Entrevista do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, à emissora RTP, em 24 de abril de 2023
Entrevistador: Presidente Lula, na última vez que me encontrei consigo, você estava na prisão de Curitiba, condenado por corrução. Agora de novo presidente do Brasil. O que é que isto quer dizer no seu país?
Presidente Lula: Olha Paulo, quando você me visitou, eu estava numa situação extremamente difícil porque eu fui vítima possivelmente, da mais grave mentira já contada na política brasileira. Foi uma tentativa de me tirar da eleição, conseguiram me tirar da eleição, e eu aproveitei a cadeia para fazer um exercício de paciência, um exercício de consciência para me preparar porque eu tinha muita, mas muita certeza que eu ia voltar a ser Presidente da República. Eu tinha vontade de voltar a ser Presidente da República porque era preciso consertar o Brasil. Não sei se você sabe Paulo, o Brasil que nós construímos, em 2 mandatos, em 3 mandatos e meio do governo do PT, um país que teve a maior inclusão social da história do Brasil, tudo isso foi desmontado. Então, eu tinha que reconstruir isso e estou reconstruindo.
Entrevistador: Mas até que ponto é que a democracia brasileira está sólida? Embora distintos, eu vou lhe dar dois exemplos: o assalto e vandalização das instituições democráticas recentemente e a remoção de contas e postagens nas redes sociais, por ordem da Justiça durante a campanha eram de direita, mas amanhã podem ser de esquerda.
Presidente Lula: Olha, primeiro as instituições democráticas funcionaram perfeitamente bem durante o processo eleitoral, graças ao comportamento do Tribunal Superior Eleitoral, a gente teve a eleição garantida de uma certa forma, mais equilibrada. Mesmo assim, houve muito abuso de recursos. Não sei se você já tem informação, mas, segundo o meu ministro da Fazenda, foram utilizados, durante o ano eleitoral, quase que 60 bilhões de dólares para disputar as eleições. Isso com o dinheiro distribuído em obras e emendas parlamentares, ou seja, houve um abuso que nunca houve na história do Brasil para se tentar ganhar uma eleição. E terminou que nós ganhamos as eleições, e nós agora estamos fortalecendo o funcionamento das instituições republicanas, das instituições democráticas no Brasil. E nós estamos nesse momento trabalhando uma relação muito forte com o Congresso Nacional. Toda vez que me pergunto se eu tenho uma base eleitoral sólida, eu falo que eu tenho quinhentos e treze deputados e oitenta e um senadores.
Entrevistador: Mas já agora, sobre isso, o seu governo não tem a maioria no Congresso. Como é que concilia interesses e visões, por vezes tão diferentes? Isto não obriga a contemporizar demais? A ter que engolir sapos, como nós dizemos aqui em Portugal? E eu vou lhe dar o exemplo: tem o caso um ministro suspeitos de usar bens públicos para fins privados e tem a agora o caso do chefe de segurança interno que teria sido conivente com o assalto a Brasília.
Presidente Lula: Olha Paulo, o fato de você não construir a maioria parlamentar num país que teve uma disputa eleitoral com quase 30 partidos, te obriga a exercitar a democracia com mais ousadia, com mais competência, com mais capacidade de conversar. Porque quando um Presidente da República manda um projeto de lei para o Congresso Nacional, este projeto de lei tem o pensamento das pessoas que trabalham com o Presidente da República e a visão que as pessoas que trabalham com o presidente têm. Os deputados não são obrigados a concordar com aquele pensamento, eles podem querer fazer uma emenda, eles podem querer mudar, e é aí é que entra a arte de conversar. A arte de tentar convencer, a arte de ser convencido e tentar extrair dessa conversa aquilo que é melhor para o povo brasileiro.
Os negacionistas da política, aqueles que não acreditam na política, eles partem do pressuposto de que você faz muita concessão, que não pode ter negociação, que você tem que ser duro, o governo não pode ter político, o Ministério não podem ter político. Isso é uma mentira, uma barbárie antidemocrática. Porque primeiro, eu tenho dito o seguinte: não podemos negar a política. Todo mundo que começa a negar a política, sabe, efetivamente está caminhando para um pensamento fascista, para um pensamento autoritário, porque a política é a arte do exercício da democracia. E é muito importante que a gente possa ter capacidade de conversar com os contrários, com aqueles que não pensam como você. Eles têm o direito de dizer para você o que pensam, têm o direito de interferir num projeto de lei que você manda para o Congresso Nacional.
