Entrevista do presidente Lula ao UOL
Carla Araújo (UOL): Olá, bom dia. Hoje há uma entrevista especial aqui do Palácio do Planalto. Uma entrevista exclusiva com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Presidente, muito obrigada, em nome do UOL, por nos receber aqui.
Presidente Lula: Bom dia, Carla. É um prazer imenso estar falando com o UOL. Muito mais prazer estar falando com você e estar falando com o nosso Sakamoto.
Carla Araújo (UOL): Comigo nesta entrevista, meu colega e colunista, Leonardo Sakamoto. Sakamoto, obrigada pela presença e eu já te dou a honra de começar perguntando para o presidente.
Leonardo Sakamoto (UOL): Antes de mais nada, bom dia, Carla. Bom dia a todo mundo que nos acompanha. Bom dia, presidente. Obrigado por estar nos recebendo aqui no Palácio do Planalto nesta manhã de quarta-feira. Vou começar com um assunto bem fácil, a economia. Presidente, o Brasil vem gastando mais do que arrecada. Nesse sentido, o que o seu governo vai fazer para resolver isso? A gente vai continuar brigando com determinados setores contra os benefícios fiscais, vai cortar gastos, contingenciar despesas, alterar o mínimo constitucional com educação e saúde ou mudar a regra do arcabouço?
Presidente Lula: Eu sabia que essa pergunta viria. Só não sabia se era a primeira pergunta, mas eu sabia que ela viria. Ô Sakamoto, há muito tempo, eu tenho a vantagem de já ter sido presidente outras duas vezes. E esse tema sempre foi um tema recorrente. Sempre. É engraçado, porque esse tema é mais forte no Brasil do que em qualquer outro país do mundo. Então, aqui no Brasil vira e mexe as capas de jornais, as manchetes das matérias, são sempre assim: “O governo está gastando demais, a dívida pública é muito alta, a dívida pública não sei das quantas”. O que não é verdade. Não é verdade.
Veja, se você pegar a média dos países da OCDE, eles gastam 113% do PIB. Se você pegar os Estados Unidos, é 123% do PIB. Se você pegar a China, é 83%. Se pegar o Japão, é 237%. Se você pegar a França, é 112% e a Itália, 137%. E o Brasil é, efetivamente, 74%, 76%. Hoje está em 76%. Está muito aquém, sabe, dos gastos que os outros países fazem. Ora, isso não implica que a gente não leve em conta a seguinte certeza. Eu conto pra todo mundo o seguinte. Eu aprendi a economia com a mulher analfabeta que era minha mãe. E ela pegava o holerite de pagamento de todos os filhos, e ela colocava o dinheiro na mesa, separando “isso é para aquilo, isso vai fazer isso”. No final das contas, se sobrasse alguma coisa, era nosso. Se não sobrasse, paciência.
O orçamento da União é a mesma coisa. Ele é um bolo de arrecadação. Você tem que distribuí-lo. No Brasil, habitualmente, não se faz política social. No Brasil, habitualmente, quando muito, um vale gás, um vale não sei das quantas, um vale arroz, não vale… E nós queremos fazer política de inclusão social que permita que as pessoas tenham a oportunidade de crescer. O que nós precisamos é saber o seguinte: o gasto está sendo bem feito? O dinheiro está sendo utilizado para alguma coisa que vai melhorar o futuro desse país? Eu acho que está. Eu acho que está. Nós, então, estamos agora fazendo uma análise onde é que tem gasto exagerado, onde é que tem gasto que não deveria ter, aonde é que tem pessoas que não deveriam receber, que estão recebendo, e isso com muita tranquilidade, sem levar em conta o nervosismo do mercado, levando em conta a necessidade de você manter política de investimento. Se você quiser investir na educação, não tem jeito, Sakamoto, você tem que contratar professor, você tem que contratar funcionário, você precisa fazer laboratórios, você precisa fazer mais sala de aula, não tem jeito.
Esse país ainda tem menos estudantes comparado à população, ao Chile e à Argentina. Isso porque no nosso governo nós duplicamos o número de alunos na universidade. Então nós vamos continuar investindo em educação, nós vamos continuar investindo em saúde. Quanto custa um trabalhador doente? Quanto custa um trabalhador são? Então, no Brasil essa discussão... Eu digo sempre o seguinte. Outro dia eu estava tomando café com os jornalistas e eu perguntei para a imprensa toda que estava lá. Quando o patrão de vocês dá um aumento de salário para vocês, é custo ou é investimento?
Carla Araújo: Merecimento, na verdade.
Presidente Lula: Eu acho que é investimento. Esse é o dado. É que eu acho que é investimento, porque quando o patrão dá um aumento para você, ele está dando aumento porque ele acha que você merece, porque você teve produtividade, e ele quer que você esteja mais feliz no trabalho e produza mais ainda.
Carla Araújo: Claro, presidente, esse cenário que o senhor coloca, tem esses números aí de comparação, mas assim, há uma evidência. É preciso cortar. O senhor disse que o ministro Fernando Haddad [da Fazenda] e a ministra Simone Tebet [do Planejamento e Orçamento] vão apresentar isso para o senhor até o dia 22. O senhor já sabe onde cortar? Vai cortar?
Presidente Lula: O problema não é que tem que cortar. O problema é saber se precisa efetivamente cortar. Ou se a gente precisa aumentar a arrecadação. Temos que fazer essa discussão.
Carla Araújo: Mas já não há um cenário de receitas superestimadas?
Presidente Lula: Deixa eu lhe falar uma coisa. Isso aí a Suprema Corte aprova 92 bilhões de reais de precatórios. Agora mesmo eu vetei a tese da desoneração. Dezessete setores da economia brasileira, todos muito grandes, querem desonerar o pagamento da folha. Eu vetei. Eles derrubaram o veto. E agora a Suprema Corte decidiu que se em 45 dias não tiver uma compensação, o veto está derrubado. Ora, como é que a gente pode falar em gastos se a gente está abrindo mão de receber uma quantidade enorme de recursos que os empresários têm que pagar?
Carla Araújo: O senhor falou nessa conversa com o ministro Fernando Haddad e Simone Tebet que ficou assustado com a quantidade de subsídios que o Brasil dá, 6% do PIB. Mas nesse caso, os governos do PT historicamente implementaram essa política de subsídios. Dá para consertar isso? Esse caso de subsídios, o senhor está disposto a cortar? O senhor falou da desoneração aí que pode...
Presidente Lula: Eu vou lhe contar um caso verídico. Eu era presidente da República em 2008, quando houve a crise do subprime. E eu tomei uma atitude aqui no Brasil de fazer o primeiro processo de desoneração. Nós fizemos desoneração de 47 bilhões de reais com os setores empresariais e com os sindicatos sentados na mesa para ter a contrapartida. Quando eu vou desonerar uma empresa, eu quero saber o seguinte: essa empresa vai manter a estabilidade do emprego? Ela vai manter por quanto tempo? Porque se não, o benefício é só para o empresário, não é para o trabalhador, não é para a sociedade brasileira.
Eu fico me perguntando com que direito o Estado tem de abrir mão de uma determinada quantia de arrecadação para favorecer o lucro do empresário. Não. Se a economia estiver em crise, tiver um setor que está mais machucado, você pode utilizar a desoneração como se fosse uma comporta numa hidrelétrica. Você desonera um pouco e fecha, você desonera e fecha, você desonera e fecha. Mas aqui no Brasil, quando a gente aprova a desoneração para cinco anos, quando chega nos cinco anos, tem um projeto para desonerar mais dez. Aí quando chega dez tem mais um para mais dez. Aí fica tudo política perene.
Carla Araújo: Mas dá pra consertar isso?
Presidente Lula: Dá pra consertar.
Carla Araújo: Como?
Presidente Lula: Dá para consertar. Veja, nós temos que ter em conta que nós vamos ter uma nova política tributária ainda esse ano, se Deus quiser, para a gente poder resolver o problema do pagamento de imposto, problema da arrecadação. Isso vai ser muito importante para o Brasil. Você pode ficar certa que o Brasil muda de padrão a hora que a gente tiver aprovado a Reforma Tributária. E você sempre tem que ter o cuidado que você não pode gastar mais do que você arrecada. Isso é líquido, isso vale pra minha família, isso vale pra você, vale pra você e vale pra todo mundo que tem responsabilidade.
Eu, se ganho 10, eu não posso gastar 20. Se eu tiver que gastar 20, eu tenho então que contribuir o seguinte. Esse 20 é investimento? Se ele é investimento, essa dívida que eu vou fazer, ela tem que servir como subproduto desse investimento na produção de uma coisa que aumenta o teu capital, que aumenta o teu patrimônio.
Leonardo Sakamoto: Presidente, mas o senhor estava falando com relação à questão dos subsídios com a Carla, eu me lembrei de uma outra coisa. Você vai pegar a questão dos subsídios, da desoneração os 17 setores que bateram perna no Congresso para renovar. Eles têm representação forte, eles têm lobby e tudo isso mais. Ao contrário de um outro naco da sociedade...
Presidente Lula: Eles têm lobby ou têm bancada?
