutir a questão da transição energética. E aí eu tenho muito orgulho de dizer, na questão da transição energética, o Brasil será um país imbatível. É importante vocês saberem que hoje a matriz elétrica mais limpa do mundo é a do Brasil.
90% da nossa matriz energética é renovável e 50% de toda energia é responsável. Nós temos o biodiesel há 20 anos e o etanol há 50 anos. Portanto, a gente vai produzir etanol, vai produzir biodiesel, vai produzir hidrogênio verde, vai produzir eólica, vai produzir solar, vai produzir biomassa e a gente vai poder provar que o mundo pode ser limpo, que o mundo pode não emitir gases de efeito estufa e que a gente pode prometer que nós, animais, seres humanos, não vamos continuar destruindo a nossa terra, a nossa casa, o nosso planeta.
Até porque os mais ricos do mundo estão fazendo foguete, tentando procurar espaço para morar e não tem. Vai ter que aprender a cuidar da Terra, vai ter que aprender a cuidar do nosso planeta para a gente viver dignamente.
Pergunta — Obrigada, presidente. Muito obrigada, presidente. Tudo isso precisa de muitos financiamentos, e o financiamento de saúde enfrenta muita resistência. Que compromisso você espera ver dos governos para garantir que nós não vamos vacinar suficientemente e ter progresso na área de saúde?
Bill Gates – Bem, eu acho que, no momento em que os recursos estão limitados, nós precisamos, na verdade, fazer o melhor trabalho possível para financiar as coisas que têm um impacto muito grande. E eu, vindo do mundo empresarial, você tem muito cuidado com os seus investimentos, você é muito analítico sobre o impacto de alguma coisa que eu comprei que vem dessa área da saúde global. Eu acho que está muito claro que o financiamento para vacina para as crianças no mundo, isso foi uma coisa fenomenal. Financiamento de medicamentos para malária, para tuberculose, também foi fenomenal. E, agora, um financiamento para a subnutrição. Então, eu espero que, mesmo se a gente não puder crescer o quanto a gente quer nos próximos anos, quando a gente enfrenta desafios enormes, inclusive o curso da guerra da Ucrânia, manter o nosso compromisso de trazer impacto. E aí depois nós podemos voltar ao crescimento e quando a gente voltar à inovação, é um tipo de compromisso que nós ouvimos agora do presidente Lula, nós vamos voltar novamente aos trilhos.
Palestrante — Muito obrigada. Muito obrigada aos dois.
Presidente Lula — Mas eu queria aproveitar que eu não venho aos Estados Unidos todo dia, não sou convidado pelo Bill Gates todo ano e não conheço vocês, e vocês possivelmente, não me conheçam. Eu só queria dizer que o problema do mundo não é falta de dinheiro. Existem trilhões e trilhões de dólares navegando pelo Oceano Atlântico, navegando pelo espaço aéreo.
Gente vivendo cada vez mais rico sem produzir um copo, sem produzir uma garrafa d'água, vivendo de especulação. Esse dinheiro, só para vocês terem ideia, o ano passado, foi gasto em armas 2 trilhões e 400 bilhões de dólares. Esse dinheiro, se aplicado para combater a fome, se aplicado na agricultura familiar, se aplicado para ajudar os países pobres, a gente acabaria com a fome no mundo. O problema é que você tem hoje no planeta Terra cinco mega empresários que têm mais dinheiro do que 10 países.
Isso não tem explicação, eu não sou contra ninguém ser rico. Eu sou contra as pessoas serem pobres, porque eu não gosto que as pessoas sejam pobres, porque eu quero que as pessoas evoluam na vida, que as pessoas ganhem dinheiro, que as pessoas tenham um padrão de vida decente. Agora, não é possível uma pessoa sozinha ter mais dinheiro do que o Reino Unido. Não é possível que uma pessoa sozinha tenha mais dinheiro do que o Brasil, que tem 210 milhões de habitantes.
Então, é preciso que haja uma concertação mundial para a gente rever o comportamento de todos nós. Eu não quero a miséria. São 733 milhões de pessoas que vão dormir toda noite sem ter o que comer num mundo que produz alimento em exagero, num mundo que produz alimento para todo mundo. Não precisaria, se houvesse dinheiro para o consumo, não precisaria, se houvesse o Estado preocupado com isso.
Eu estava dizendo ao Bill Gates, eu passei numa avenida que eu não conheço, como eu não sei falar uma palavra em inglês, eu nem consigo ler os nomes da rua. Mas eu passei ali, eu vi uma fila e a minha mulher que está aqui, ela disse que aquela é a fila das pessoas que vão pegar sopa para comer.
Aí, Bill Gates, eu fico indignado. Sinceramente, eu fico indignado. Como é que pode, no Estado mais rico do mundo, no Estado de mais competência tecnológica do mundo, como é que pode a gente saber que tem pessoas pobres que são obrigadas a ir pegar uma fila para pegar uma sopa para comerem?
Cadê o papel do Estado? O Estado tem que garantir a essas pessoas condições de sobreviver. Então, Bill Gates, eu não sou um homem radical. Eu fui sindicalista a vida inteira, eu lutei a vida inteira para que o trabalhador ganhasse aumento de salário. E a minha tese não era marxista, a minha tese era capitalista, era do Henry Ford. O Henry Ford dizia: “Eu tenho que pagar um salário ao meu trabalhador para ele poder consumir o produto que ele produz”.
Essa é a tese extraordinária. Como é que pode o trabalhador trabalhar na padaria e não ter dinheiro para comprar pão? Trabalhar na empresa têxtil e não ter dinheiro para comprar roupa? Trabalhar na construção civil e não ter uma casa para morar? Como é que pode? Não tem explicação.
Então, eu queria terminar dizendo para vocês uma coisa, gente, de coração. Aos 78 anos de idade, quero dizer para vocês: eu vivo o melhor momento da minha vida. Eu me sinto um ser humano pleno. E queria dizer para vocês: a fome no mundo não é falta de dinheiro, é falta de vergonha na nossa cara, que governamos o mundo. Porque na hora que a gente tiver vergonha, na hora que a gente assumir compromisso, a gente acaba com a fome. É isso.
Por isso, obrigado pela oportunidade.