Entrevistador: Justamente presidente, o Brasil ainda é um país muito polarizado e esta desunião não é um obstáculo ao seu governo?
Presidente Lula: É bem possível que a gente tenha mais dificuldade em função dessa polarização. Mas veja, o mundo inteiro está polarizado, não tem país no mundo que não esteja polarizado. Ou seja, o que é importante é que a gente utilize essa polarização para conversar com a sociedade sobre as dúvidas que ela tem da política, as dúvidas que ela tem no programa do governo. Eu, nos primeiros 100 dias de governo, me dediquei a recuperar todas as políticas públicas que tínhamos feito de inclusão social no meu tempo de governo. Todas já foram recuperadas. Agora, no mês de maio, eu vou lançar um programa de desenvolvimento do país. Eu já fiz três reuniões com governadores de Estado, já fiz duas reuniões com todos os reitores das universidades brasileiras e agora vou fazer reuniões com os prefeitos. Por que isso? Porque isso é o começo da criação de uma política de diálogo, que vai permitir a gente diminuir a polarização nesse país e construir um pensamento majoritário, para que a gente possa fazer o povo brasileiro voltar a ser aquele povo generoso que sempre foi, aquele o povo, sabe, que gosta de música, de futebol, de ser alegre, de ser educado e que perdeu isso por conta de um presidente fascista, que governou o Brasil por quatro anos.
Entrevistador: Agora deixe-me colocar então uma questão que relacionada com isso que acabou de dizer. A corrupção corrói a democracia, abre estradas ao discurso populista e demagógico e os seus adversários ainda colam isso a você, apesar da justiça brasileira ter anulado as suas condenações. Nesse sentido, qual é a responsabilidade dos eleitos na ascensão da extrema direita e que é que está a ser feito no Brasil para combater a corrupção?
Presidente Lula: Primeiro, veja, nós temos hoje a consciência política de que a corrupção sempre foi utilizada como instrumento de combate eleitoral em quase todas as eleições brasileiras, em quase todas. É importante saber que um presidente importante no Brasil se matou em 1954 por denúncia de corrução e até hoje não provaram a corrupção contra ele. É importante lembrar que Juscelino Kubitschek foi acusado de ter um apartamento no Rio de Janeiro e nunca encontraram esse apartamento do Juscelino Kubitschek. Eu fui acusado de ter uma chácara que não era minha e ter um apartamento que não era meu. Ou seja, depois de tantos anos, depois de quinhentos e oitenta dias preso, não acharam esse apartamento meu, não acharam escritura, não acharam documento. O apartamento já foi vendido, ou seja, aos poucos a gente vai tentando mostrar pro povo que é preciso ele fazer a separação do joio do trigo quando essa denúncia for feita. Nós temos uma controladoria....
Entrevistador: ...Mas presidente, deixa eu colocar essa questão porque na ascensão da extrema direita não houve também uma cota, uma parte de responsabilidade dos partidos tradicionais, entre eles o PT, neste caso da....
Presidente Lula: ...Eu vou chegar lá Paulo, eu vou chegar lá. Primeiro, nós montamos uma estrutura de governança em que nós temos uma Procuradoria Geral da República, que foi transformada em ministério no meu governo, para que a pessoa que está lá tenha até mais autoridade. Em cada ministério do meu país tem alguém da Controladoria Geral da República que fiscaliza a conta daqueles ministérios. Nós temos um Tribunal de Contas que funciona perfeitamente bem hoje, muito aprimorado, que muitas vezes corrige qualquer possível erro que a gente faça na construção de uma obra. E nós temos a imprensa e a sociedade para fiscalizar. Eu acho que todos os partidos políticos têm responsabilidade com a imagem que o povo cria do Congresso Nacional. Nós tivemos agora há pouco no Brasil uma coisa chamada orçamento secreto, em que praticamente o presidente da República não dominava mais o orçamento. Eram os deputados que cuidavam do orçamento e nós, antes de tomar posse, aprovamos uma PEC de acordo com a Câmara e com o Senado e acabamos com esse orçamento secreto para dar mais visibilidade. Nós agora estamos fazendo um PPA que é o Plano Plurianual do governo, que vai ser apresentado em agosto ao Congresso Nacional, ouvindo praticamente toda a sociedade brasileira. Nós vamos levar para a Câmara uma proposta de orçamento que foi discutida com grande parte da sociedade brasileira.