Leonardo Sakamoto: As duas coisas. Eles têm lobby e têm bancada. Agora, você vai pegar um grupo que não tem lobby, que não tem bancada, que é o pessoal mais pobre da sociedade. E aí é a pergunta, junto das coisas que estão sendo estudadas pelo governo, inclui a desvinculação do salário mínimo no Benefício de Prestação Continuada e em pensão? Não estou falando aposentadoria. Estou falando pensão?
Presidente Lula: Não.
Leonardo Sakamoto: O senhor garante que não vai ter.
Presidente Lula: Garanto que o salário mínimo não será mexido. Enquanto eu for presidente da República.
Leonardo Sakamoto: Essa ligação pagamento para os idosos pobres, um salário mínimo. Não vai ser mexido?
Presidente Lula: Deixa eu lhe contar uma coisa, porque quando você aumenta o salário mínimo, bote na cabeça uma coisa, você aumenta o salário mínimo, o que diz a Lei que regulamenta o aumento do salário mínimo. Ou seja, você tem sempre que colocar a reposição inflacionária porque é para manter o poder aquisitivo. E nós damos uma média do crescimento do PIB dos últimos dois anos. O crescimento do PIB é exatamente para isso. O crescimento do PIB é para você distribuir entre os 213 milhões de brasileiros. E eu não posso penalizar a pessoa que ganha menos. Eu não posso penalizar. “Ah, mas tantos trilhões…” Olha, mas quantos milhões de pessoas? É tantos trilhões para muita gente.
Vamos pegar uma coisa que a gente fala de desoneração. Vocês viram a briga da blusinha. Você viu a briga da blusinha. Veja que absurdo. Nós temos um setor da sociedade brasileira, você, eu, você e alguma gente que está nos ouvindo aqui que pode viajar uma vez por mês para o exterior e pode comprar até dois mil dólares sem pagar imposto. Pode chegar no free shop e comprar mil e pode comprar mil no país e não paga imposto. Está tudo normal. É maravilhoso. Eu fiz isso para ajudar a classe média e a classe média alta. Agora quando chega a tua filha, a minha filha, a minha esposa que vai comprar 50 dólares, eu vou taxar os 50 dólares? Não é irracional? Não é uma coisa contraditória?
Então, eu acho que a gente tem que fazer política de desoneração quando a gente quer fortalecer um setor por um determinado tempo, quando a gente quer retomar a rapidez. Eu fiz com a indústria automobilística em 2008. O dado do Brasil, sabe o que é, Sakamoto, é que a gente diminuiu muito a arrecadação. Eu vou te contar um exemplo, só pra você saber. Eu deixei a presidência em dezembro de 2010. Esse país vendia 3 milhões e 800 mil automóveis. 3 milhões. Eu voltei em 2023. Esse país vendia 1 milhão e 800. Metade do que vendia em 2010.
Carla Araújo: Mas é uma questão de mobilidade aí, né? De petróleo também, não é?
Presidente Lula: Não, não é questão não. É questão de que parou de produzir. Caiu o poder aquisitivo do povo, o povo deixou de comprar. E isso que é o dado. O povo parou de comprar. Esse mês você viu no jornal: “recorde de venda de carro no mês de maio”. Porque a indústria automobilística que não estava investindo nada nas últimas duas décadas, depois que a China se instalou na Bahia, já foi lançada, já anunciaram investimentos de 129 bilhões de reais até 2028 e um pouquinho até 2030. Ora, numa demonstração de que nós precisamos...
Você sabe que eu propus na Anfavea [Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores], Sakamoto e Carla? Eu propus na Anfavea: “por que vocês não voltam a fazer o salão do automóvel?”. Por que um país que tem 33 indústrias automobilísticas não tem um salão do automóvel para fazer propaganda do carro? Salão do Automóvel sempre foi assim. Muita gente. Eu mesmo fui em todos como presidente da República. Por que ele não volta? Por que que a gente não dá incentivo? Por que não barateia o preço do carro? O pobre não pode comprar um carro por 150 mil reais, mas um carro por 70, por 80, por 90 ele compra. Por que a gente não volta a fazer carro popular pro povo comprar?
Leonardo Sakamoto: Mas o senhor vai propor pra isso redução de impostos que nem o senhor fez na época, lá atrás com o IPI?
Presidente Lula: Não, não é necessário agora. Agora tem que retomar a produção, tem que retomar a venda. Na medida em que a massa salarial começa a crescer, e a massa salarial cresceu 11,7% em 2023, e vai crescer esse ano. Na medida em que os acordos salariais sejam feitos, todos eles, acima da inflação, como está acontecendo agora, segundo o DIEESE, 83% dos acordos salariais com salário acima da inflação. Tudo isso vai aumentando o poder de compra. E ainda mais, Sakamoto, nós isentamos de pagar imposto de renda até quase R$ 2.800, R$ 2.640, e eu vou chegar a R$ 5 mil. É importante lembrar que eu tenho um compromisso histórico.
Até o final do meu mandato eu quero chegar a 5 mil reais sem pagar imposto de renda.
Leonardo Sakamoto: Presidente, o senhor falou de inflação, desculpa entrar até, de cortar isso com o senhor, que é o seguinte, a gente perdeu recentemente a Maria da Conceição Tavares, né, e ela tem uma frase que é ótima, eu não estou provocando o senhor, mas também é uma provocação de que ninguém come PIB, as pessoas comem alimentos. E o que acontece? É fato, o PIB subiu, a renda subiu, o desemprego caiu no último ano e meio durante sua gestão. Mas o Brasil, e aí são dados do IPCA, tal como a inflação de alimentos, que está pegando, e pega principalmente as classes mais pobres. O arroz, antes da tragédia do Rio Grande do Sul, se pegar o acumulado do IPCA do mês passado, deu alta de 27% em um ano sem considerar a tragédia do Rio Grande do Sul. E aí a pergunta, o senhor acha que essa alta na inflação dos alimentos afetou a sua popularidade?
Presidente Lula: Vamos voltar a falar da Maria da Conceição Tavares. Ninguém come PIB, as pessoas comem alimento. Mas a verdade é que se o PIB não crescer, você não tem o que distribuir. É saudável. Eu vou dar um exemplo.
Leonardo Sakamoto: O Brasil é ruim de distribuição.
Presidente Lula: Peraí. Se você é solteiro e você ganha R$ 10 mil, você tem uma renda per capita de R$ 10 mil. Quando você casa com comunhão de bens, a tua renda per capita cai para R$ 5 mil. Quando você tem um filho, cai para R$ 3 mil. Ou seja, o que vai acontecer é que se o PIB não crescer, você não tem o que distribuir. Por isso que é importante a gente apostar no crescimento do PIB. O que é grave é que esse país cresceu de 1950 a 1980, em média, 7,5% ao ano, e a riqueza não foi distribuída. Aí quando termina essa fase do crescimento, você percebe que a sociedade está mais pobre. O que nós estamos fazendo? Distribuindo.
Qualquer crescimento, por mais insignificante que ele seja, ele tem que estar sendo distribuído para 203 milhões de habitantes. Essa é a lógica do que nós vamos fazer. E é por isso que a gente está tomando decisões com relação ao custo de vida. Ô Sakamoto, esse ser humano que vos fala, já viveu com 80% de inflação ao mês. Eu recebia meu salário, eu corria no atacadista para comprar tudo que não era perecível, para poder não perder meu dinheiro. Comprava papel higiênico demais, comprava óleo de soja demais, comprava um monte de coisa que eu não ia nem usar, mas eu comprava porque eu não queria que meu dinheiro desaparecesse pela inflação.
Então eu tenho cuidado com isso, se você soubesse o carinho, o amor que eu tenho de cuidar da inflação, cara. Por isso é o seguinte, por isso que eu tomei a atitude de importar um milhão de toneladas de arroz. Por que que eu tomei essa decisão? Porque eu vi na brasileira do supermercado um arroz, pacote de 5 quilos, a 36 reais. A 33 reais, a 36 reais, eu falei: “não é possível”. Um pacote de 5 quilos tem que baixar. Isso aqui tem que ser vendido a 20 reais. Tem que ser vendido a um preço que seja compatível.
Então o feijão, o arroz e a carne, a carne, você sabe que a carne baixou. A carne baixou. Você já pode comprar uma picanha hoje.
Leonardo Sakamoto: Não, senhor, é que o senhor prometeu cerveja e picanha, mas é que as pessoas no dia a dia compram isso, arroz…
Presidente Lula: Nós estamos discutindo um monte de coisa. Agora vamos discutir, por exemplo, a política tributária. Nós vamos discutir quais os itens que a gente quer que não paguem o imposto e qual que pague imposto. Então, eu acho que você tem que separar. Mesmo na questão da carne, os empresários querem que você isente toda a carne.
Eu acho que a gente tem que mediar. Você tem carne que é consumida só por gente de padrão alto e você tem a carne que o povo consome. Então, você pode fazer a separação carne de frango, você não vai tá taxar frango. Carne de frango é o que o povo come todo dia, pé de frango, pescoço de frango, peito de frango. Então, a gente tem um cuidado especial. É importante lembrar que a inflação está controlada nesse país. A inflação está controlada nesse país.