Entrevistador: Presidente durante a campanha, você disse que vai acabar, mais uma vez, com a fome no Brasil, as palavras são suas. Como é que vai fazer isso considerando que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo?
Presidente Lula: Olhe, nós temos hoje praticamente trinta e três milhões de pessoas passando fome, e eu assumi o compromisso de que nós vamos acabar com a fome e vamos garantir que esses trinta e três milhões de brasileiros possam...
Entrevistador: ...Mantendo as contas do Brasil certas?
Presidente Lula: Não tem problema nas contas do Brasil. O Brasil é um país que tem um orçamento razoável. O problema do Brasil é que o orçamento é mal distribuído, sempre é mal distribuído. Ou seja, quando você aprovou uma lei no governo Temer, que aprovou o teto de gastos, significava que você estava limitando o gasto com Saúde, o gasto com Educação. E nós não entendemos gasto quando você coloca dinheiro na Educação ou na Saúde, nós entendemos investimento e cuidar do pobre é investimento, aumentar o salário mínimo é investimento...
Entrevistador: ...Mas aumenta a dívida também.
Presidente Lula: ...Mas não vamos fazer isso. Paulo, o importante é as pessoas saberem que eu tenho um passado, que prova que é capaz fazer as coisas sem criar problema. Vamos só lembrar uma coisa: quando eu peguei o país em 2003, a inflação era 12%, nós levamos para 4,5%, o desemprego era de 12%, nós reduzimos para 4,3%, gerando vinte e dois milhões de empregos. Uma dívida pública interna de 67%, nós diminuímos para 37%. Uma dívida com o FMI de trinta bilhões de dólares, nós não só pagamos o FMI como emprestamos quinze bilhões ao FMI e ainda fizemos uma reserva Internacional de trezentos e setenta bilhões. E mais uma: o Brasil foi o único país do G20 que, durante todo o meu período de governo, a gente fez superávit primário, coisa que a maioria dos países não fez.
Então, a responsabilidade nós temos e vamos colocar em prática. O que digo é que vamos resolver o problema do Brasil, Paulo. O Brasil precisa de três coisas: primeiro de um presidente que tenha credibilidade da sociedade e um governo que também tenha credibilidade. Segundo a gente tem que garantir estabilidade política, estabilidade jurídica e estabilidade social. E terceiro, a gente tem que ter muita previsibilidade das coisas que a gente vai fazer para que a sociedade não seja pega de surpresa, a cada dia, a cada hora, a cada manhã. E isso é o que vai fazer com que o governo possa ser bem governado, recuperar a grandeza que o Brasil tem e gerar riqueza necessária que nós precisamos.
Entrevistador: Outro exemplo usado e explorado pela extrema direita é a criminalidade. O Brasil tem um dos maiores índices de criminalidade organizada do mundo, uma das mais elevadas taxas de detidos nas suas prisões, elas são escolas de crime, como presidente sabe. Mais riqueza e Educação ajudam a combater este flagelo, mas resolvem?
Presidente Lula: Paulo, eu tenho dito que a questão da violência não vai ser resolvida só com polícia. A questão da violência no Brasil, a questão do aumento de criminalidade na periferia, é exatamente por falta da presença do Estado nas comunidades. O Estado não está com Educação, o Estado não está com Saúde, o Estado não está com Cultura, o Estado não está com lazer. Ou seja, se o Estado estiver presente na periferia do país, cuidando daquilo que é obrigação dele cuidar, a violência será muito menor. A Polícia não será a única solução. A solução é mais Educação, é mais emprego, é mais Saúde, é mais coleta de esgoto, é mais tratamento de esgoto, ou seja, é preciso levar civilidade, humanismo para dentro da periferia do país porque assim a gente vai não só diminuir a violência, mas a gente vai melhorar a vida das pessoas.
Entrevistador: Presidente, vamos mudar para outro assunto. O Brasil tem tido uma posição ambígua sobre a guerra de Putin na Ucrânia. Como é que justifica, quando há claramente um agressor e um agredido?