Carla Araújo: Então, presidente, mas quando o senhor fala que talvez não corte gastos, e aí a gente vai para uma tríade macroeconômica de juros, câmbio e inflação, né? E aí o senhor vem fazendo críticas, por exemplo, ao Banco Central, justamente porque agora parou um pouco da redução da taxa de juros. E uma das sinalizações do Banco Central é que o governo precisa mostrar aonde vai cortar gastos, porque não pode gastar mais do que arrecada como o senhor colocou, senão haverá uma pressão inflacionária. E aí, já juntando essa questão do Banco Central, eu queria perguntar para o senhor, o senhor se encontrou ontem com o diretor Gabriel Galípolo? Ele é o mais cotado mesmo para assumir a presidência do Banco Central no ano que vem? E se o senhor pretende anunciar isso em breve, até agosto.
Presidente Lula: Primeiro, o Galípolo veio aqui numa reunião em que a gente estava discutindo a meta inflacionária. E a gente manteve a meta que tinha.
Carla Araújo: Vai ser anunciada hoje?
Presidente Lula: Meta contínua, sabe? A novidade foi estabelecer a meta contínua. A segunda coisa é o seguinte, o Galípolo é um companheiro altamente preparado. Conhece muito do sistema financeiro. Mas eu ainda não estou pensando na questão do Banco Central. Não estou pensando. Vai chegar o momento que eu vou pensar e vou indicar um nome para que seja presidente do Banco Central. E não venho com chorumela, como diria o Fernando Henrique Cardoso [34º presidente do Brasil 1995 - 2003] e para mim. Não venho com chorumela. Sabe por que? Eu fui presidente oito anos.
Eu tive presidente do Banco Central. E o Meirelles [Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central e ex-ministro da Fazenda] tinha total autonomia, porque eu não preciso de uma lei para dizer que tem autonomia. Eu preciso respeitar a função do Banco Central. A pergunta que eu faço é a seguinte. O Banco Central tem necessidade de manter a taxa de juros a 10,5% quando a inflação está a 4%? O Banco Central leva em conta que as pessoas estão tendo dificuldade de fazer financiamento? Porque é o seguinte. Não é culpa sequer do Banco Central, é culpa da estrutura que foi criada. O cara não pode ser só cuidar da inflação. Precisa cuidar o seguinte: o Banco Central vai ter um plano de meta de crescimento, eu quero controlar a inflação, mas eu quero crescer. A gente vai avançar para isso?
Então eu estou com muito cuidado, eu continuo criticando a taxa de juros, eu até acho que não deveria ser o presidente que criticasse, porque…
Carla Araújo: Deveria ser quem?
Presidente Lula: Teve um tempo que a gente tinha o Antônio Ermírio de Moraes, eu tinha o José Alencar, que batia muito na taxa de juros, mas é preciso que os empresários do setor produtivo, a CNI, a FIESP ao invés de reclamar do governo, eles deveriam fazer passeata contra a taxa de juros, porque são eles que estão tendo dificuldades, são eles que não conseguem crédito, não é o governo. Então o que eu acho é que nós precisamos caminhar para uma taxa de juros compatível com a necessidade de crescimento desse país, que precisa voltar a crescer mais e ao mesmo tempo, nós temos que ter o cuidado de manter a inflação controlada. Porque a inflação controlada significa ganho real para os pobres desse país.
E cuidar do alimento. O alimento para mim é uma coisa que eu tenho muito apreço pelas pessoas que vão comprar o que comer, as pessoas humildes, que muitas vezes pagam a inflação sazonal. Hoje mesmo eu vi uma imagem de um cidadão jogando tomate para os animais porque o preço está barato. Sinceramente, eu não sei se ele estava revoltado porque o preço está barato e jogou para os animais. Poderia ter levado para a cidade para distribuir para o povo. Para o povo pegar tomate de graça.
Então nós vamos cuidar da inflação. Eu quero que você saiba o seguinte, Sakamoto. Eu sou um ser humano que vivi inflação de 80% ao mês. E eu recebia salário. E se eu não gastasse aquele dinheiro num dia, ele perderia valor no dia seguinte. Então para mim a inflação é quase que uma opção divina. Eu quero cuidar de controlar a inflação porque eu quero que o povo tenha direito a comer do bom e do melhor e o mais barato possível.
Carla Araújo: Presidente, só desculpe insistir na questão da nomeação do presidente do Banco Central. Você falou que não está decidido ainda porque o mercado já precificou o nome do Galípolo. Aí surgem outros nomes, por exemplo, o ex-ministro Guido Mantega ou o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante. E aí o mercado já começa a ficar um pouco mais preocupado. Há alguma chance desses nomes ocuparem uma vaga no Banco Central?
Presidente Lula: Olha, eu não indico o primeiro do Banco Central para o mercado. Eu indico presidente do Banco Central para o Brasil. Ele vai ter que tomar conta dos interesses do Brasil. E o mercado, seja ele o mercado financeiro, o mercado empresarial, o mercado produtivo, tem que se adaptar a isso. E, obviamente, que todos nós temos em mente, gente, isso é preciso ter certeza, todos nós temos em mente que o Brasil vá bem, que a inflação esteja bem, que o crédito esteja bem, que o crescimento de investimento esteja bem, que o crescimento de emprego esteja bem, que o crescimento do salário esteja bem. É esse país do bem, é esse país de ganha-ganha que nós precisamos criar e é isso que nós precisamos fazer num país de ganha-ganha.
Você percebe que todos os dados econômicos melhoraram depois que nós entramos no governo? Você já percebeu que a economia voltou a crescer o triplo do que eu imaginava que ela fosse crescer? Embora tenha crescido pouco diante daquilo que eu acho que ela deve crescer. Mas também o investimento sobre capital diminuiu muito. Os investimentos na indústria caíram, agora que está voltando. Nós já tivemos 20 e poucos por cento, agora temos 17, é preciso crescer, é preciso ter investimento. Por isso é que nós fizemos o PAC. É porque o Estado, embora queira ser o Estado empresarial, o Estado tem que funcionar como indutor.
Se o Estado acredita na política que ele está fazendo, ele fala: “eu vou colocar dinheiro”. Se ele colocar dinheiro, os empresários acreditam “é para valer”, também vai colocar dinheiro. E aí quando tudo der certo, a gente faz uma PPP e as coisas vão acontecer como no PAC. Um trilhão e setenta bilhões de investimentos e muitas coisas em harmonia e acordo com os empresários.
Então, isso nós prezamos muito. Ô gente, eu digo todo dia o seguinte, em Hiroshima, em janeiro do ano passado, eu encontrei com a atual diretora-geral do FMI. E ela veio falar pra mim da economia brasileira. Eu falei, querida, deixa eu dizer uma coisa pra senhora. É preciso conhecer melhor o Brasil. O Brasil vai crescer mais do que a senhora está dizendo que vai crescer. E cresceu. Agora mesmo, o mercado sempre precifica desgraça. Sempre, tá sempre trabalhando pra não dar certo. Tá sempre torcendo pras coisas serem piores do que são na verdade.
E a economia vai crescer. Vai crescer mais do que todos os especialistas falaram até agora. E vai crescer por que? Porque tá acontecendo uma coisa que é preciso conhecer. A gente fala muito de macroeconomia, macroeconomia. Mas acontece que tem uma microeconomia funcionando nesse país, atendendo milhões de pessoas. Você tem noção de quanto crédito tem no BNB do Nordeste para quase 4 milhões de pequenos produtores rurais? Você tem noção do significado do Pronaf aumentado com mais dinheiro, com menos juros, pra essa gente investir? Você tá lembrado?
Nós acabamos de aprovar uma medida, anunciamos uma medida, chamada Acredita, que é a maior política de crédito já feita na história desse país. Que vai envolver até um hedge cambial pra garantir ao investidores estrangeiros não ter prejuízo. Que vai garantir um programa de financiamento imobiliário muito grande e que vai ter crédito para pequeno, para médio, para grande. Ô Sakamoto, as pessoas precisam compreender o seguinte, você acha que a Faria Lima tem alguém que quer mais bem o Brasil do que eu? Quem tem interesse em melhorar a vida do povo mais do que eu? Você acha que tem? Vamos ser francos.
Você acha que quando eles estão discutindo o aumento da taxa de juros, eles estão pensando no cara que está dormindo embaixo de uma ponte? No cara que está dormindo na sarjeta? No cara que está morrendo de fome? Não pensam. Pensam no lucro. E o país tem que ter alguém que pense no povo.
Leonardo Sakamoto: Presidente, dentro do que o senhor falou, antes de a gente sair de economia, até porque tem vários outros temas que a gente gostaria de abordar com o senhor, tem um ponto que eu percebi que o senhor respondeu parcialmente. O senhor falou, é claro, que não vai mexer na política de valorização do salário mínimo, está claro. Agora, existe a possibilidade de desvincular o BPC e as pensões do salário mínimo nessa discussão de corte de gastos, ou isso não é possível?
Presidente Lula: Não é, não é.
Leonardo Sakamoto: Não é possível?
Presidente Lula: Não é porque eu não considero isso gasto, gente, pelo amor de Deus.
Leonardo Sakamoto: Beleza, era só para tirar essa dúvida.
Presidente Lula: A palavra salário mínimo é o mínimo, minimorum, que uma pessoa precisa para sobreviver. Ora, se eu acho que vou resolver o problema da economia brasileira apertando o mínimo do mínimo, eu estou desgraçado, cara. Eu não vou para o céu. Eu ficaria no purgatório se eu não levar em conta que… Ô cara, tem uma coisa que eu aprendi, que é o seguinte, uma frase. Muito dinheiro na mão de poucos significa pobreza, significa desnutrição, significa anafalbetismo, significa desemprego. Agora, pouco dinheiro na mão de muitos significa aumento de renda, significa mais consumo, significa mais desenvolvimento, significa mais emprego, mais educação, mais saúde.
Então o nosso lema, Sakamoto, o teu, o meu, da Carla, e de quem está nos ouvindo, é o seguinte: é preciso garantir que todas as pessoas tenham condições de viver dignamente. Por isso nós temos que tentar repartir o pão de cada dia em igualdade de condições. Você acha que eu quero que empresário dê prejuízo? Eu não sou doido. Eu não sou doido porque se ele der prejuízo eu vou perder meu emprego. Eu quero que o empresário tenha lucro. Mas eu quero que ele tenha a cabeça como teve o Henry Ford quando disse: “eu quero que meus trabalhadores ganhem bem pra eles poderem comprar os produtos que eles fabricam”. Se essa filosofia predominasse na cabeça de todo mundo, esse país estava maravilhoso. Mas não é assim que as pessoas pensam.
Ô cara, você... Ô Sakamoto, nós somos tão generosos, tão generosos, que é o seguinte, você percebeu que nós tomamos posse e não ficamos fazendo crítica ao governo anterior? Destruindo o governo anterior. No caso do Fernando Henrique Cardoso eu ainda disse a herança maldita. Mas agora em 2023 não era a herança maldita, era a tri-maldita. O que nós pegamos de rombo na economia brasileira, o que nós pegamos de ministérios desmontados. Eu vou dar um exemplo, a cultura. A cultura é inexistente. Como é que um país pode não ter Ministério da Cultura? Como é que alguém pode dizer que a cultura só ensina coisa ruim?
Então, meu cara, é o seguinte. Nós pegamos esse país e eu falei o seguinte: “eu não vou ficar criticando o meu adversário. Eu vou governar”. Eu tenho quatro anos de mandato, cara. Já tô consumindo um ano e nove meses agora. Um ano e oito meses, não, um ano e sete meses. Então eu tenho dois anos e três meses que eu quero me dedicar, cara. Você não sabe a dedicação que eu tenho. Agora eu vou começar a viajar o Brasil. Se você tiver perna, eu quero ver se você vai me acompanhar a viajar a esse Brasil, para entregar.
No ano passado a gente plantou, semeou a terra, jogou água, plantou a semente. Esse ano é o ano da colheita e nós vamos começar a colher tudo aquilo que nós investimos. Eu vou a Belo Horizonte amanhã anunciar um monte de investimento em universidade. Eu vou anunciar o maior pacote de dinheiro de transmissão que Belo Horizonte já viu na vida. Eu agora fui ao Piauí, eu fui ao Ceará e fui ao Maranhão. E em todos os estados eu faço a seguinte pergunta, eu falo para os jornalistas, eu falo para os historiadores. Eu quero que vocês pesquisem, para vocês me dizerem em que momento histórico um presidente da República veio nesse estado e ofereceu tudo o que eu estou oferecendo.
E falo com muito orgulho, eu falo com muito orgulho o seguinte: eu duvido que em algum momento da história desse país, prefeitos e governadores foram tratados com o respeito que eu os tratei. Duvido. Porque eu nunca levei em conta o partido da pessoa. Eu levo em conta o problema e levo em conta a necessidade do povo. Por isso é que agora eu coloquei 65 milhões de reais para as encostas, lá em Pernambuco, numa cidade em que o prefeito é bolsonarista até os dentes. E ele estava aqui na reunião e eu disse para ele: “Eu estou dando esse dinheiro para você saber que eu não tenho preconceito ideológico e eu vou dar porque o seu povo merece”. Agora, não precisa falar bem de mim, pode continuar falando mal de mim.
Leonardo Sakamoto: Presidente, o senhor falou, eu estou tentando puxar. É que o presidente é bom, ele vai na narrativa, ele vai costurando e é difícil encaixar a pergunta. Então, uma quadra atrás, quando eu estava falando de dignidade, me ocorreu uma questão. A gente viu até a semana passada um debate, tomar conta das redes sociais, tomar conta das ruas, que foi a questão de um projeto de lei que previa mudanças na lei da interrupção da gravidez, mudanças no aborto, para impedir aborto após a 22ª semana de gestação.
Ora, mulheres que são estupradas têm o direito de fazer a interrupção de gravidez em qualquer momento e aí o que aconteceria é que mulheres, meninas seriam proibidas de fazer essa interrupção após a 22ª semana. Isso gerou muita discussão, movimentação, protestos de rua e isso acabou levando, muitos especialistas acreditam que isso levou a uma inédita derrota pública no debate público de uma pauta que era abraçada por ultraconservadores.
E aí a pergunta é, essa inédita derrota muda a forma de articulação ou estratégia do governo para tratar de pautas abraçadas pelos ultraconservadores no Congresso? O que aconteceu aqui muda a forma como vocês podem vir a endereçar pautas ou esse debate no Congresso?
Presidente Lula: Sakamoto, você sabe qual é a vantagem que eu tenho? É que eu disputei muitas eleições e esses temas eram debatidos em todas as eleições. Não se esqueçam que eu perdi em 89, em 94, em 98, e que eu ganhei em 2006, 2010, 2002. Então, tudo isso vinha. É que eu acho que os debates são feitos fora de hora e hora desnecessária. Você já tem uma regulamentação para tratar a questão do aborto. É que tem que ter uma lei que garante. Eu dizia em 82: o aborto tem que ser tratado com uma questão de saúde pública. E eu dizia pessoalmente, eu, Lula, pai, sou contra o aborto. Mas como chefe de Estado eu tenho que tratá-lo com uma questão de saúde pública, porque uma madame que vai fazer um aborto, ela vai na clínica mais cara do mundo e ninguém nem sabe. A pobre tenta furar o útero com uma agulha de tricô. Então, eu conheço o caso de mulher que pegava fuligem de fogão de lenha para tentar colocar na vagina para ver se abortava. Quer dizer, é insano. Então o Estado tem que cuidar disso.
O que eu acho que aconteceu é que o projeto apresentado não era um projeto. Era uma carnificina contra as mulheres. Porque, na verdade, ele estava criminalizando a vítima.
Ele estava querendo que a vítima pegasse tempo de cadeia maior do que o estuprador. Então ainda bem, ainda bem que a sociedade se manifestou, graças a Deus. Ainda bem que as mulheres estão indo para a rua. Esse é um dado importante, cara, as mulheres têm que ir para a rua. Mulher não é mais objeto de mesa e cama em lugar nenhum do mundo, e muito menos no Brasil. Mulher quer ser agente política. Mulher não quer apenas tomar conta da casa e do seu filho, ela também quer trabalhar fora. Ela quer ser cidadã plena. Então, graças a Deus, isso permitiu, essa discussão imbecil feita por um deputado, permitiu que a sociedade se manifestasse. E eu acho que os deputados que fizeram a bobagem sabem do erro.
Leonardo Sakamoto: Mas isso que aconteceu, essa manifestação da rua, dando apoio ao governo, nesse sentido, oposição ao governo, no sentido ser respaldadas, isso, na sua opinião, deve se repetir, deveria se repetir mais vezes na rua?
Presidente Lula: Eu acho que todas as vezes. Eu acho, Sakamoto, que todas as vezes em que alguém tentar fazer alguma coisa que não diz respeito aos interesses da sociedade, eu acho que as pessoas têm que se manifestar. Se você imaginar que a conquista do voto pela mulher no mundo foi uma guerra. Quantas mulheres foram presas por causa de defender o direito da mulher votar? Aqui no Brasil, o primeiro voto de uma mulher se deu no Rio Grande do Norte, e na cidade de Mossoró, ganho na Justiça, em 1934, se não falha a memória.
Ora, então, a gente tem que se manifestar. Sabe, quando as pessoas vão pra rua gritar e defender alguma coisa, e acho isso maravilhoso, porque eu nasci nisso, Sakamoto. Eu nasci nisso, eu nasci na porta de fábrica. Eu nasci fazendo passeata, nasci fazendo a campanha das Diretas, nasci pedindo impeachment do Collor e também lutando contra o impeachment da Dilma. Ou seja, então, eu acho que toda vez que o povo se manifesta é maravilhoso.
Carla Araújo: Ô, presidente, tem uma outra questão que ontem o Supremo Tribunal Federal deliberou sobre a descriminalização do porte da maconha, né? E houve já uma reação no Congresso, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, dizendo que há uma invasão de competência, a Câmara também está se mobilizando nesse sentido. Aí misturando um pouco da questão, digamos, ideológica, em relação à maconha, eu queria saber a opinião do senhor, mas também nessa relação do Congresso com o Supremo. Há essa discussão se um está invadindo a competência do outro e como o senhor, como Executivo, acha que tem que se colocar no meio dessa discussão?
Presidente Lula: Então, aqui é o seguinte, eu vou dar só palpite, porque eu não sou nem advogado e não sou deputado. Mas eu vou dar palpite. Primeiro, eu acho que é nobre que haja diferenciação entre o consumidor, o usuário e o traficante. É necessário que a gente tenha uma decisão sobre isso, não na Suprema Corte, pode ser no Congresso Nacional, para que a gente possa regular. É importante lembrar que o nosso querido ministro Pimenta [Paulo Pimenta, ministro da Secretaria Extraordinária da Presidência da República para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul] foi o relator de um projeto, em 2006, que se transformou em lei, que proibiu, desde 2006, usuário não ser preso. Isso é lei. Esse projeto, que foi votado na Suprema Corte, é da Defensoria Pública de São Paulo. Eu, se um dia um ministro da Suprema Corte pedisse um conselho para mim: “Presidente, o que que eu faço?” Eu falava, recusa essas propostas. A Suprema Corte não tem que se meter em tudo. Ela precisa pegar as coisas mais sérias, sobretudo aquilo que diz respeito à Constituição, e ela virar senhora da situação. Mas não pode pegar qualquer coisa e ficar discutindo, porque aí começa a criar uma rivalidade que não é boa nem para a democracia, nem para a Suprema Corte, nem para o Congresso Nacional. A rivalidade entre quem é que manda, o Congresso ou a Suprema Corte?
Carla Araújo: No caso específico da maconha, o senhor acha que a prerrogativa é do Congresso?
Presidente Lula: Porque eu acho que deveria ser da ciência, não é nem do advogado. Cadê a comunidade psiquiátrica nesse país que não se manifesta e não é ouvida? Eu disse para o Barroso [Luís Roberto Barroso, ministro do STF]. Eu fui uma vez jantar com o Barroso e eu falei: “Barroso, por que você não convoca uma reunião de psiquiatras, de médicos, para discutir esse assunto?” Não é uma coisa de código penal, gente, é uma coisa de saúde pública. Vamos ver o que acontece. O mundo inteiro está utilizando o derivado da maconha para fazer remédio. Tem gente que toma para dormir, tem gente que toma para combater o Parkinson, tem gente que toma para combater Alzheimer. Ou seja, tem gente que toma para tudo. Eu tenho uma neta que tem convulsão. Ela toma.
Então eu fico perguntando o seguinte: se a ciência já está provando, em vários lugares do mundo, que é possível, por que fica essa discussão contra ou a favor? Por que que não encontra uma coisa saudável, referendada pelos médicos que entendem disso, pela psiquiatria brasileira, mundial, pela Organização Mundial da Saúde, alguma referência mais nova para dizer: “é o seguinte, é isso”. E a gente obedece. Por que é que fica essa disputa de vaidade? Quem é o pai de quem? Quem é a tese de quem? Então isso não ajuda o Brasil. Isso não ajuda o Brasil. A decisão da Suprema Corte, se ela tiver uma PEC no Congresso Nacional, a PEC tende a ser pior. Então já tem uma lei, de 2006, o Paulo Pimenta foi relator de um projeto que se transformou em lei que garante que o usuário não é preso, desde 2006. Isso já é lei. As pessoas esquecem. Era só a Suprema Corte dizer: já existe uma lei, não se discute isso aqui.
Leonardo Sakamoto: Presidente, o senhor estava falando, aproveitando o gancho da relação com o Congresso Nacional, na derrubada do veto da lei que proibia as saídas temporárias de presos, do seu veto, o União Brasil, no Congresso, ele, basicamente, no Senado, ele votou inteiro contra, a favor da derrubada do veto, e na Câmara foi praticamente todo mundo também votando a favor da derrubada do veto. Ao mesmo tempo, ou seja, isso se repete em outras votações, você tem não só a União Brasil, como outros partidos também da base, não votando, não entregando para o senhor uma maioria de votos, muitas vezes, em projetos do seu interesse, digo assim. Ao mesmo tempo, no caso do União Brasil, ele entregou para o senhor o ministro Juscelino Filho [das Comunicações], que é um ministro que foi indiciado pela Polícia Federal no caso de desvio de verbas públicas. A pergunta é: essa aliança não está saindo muito cara?
Presidente Lula: Essa aliança tem me permitido governar o país. Não do jeito que eu queria, se eu tivesse 300 deputados meu seria muito mais fácil. Mas o Sarney teve, no período em que ele foi presidente da República, 306 deputados e senadores do PMDB. E 23 governadores de estado e não teve tranquilidade para governar. Ele, inclusive, você tá lembrado, que diminuíram o mandato dele. Diminuíram o mandato dele, de 6 para 5 anos. Então, veja, essa maioria, ela é relativa. A composição que a gente faz, é uma composição, muitas vezes, que ela não atinge a totalidade do partido, mas atinge dois terços do partido, um terço do partido, atinge uma boa parte da bancada. E o que é mais interessante é o seguinte: até agora, nós não perdemos nada vital para o governo no Congresso Nacional. É importante lembrar. Nós conseguimos aprovar uma política tributária, cara, que está há 40 anos para ser votada. Nós aprovamos nesse Congresso.
Então, o milagre da política é esse. É a arte de viver com contrários, a arte de viver democraticamente na diversidade e a arte de você compreender que ninguém é obrigado acatar tudo o que o governo quer. Vamos pegar a questão da saidinha. A saidinha, a unanimidade dos deputados, era contra eu vetar. Todo mundo queria que eu sancionasse. Pensando nas eleições, pensando ideologicamente. “A rede social vai te atacar”. Eu, quando eu estava preso, foram propor um acordo para mim, eu disse: “Eu não troco a minha dignidade pela minha liberdade”. Não me peça isso que eu não troco. Quem me colocou aqui sabe que eu vou ter que sair daqui, mas eu quero sair de cabeça erguida.
Carla Araújo: Qual era o acordo que propuseram ao senhor?
Presidente Lula: Se eu saísse, eles poderiam me liberar e eu ficar em casa com tornozeleira. Eu não quero sair, eu quero ser inocentado. Quando vem a questão da saidinha, para mim, é uma questão de princípio. A gente tem que discutir, Sakamoto e Carla, para que que serve o sistema prisional? O sistema prisional serve para você prender pessoas que cometeram delitos na perspectiva de recuperá-los. Este é o papel do sistema prisional. Eu estou prendendo o Lula porque eu quero recuperá-lo. É isso que é a ideia. Ora, mas se eu prendo de forma indiscriminada, e na hora que você tem uma chance de permitir que a pessoa tenha acesso à família, essa família que é a base da sociedade democrática que nós vivemos, é o principal pilar da democracia nossa, é a família. Ora, então, se o cara está preso, ele tem mulher e filhos, e ele não pode vir fazer uma visita para a mulher e seus filhos um tempo nada, se ele não tiver cometido um crime hediondo, se ele não tiver cometido estupro, se ele não tiver feito nada, sabe, de crime grave, por que ele não pode vir? A família pode tentar recuperá-lo. Por que a gente nega que a pessoa tem o direito à família? Tem coisa mais nobre do que a família, Sakamoto? Tem alguma coisa que você gosta mais do que a sua família? Tem alguma coisa que você respeita mais do que a tua família?
Sabe, então, é importante a gente levar isso em conta. O que eu queria era só isso. A gente não tem nenhum problema. A lei define: o cara que praticou estupro, o cara que praticou crime hediondo, o cara não sai. Mas o cara que cometeu um delito, seja ele qualquer, o cara pode sair e conviver. “Ah, mas 1% foge”. O que que é 1% em 100%? É nada. É nada. Então, por causa de 1%, você pune 99%? Era apenas uma questão de bom senso, apenas uma questão de princípios. Eu falei: “Eu não abro mão de valorizar a família”. Eu valorizo a minha, valorizo a sua e valorizo a da Carla Mas eu quero valorizar a família de todo mundo. Todo mundo tem o direito de se aconchegar na família, até pra pedir perdão.
Leonardo Sakamoto: Não, mas aí que tá. Tem uma segunda parte da minha pergunta, presidente, que é a questão do Juscelino. Porque o custo, na verdade, de um lado…
Presidente Lula: Deixa eu falar o encontro que eu tive como o Juscelino, no Maranhão. Eu te confesso que ele deveria estar apreensivo. Eu tava viajando, sabe, saiu toda a denúncia dele, e era a primeira vez que eu ia encontrar com ele. Deve ter pensado: “Bom, o Lula pode fazer comigo o que o Chávez fazia, mandava ministro embora naquele programa de televisão dele”. O que que eu fiz. Veja, há um pedido de indiciamento da Polícia Federal. Há um pedido de indiciamento que tem que ser aceito ou pelo Alexandre de Moraes [ministro do STF], ou pelo Procurador-Geral da República. Não foi aceito por nenhum ainda, não discutiu. Então, veja, eu, como já fui vítima de calúnia, já fui vítima de difamação, já tive proibido o direito de me defender, não tive direito à presunção de inocência. O que que eu disse para o Juscelino? “Ó, primeiro, a verdade só você que sabe. Só você sabe. Então é o seguinte: se o procurador indiciar você, você sabe que tem que mudar de posição. Enquanto não houver indiciamento, você continua como ministro”.
Carla Araújo: Mas então se ele for, se for aceito o indiciamento, ele vai ser afastado?
Presidente Lula: Ele vai ser afastado. Ele sabe disso.
Carla Araújo: E o senhor já pensa num plano B? Fica com a União Brasil essa pasta?
Presidente Lula: Veja, eu já não sei. Aí nós vamos discutir. Essas coisas, você sabe...
Leonardo Sakamoto: Como é que ele recebeu essa colocação do senhor que se for indiciado?
Presidente Lula: A informação que eu tive é que ele ficou agradecido, sabe, de eu dizer pra ele: “todo mundo pra mim é inocente, até que se prove contrário”. A minha filosofia não é que todo mundo é ladrão até se provar a inocência.
Leonardo Sakamoto: Sim, mas com relação à questão do indiciamento, que o senhor falou que se for indiciado...
Presidente Lula: Mas eu tenho caso específico no meu governo. Eu afastei o Alfredo [Alfredo Nascimento, ex-ministro dos Transportes], que era um dos grandes companheiros meus, porque ele foi indiciado. E todo mundo sabe que tem que ser assim. Aliás, eu acho que o próprio ministro tem que tomar iniciativa e falar: “presidente, eu vou deixar o senhor governar em paz”. E ainda vamos conversar.
Você sabe porquê que eu não gosto de participar de discussões, Carla? Porque eu aprendi de que a gente deve discutir sempre o importante, o principal. O resto fica pra depois. Então, veja, quando se apresentar um fato concreto, eu vou me reunir com as pessoas do União Brasil. E vou saber se eles querem continuar, se não querem continuar. Muito simples, sim. Ô, Carla, eu não sei se eu posso dizer isso pra vocês, mas eu acho que, na vida da gente, a gente chega um momento que a gente atinge a idade da maioridade. Em que tudo pra mim é tão tranquilo, tudo pra mim é tão normal, que eu falo pra Janja: “eu não tenho momento de perda de sono”. Eu durmo todo santo dia sabendo dos problemas do Brasil, sabendo que eu tenho uma missão de tentar resolvê-los e que estou tentando fazer dentro dos limites do possível. Então eu não me preocupo com nada, com briga com o Congresso, com briga com o Senado, com briga... Tudo isso faz parte do jogo político e, na medida que eu entrei na política, eu tenho que tentar resolver isso e conversar. A gente não conversa só com o que a gente gosta, a gente conversa com quem a gente não gosta também.
Então é isso que me faz, Sakamoto e Carla, ter a certeza. Pode ter certeza em uma coisa, Carla. Em 2002, quando eu disputei as eleições com o Serra, eu tinha tanta certeza que eu seria presidente da República, eu tinha tanta, mas era tanta certeza assim, era uma certeza, uma fé absoluta. Que quando eu fui para o segundo turno, o meu comitê ficou nervoso, Duda Mendonça ficou nervoso, não sei das quantas e tal. Eu falei: “gente, os astros já precificaram, eu vou ser o presidente da República”. Não fique nervoso E fui. Eu só voltei para a presidência, Sakamoto, eu só voltei. Quando eu saí da presidência eu tinha 85% de ótimo, 87% de bom e ótimo, 10% de regular e 3% de ruim e péssimo. Eu sempre achei que se eu voltasse, eu empatasse ou perdia. E eu voltei. Eu voltei sabe por quê? Porque eu tenho consciência de que eu tenho condição de resolver o problema desse país. Eu tenho consciência. Tenho consciência que eu tenho condição de resolver o problema desse país conversando com todo mundo. Eu não tenho inimigo. As pessoas podem não gostar de mim, mas eu não tenho inimigo. Eu trato todo mundo com muita deferência, com muito respeito. Eu quero que os banqueiros ganhem dinheiro, eu quero que os empresários ganhem dinheiro, mas eu quero que os trabalhadores ganhem dinheiro. Essa é a diferença básica, Sakamoto.
Então, por que eu não me preocupo com pesquisa? Quando começou a sair as primeiras pesquisas, o meu ministro da comunicação veio nervoso: “presidente, pesquisa…” Eu falei, mas é normal essa pesquisa. É normal. Vamos ver o seguinte, quando você ganha uma eleição, você tem um programa de governo. Então, durante o processo eleitoral, você gera uma expectativa. No primeiro ano, o povo não te cobra nada, porque o primeiro ano ele sabe, porque ele muda de casa sempre e ele sabe que você, quando chega em uma casa, tem que arrumar a casa antes. Agora, no segundo ano, ele começa a ter expectativa de que as coisas estejam cumpridas. Eu falei para o Pimenta: “o que é que nós entregamos até agora? Nada”. Nós fizemos 96 reuniões aqui dentro do palácio, rearrumamos o governo, reorganizamos o governo, decidimos as políticas públicas que nós vamos fazer, e quando você decide a política pública, é uma semente. Você define, você planta, e demora um tempo.
Leonardo Sakamoto: O senhor acha que ainda falta uma marca para o seu governo, da mesma forma que foi o Bolsa Família em 2003?
Presidente Lula: A minha marca é recuperar a democracia desse país. Minha marca é recuperar a decência e o respeito desse país. Esse país era pária mundial. Ninguém queria receber o Brasil. Ninguém confiava no Brasil. Ninguém queria vir aqui. Eu, depois que voltei, esse Brasil voltou. Pergunta para os meus inimigos que viajam. Pergunta para os empresários que viajam. O que é ser residente num país governado pelo Lula e ser residente num país governado pela loucura que passou por esse país?
Carla Araújo: O senhor nem gosta de falar do nome do ex-presidente Jair Bolsonaro, né? Mas voltando à questão ligada ao indiciamento do Juscelino, o Bolsonaro está sendo investigado por uma série de supostos crimes e há uma expectativa de que ele seja indiciado, em breve, pelo menos no caso da falsificação do cartão de vacina e das joias. E ainda tem um outro inquérito, que também está para ser encerrado, sobre a suposta tentativa de golpe. Na sua opinião, o ex-presidente Jair Bolsonaro cometeu esses crimes e deve ser preso por esses crimes?
Presidente Lula: Deixa eu ter uma coisa para você. O que eu defendo pra ele, eu defendo pra mim. Que ele tenha o direito à presunção de inocência. Que ele tenha o direito de se defender. E que ele seja ouvido. É só isso que eu defendo. É o que eu queria pra mim. Eu queria ter o direito de estar preso, que eu não tive. Você sabe que eu fui condenado e o crime que eu cometi foi fato indeterminado. Esse é o crime que eu cometi: fato indeterminado. Esse é o crime que eu cometi. Então, eu quero que ele tenha, total, não quero que ele seja condenado, que ele seja inocentado, eu quero que ele seja julgado corretamente. Com direito de defesa e que prevaleça aquilo que a justiça encontrar. Sabe que ele tentou dar o golpe? Tentou. Isso é visível. Sabe? É visível.
Carla Araújo: No caso das joias, por exemplo, há uma mudança na regra, mas o senhor também recebeu joias em governos passados que ficaram com o senhor, no caso, há uma suspeita de comercialização. Como que o senhor pensa nesses presentes?
Presidente Lula: Deixa eu te falar uma coisa: presidente da República não ganha joia. Presidente da República ganha presente. E presentes, a maioria, é coisa de…. Tem até uma piada que a gente conta que os presentes que a gente ganha, sabe, o ex-presidente é que nem um vaso japonês, ou seja, quando você está num palácio, ele cabe em qualquer lugar, mas quando você deixa o palácio e volta pra casa, não cabe, você tem que jogar fora. Então, eu estou com doze contêineres, doze, de coisas que eu ganhei, apodrecendo lá no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, porque nós não temos, e eu também não me preocupei com isso, de fazer… Eu queria fazer um museu, sabe, não foi possível fazer um museu, e depois dessa quantidade de processo atrapalharam muito a minha vida, mas tá lá. Mas eu acho que se o cara ganhou joia, joia não é presente de um presidente para outro, joia tem alguma coisa errada. Como eu também defendo a presunção de inocência, eu quero que ele seja julgado da forma mais honesta possível, que ele seja, se defenda, e que o veredito seja em função do crime, do tamanho que ele cometeu. Eu não desejo mal pra nenhum adversário, eu não desejo evitar a disputa política de nenhum adversário, eu quero que dispute, o povo é que julga. É só isso que eu quero. Eu não tenho mais idade. Quando você guarda rancor, você ataca, ataca, sabe, o teu interior. Se você não dorme bem, você está com ânsia, você está... Não, então eu brinco sempre com o seguinte: quando eu quero saber que alguém vai ficar com raiva de mim, que tem algum artigo contra mim, eu mando ligar pro jornalista e falar o seguinte: “o Lula não leu o teu artigo”. E é pra ele ficar puto, porque eu não li o artigo dele.
Carla Araújo: O senhor leu?
Presidente Lula: Porque se eu leio...
Leonardo Sakamoto: Mas o senhor leu?
Presidente Lula: Não posso dizer.
Leonardo Sakamoto: Presidente, deixa eu aproveitar o gancho. Quando eu falei com o senhor, em outubro de 2019, ainda na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, sobre as eleições municipais naquele ano, no ano seguinte, o senhor disse que o PT tinha que ter candidato em todas as cidades importantes. Naquele momento, o PT não levou nenhuma capital. Agora, membros do seu partido têm defendido um foco em cidades com chance de vitória. Por que a estratégia mudou?
Presidente Lula: Olha, veja, primeiro porque a gente tem que aprender, cada eleição é uma eleição, é uma história, e a gente tem que saber que um partido é como um time de futebol. Tem época que você tá na qualidade do Real Madrid, e tem época que você tá na qualidade do Corinthians. Então, a depender do momento, você lança mais candidato ou lança menos candidato. Eu acho que a gente vai ter candidato nas cidades em que a gente tem perspectiva de disputar, em algumas com aliados importantes. E algumas com aliados importantes para que a gente possa fazer o grande debate. Eu, por exemplo, Sakamoto, tenho uma decisão, eu vou participar em algumas cidades, eu não vou participar da campanha como todo. Eu posso gravar alguma coisa de noite para algum candidato, mas eu tenho que levar em conta que eu tenho uma base heterogênea. Então eu não posso, por conta de uma eleição municipal, atrapalhar a governança nacional. Então eu tenho que levar isso muito em conta, com muito cuidado. E isso serve para a gente… A gente aprende com a política isso. Eu brinco agora com os meus adversários o seguinte: eu sou político. E só tem dois presidentes mais experientes do que eu na história desse país. Um é o Dom Pedro II, que foi imperador durante 69 anos. E outro, Getúlio Vargas, que governou 15 anos e depois mais quatro. Eu agora estou com doze.
Carla Araújo: Então, já perguntando de 2026, o senhor já disse que se tiver saúde, se precisar evitar uma derrocada da democracia, pode ser candidato à reeleição. No cenário que está posto hoje, o ex-presidente Jair Bolsonaro está inelegível. E o senhor até recentemente citou o ex-governador de São Paulo, desculpe, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, como uma figura que pode ter essa ambição em 2026. Eu queria perguntar para o senhor se o senhor acha que o Tarcísio é o bolsonarismo moderado, como está se tentando colocar.
Presidente Lula: Primeiro que eu não vou julgar o Tarcísio. E, quando eu citei o Tarcísio, não é só o Tarcísio. O bolsonarismo tem a perspectiva de ter quatro candidatos, pelo menos das pessoas mais proeminentes. Ele tem o Tarcísio, que é o governador do estado mais importante. Ele tem o Zema, que é o governador do segundo estado mais importante. Ele tem o Caiado, que está se oferecendo todo dia para ser o candidato. E tem o Ratinho, do Paraná. Isso não precisa ser inteligência. Isso não é uma sacada inteligente minha. “O Lula descobriu quatro pessoas”. Não. São governadores de estados importantes que podem ser candidato. Não sei se serão. Sinceramente, eu não sei se serão. Eu tenho pouca relação com o Tarcísio. Tenho pouca relação com o Tarcísio. Espero que ele não tenha preocupação e que ele esteja junto comigo em alguns eventos. Eu estou indo para São Paulo no sábado. Eu vou para a Zona Leste. Eu vou anunciar a Faculdade da Zona Leste. Eu vou anunciar o instituto da cidade de Tiradentes. Eu vou anunciar o Instituto Federal em Santo Amaro, no Jardim Ângela, que era o lugar mais violento de Santo Amaro. Eu vou anunciar o instituto em Osasco. Vou inaugurar a Universidade de Osasco. Vou anunciar o instituto em Diadema. Vou anunciar o instituto em Mauá. Vou anunciar o instituto em Carapicuíba. Vou anunciar o instituto em Cotia. Vou anunciar o instituto em Franco da Rocha. Vou anunciar o instituto em Ribeirão Preto. E se ele quiser estar junto, ele será convidado.
Leonardo Sakamoto: Presidente, nosso tempo está acabando.
Presidente Lula: Porque vocês querem. Eu tô aqui.
Carla Araújo: A gente não quer, não. Se a gente puder estender, a gente tem mais uma série de perguntas.
Presidente Lula: Mas, se tiver pergunta interessante, faça as perguntas.
Carla Araújo: Temos várias. Sempre interessantes.
Leonardo Sakamoto: Presidente, uma pergunta um pouco sobre a solidão do poder. Quantas pessoas, na sua avaliação, quantas pessoas do seu entorno — não estou falando de nenhum caso específico, estou buscando só para o senhor refletir e responder para a gente. Quantas pessoas do seu entorno têm a plena liberdade, e por que não dizer, a coragem, de chegar para o senhor e dizer: “Presidente, o senhor está errado”.
Presidente Lula: Deixa eu dizer uma coisa para você. Pode ter muita gente que pense em dizer, mas muita gente que não tem coragem de dizer, porque não é correto dizer. Mas deixa eu lhe falar uma coisa. Eu trabalho com muita lealdade e liberdade com as pessoas que eu escolho para trabalhar comigo. Então as pessoas que trabalham comigo, trabalham comigo por uma relação de confiança. As pessoas podem dizer para mim o que quiserem. Eu nunca abro uma reunião falando o que eu penso. O primeiro quero ouvir o que as pessoas pensam. Depois que todo mundo fala, eu falo. Então é assim que eu faço. Por exemplo, eu convido pouca gente para ir em casa. Porque como tem muito ministério, se eu não convidar um, não convida outro, aí vai criando uma certa ciumeira. Então, na maioria das vezes, eu fico sozinho com a Janja. Como eu ficava sozinho com a Dona Mariza, porque quando eu tinha meu filho, meu filho vinha aí por causa dela. Mas agora não, agora eu fico muito tempo sozinho. Como eu trabalho muito durante a semana, também quando chega no sábado e domingo eu quero descansar um pouco. Às vezes eu pesco. Sou bom pescador. Tenho peixe lá na Alvorada. Sabe?
Carla Araújo: Agora, presidente, continuando essa pergunta do Sakamoto, por exemplo, pensando nos seus ministros, nessa sua equipe que o senhor pede aconselhamento. Há algumas divergências, e a gente sabe, principalmente entre o ministro da Casa Civil e alguns outros ministros, mais especificamente o ministro Fernando Haddad, da Economia. Como é que o senhor faz? Quem dos dois fala a verdade para o senhor? Quem dos dois pesca mais, senhor? Quem dos dois o senhor convida mais para ir para o Alvorada? Como é que é essa relação?
Presidente Lula: Não, nenhum dos dois nunca foi à Alvorada. Vão para reunião. Deixa eu falar uma coisa. Primeiro, eu tenho que compreender o papel do ministério chefe da Casa Civil. Ele tem um papel que, obviamente, coloca ele em confronto com vários outros ministros. Por quê? Porque a primeira demanda que vem para o presidente da República passa pela Casa Civil. É a Casa Civil que faz a primeira discussão. Aí a Casa Civil traz para mim, em duas situações: ou quando tem um acordo e está tudo correto para me referendar, ou quando tem uma divergência crônica que alguém tem que decidir. Aí eu decido. Então as pessoas, às vezes, ficam nervosas. Embaralham e falam, não, mas isso aqui não é o correto, isso aqui... As pessoas ficam nervosas. E quando não vem assim, as pessoas me procuram. Então o Rui faz o papel dele da Casa Civil, consegue dizer não, e eu, como presidente, faço o aconchego das pessoas, o carinho necessário.
Leonardo Sakamoto: Policial bom e policial mau.
Presidente Lula: Esse é o papel da Casa Civil. O papel da Fazenda, ou seja, o Haddad é uma pessoa muito importante para mim. Muito importante para o país. E eu quero muito bem o Haddad. Então, obviamente que nós temos divergência. Eu nem sempre comungo com tudo que o Haddad pensa, e quero que ele não comungue com tudo que eu penso. E é importante que a gente tenha liberdade de dizer um para o outro. Isso pode, isso não pode, isso eu concordo, isso eu não concordo. Sabe? Isso é saudável. Agora o Haddad é um companheiro que tem 100% da minha confiança. O Rui tem 100% da minha confiança. Aliás, os meus ministros todos têm muita confiança. Porque eu montei uma equipe boa. Eu vou lhe contar uma história, Sakamoto. A minha experiência de trazer os companheiros, sabe, com experiência de governo de estado — e eu tenho os melhores do Brasil aqui — é uma experiência muito rica. Os ministros que foram o Camilo [Camilo Santana, ministro da Educação], o Wellington [Wellington Dias, ministro Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome], o Rui, o Renanzinho [Renan Filho, ministro dos Transportes], o Waldez [Waldez Góes, ministro do Desenvolvimento Regional]. Ou seja, era o Flávio Dino [ministro do STF, ex-ministro da Justiça], é uma penca de gente da mais alta qualidade.
Carla Araújo: Não está faltando mulher aí não, presidente?
Presidente Lula: Não, tá faltando mulher aqui. Isso é um problema. Um problema crônico que é meu dia a dia. Eu discuto isso todo dia com a Janja. É porque nem sempre, como a mulher não teve a participação ativa durante muito tempo, fica mais difícil você encontrar mulher para determinados cargos e fica mais difícil você encontrar negro para determinados cargos. Não é que não tenha. É que a oferta é menor na medida em que, embora seja a maioria da população, não tiveram uma participação política histórica mais contundente. Então, eu quero mais mulher no governo, preciso de mais mulher no governo, eu preciso de mais negro no governo, eu preciso que o governo tenha a cara do Brasil, sabe, a cara do Brasil.
Eu fui na USP, outro dia, eu fiquei maravilhado de ver que a USP antigamente era só de branca, agora a USP está mesclada, sabe, e inclusive gente da periferia, muita gente. Eu achei isso extraordinário. Esse é o Brasil que eu quero, Carla, esse é o Brasil que eu sonho. Um Brasil feliz, um Brasil para frente, um Brasil sem ódio. Eu não tenho nenhum problema de ter divergência, o que eu acho é que tem que ter respeito. Eu posso divergir de você, Carla, mas eu tenho que te respeitar como ser humano, como gente. E você me respeita. Eu não posso levantar nenhuma leviandade contra você. Eu não posso ser vítima de leviandade. Você não pode dizer para uma pessoa coisas que você não pode provar. Você diz por dizer? Então eu, graças a Deus, eu melhorei muito. Eu acho que me aprimorei e eu acho que a vida me ensinou muito.
Carla Araújo: Presidente, eu vou fazer a minha última e o Saka faz a última. Eu só queria voltar um ponto. O UOL destacou, em reportagens, foragidos do 8 de janeiro foram encontrados na Argentina e no Uruguai. Há uma questão já agora diplomática, a Polícia Federal e o STF avaliam o pedido de extradição. O senhor ainda não conseguiu se encontrar com o presidente da Argentina, Javier Milei, e agora é uma questão diplomática. O senhor defende a extradição desses foragidos que agora estão usando o discurso de serem foragidos políticos, né?
Presidente Lula: Olha, primeiro você tem que ter em conta que dos que estão lá, eu não sei o número, 60, 65 pessoas, você tem uma parte já condenada. Essa parte, tanto o meu ministro Lewandowski [Ricardo Lewandowski, ministro da Justiça e Segurança Pública] quanto o Andrei da Polícia Federal e mais o Mauro Vieira [ministro] do Itamaraty estão discutindo para ver o seguinte: se esses caras não quiserem vir, que eles sejam presos lá. E fiquem presos na Argentina, se não, venham para cá. Nós estamos tratando da forma mais diplomática possível.
Eu não conversei com o presidente da Argentina porque eu acho que ele tem que pedir desculpas para o Brasil e a mim. Ele falou muita bobagem. Eu só quero que ele, sabe, peça desculpas. Eu quero, a Argentina é um país que eu gosto muito. A Argentina é um país muito importante para o Brasil. O Brasil é muito importante para a Argentina. E não é um presidente da República que vai criar uma cizânia entre o Brasil e a Argentina. O povo argentino e o povo brasileiro é maior do que os presidentes. Eles querem viver bem, querem viver em paz. Então, se o presidente da República da Argentina governar a Argentina, já tá de bom tamanho, não tem que governar o mundo.
Leonardo Sakamoto: Presidente, a gente vai estar encerrando a entrevista. A gente recebeu dezenas, centenas de perguntas dos leitores, né? E uma pergunta que era interessante que ela... Agora é só, deixa... Anotem aí, por favor. Mas só para colocar para o senhor que uma pergunta se repetiu muito, muito, que foi sobre as escolas cívico-militares. Porque, no ano passado, o senhor revogou a política nacional das escolas cívico-militares, que tinha sido implementada pelo governo anterior, e aí uma série de governadores passaram a implementar a política de semelhança.
Presidente Lula: Uma série, não. Alguns governadores. Muito poucos.
Leonardo Sakamoto: Mais do campo ligado ao governo anterior. E eu queria que o senhor avaliasse isso.
Presidente Lula: Deixa eu lhe falar uma coisa. A meninada faz um curso numa escola militar, sabe, e muitos querem seguir carreira de militar. O que nós, enquanto governo, temos que cuidar é da educação desse país como um todo. Nós estamos nesse momento preocupados em escola de tempo integral para todas as crianças de idade escolar nesse país. Nós estamos hoje preocupados em evitar que alunos do ensino médio desistam da escola. Nós temos 500 mil alunos desistindo porque tem que trabalhar para ajudar a família. E nós criamos um programa chamado Pé-de-Meia, para dar uma bolsa para ele de 9 mil reais em 3 anos, 200 reais por mês durante 10 meses. Se ele frequentar 10 meses de escola e se ele tiver passado a prova, ele recebe mil reais. Porque a gente quer que esse garoto estude. Estude. Porque somente estudando é que esse país vai pra frente. Não existe exemplo de país no mundo que se desenvolveu antes de investir na educação. Então nós vamos investir na educação. Militar vai para a escola militar. O povo brasileiro vai para uma escola pública, uma escola de qualidade. Eu estou muito à vontade, sabe, Sakamoto? Civil.
Estou muito à vontade pelo seguinte: eu sou o único presidente da república que não tem diploma universitário. E sou o presidente da República que mais fez universidade, mais fez extensão universitária, mais fez Institutos Federais. Agora esse ano é mais 100 Institutos Federais. Porque tudo que eu não tive direito quando eu era adolescente, eu quero que o povo tenha. A minha marca é essa. Tudo que eu não tive, porque a minha mãe não podia, ao invés de ficar ressentido e magoado, eu quero que o povo tenha. As pessoas mais humildes têm que ter educação de qualidade, têm que ter curso profissional, têm que ter escola de tempo integral, porque senão esse país não vai para a frente. E eu voltei para a presidência para tentar ajudar o país a ir para a frente. E vou ajudar. Pode ter certeza. Eu quero que você já deixe antecipado comigo uma entrevista para quando eu chegar, em dezembro de 2026, dizer para você o que eu fiz nesse país. Eu fui o único presidente, Carla, que quando terminei, em 2010, registrei em cartório tudo que eu fiz nesse país. Está registrado em cartório. Tudo que eu fiz nesse país. E, agora, você tem um programa, ComunicaBR, que você pode entrar. Em que cidade você nasceu?
Leonardo Sakamoto: Em 1977.
Presidente Lula: Que cidade?
Leonardo Sakamoto: São Paulo.
Presidente Lula: Então você quer saber o que o Governo Federal faz em São Paulo? Entra no site ComunicaBR que você vai saber o seguinte: o Governo Federal, nesse país. O Governo Federal, eu vou chegar na cidade agora, quando eu for uma cidadezinha pequenininha, sabe? Imagina uma Quixeramobim, Terra do Genoíno, no Ceará. Quando eu chegar lá, eu vou entrar no Comunica Brasil e vou dizer quantos médicos tem lá no Governo Federal, quantos agentes de saúde, quantas pessoas recebem BPC, quantas pessoas tem no Bolsa Família, quantas obras tem lá, quantos dinheiro federal tem lá. Tudo. Tudo. Porque quem faz política social nesse país chama-se Governo Federal. E diga governo Lula, o governo Dilma e o governo do PT. É quem faz política social nesse país. Por isso que eu digo, eu não quero governar, eu quero cuidar. Cuidar. A palavra-chave é cuidar das pessoas. Cuidar com carinho, sabe? Fazer um chamego nas pessoas, fazer uma carícia nas pessoas, porque as pessoas estão precisando, as pessoas estão muito sofridas.
Ô, Carla, eu fui inaugurar um conjunto habitacional, que era para ter sido inaugurado em 2018 e não foi. Então deixaram o povo seis anos esperando a casa, porque um canalha qualquer, sei lá quem, não quis inaugurar a casa. Nós temos 87 mil casas de 2012, 2013, que não foi inaugurada. Nós temos 6 mil creches. Então gente, esse país foi abandonado, isso aqui é como se fosse a Faixa de Gaza, quando nós chegamos aqui, sabe? E nós estamos reconstruindo da forma mais civilizada, bonita, e vamos trazer... Então eu estou desafiando você e a Carla. Em dezembro de 2026, eu quero que vocês façam uma entrevista comigo para a gente fazer uma avaliação do que aconteceu nesse país.
Carla Araújo: Não, está marcado, presidente, a gente vai cobrar. Aí agora a gente vai encerrar, mas, a última, o senhor falou de cuidar, o senhor tem cuidado da saúde? Está fazendo exercício, como é que está essa rotina?
Presidente Lula: Cuido, cuido da saúde.
Carla Araújo: Todos os dias? Caminhada?
Presidente Lula: Se tem uma coisa que eu me cuido, eu faço caminhada, faço musculação.
Leonardo Sakamoto: Mas com o Corinthians na parte debaixo da tabela não ajuda muito o coração, né?
Presidente Lula: Quando eu quero ver o Corinthians, eu viro a tabela de ponta cabeça.
Carla Araújo: Obrigada, presidente. Em nome do UOL, eu queria agradecer a sua entrevista e já dizer então, para todos, que já está comprometido, viu, Crispiniano [José Chrispiniano, secretário de Imprensa da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República]. Em dezembro, a gente marca uma nova entrevista. Obrigada.
Leonardo Sakamoto: Obrigado, presidente.
Presidente Lula: Obrigado, Sakamoto.
Carla Araújo: Obrigada, Sakamoto. Obrigada a você que acompanhou a gente aqui até agora. Até a próxima.