Presidente Lula: O Brasil não tem posição ambígua. Não é verdade que o Brasil tem posição ambígua. Eu não sei quem é que interpreta que o Brasil tem. O Brasil tem uma decisão muito clara, o Brasil condenou a Rússia por invadir o espaço territorial da Ucrânia, ponto. Essa é o comportamento público do Brasil. O que o Brasil não quer é se aliar à guerra. O Brasil quer se aliar a um grupo de países que precisam trabalhar para construir a paz. Se todo mundo se envolve diretamente na guerra, a pergunta que eu faço é a seguinte: quem é que vai conversar sobre o impasse? Quem é que vai conversar com os governos que estão em guerra, para discutir paz? Quem é que vai dar o passo para construir paz? Eu já falei com o Scholz da Alemanha, eu já falei com o Macron, eu já falei com o Biden, falei com o Xi Jinping...
Entrevistador: ...Mas então que pressupostos é que têm que estar presentes para haver essas negociações para a paz?
Presidente Lula: O que nós queremos é construir um conjunto de países que possa conversar tanto com Ucrânia quanto com Rússia, na tentativa de encontrar um caminho para construir a paz. Eu não acredito que essa guerra seja infinita. Eu não acredito que essa guerra vai durar cem anos, duzentos anos. Um dia ela vai ter que acabar e ela vai acabar se os países do mundo resolverem discutir com os dois países que estão em guerra para a gente conversar. Tentar achar que a Ucrânia vai ceder, sabe, é impossível. Tentar achar que o Putin vai ceder, é preciso convencê-los, é preciso construir uma narrativa que os convença, de que a guerra não é a melhor saída para resolver os problemas entre Ucrânia e Rússia.
Entrevistador: Mas quando o presidente refere que os Estados Unidos, a OTAN e a União Europeia estão a prolongar a guerra, não se está a se colocar, de algum modo, ao lado da Rússia? Ajudar um país a defender-se de uma questão faz parte da Carta da ONU.
Presidente Lula: Não. Eu nunca, nós nunca pedimos para que a Europa e os Estados Unidos tivessem um outro comportamento. O que nós queremos é que eles também comecem a falar em paz. O que queremos é que também a Europa comece a discutir a questão da paz.
Entrevistador: Mas então, faz sentido, mas faz sentido ajudar a Ucrânia ou não?
Presidente Lula: Eu agora fiquei feliz porque o Macron foi conversar com o Xi Jinping, discutir uma possibilidade de encontrar paz...
Entrevistador: ...A França pode fazer parte desse grupo para negociar a paz? Deste grupo que o presidente pretende?
Presidente Lula: Pode fazer parte, o que precisamos é achar, Paulo. Eu não tenho experiência de guerra. A última guerra do Brasil foi do Paraguai, faz muito tempo. Mas eu tenho experiência de muito conflito entre trabalhadores e empresários e toda vez que a greve está radicalizada você precisa encontrar alguém que estabeleça um ponto de equilíbrio. Hoje nós não temos esse ponto de equilíbrio, nós não temos esse ponto de equilíbrio. Ou seja, o Putin acha que continuar atirando na Ucrânia, sabe, é o ponto de equilíbrio. A Europa e os Estados Unidos acham que forçar a Rússia é o ponto de equilíbrio. O dado concreto é que a guerra continua, a palavra paz desapareceu. E o que eu acho é que temos que criar um grupo de países, já tive experiência de criar a um grupo de países "Amigos da Venezuela" para acabar, em 2003, com o conflito que tinha na Venezuela. Eu acho que é plenamente possível. O meu ministro, Celso Amorim, que hoje é o meu assessor especial, esteve na Rússia conversando com o Putin...
Entrevistador: ...Que vai agora a Kiev...
Presidente Lula: Que agora vai conversar com o Zelensky. Se não tiver ninguém com essa disposição de tentar achar um caminho para a paz, eu acho que a humanidade vai sofrer mais, porque a guerra da Rússia e da Ucrânia tem implicações em vários países do mundo, sobretudo na questão de fertilizantes, na questão de energia e na questão de alimento. Até um país que está a quatorze mil quilômetros de distância, como o Brasil, sofre as consequências porque o Brasil compra muito fertilizante da Ucrânia.
Entrevistador: A Rússia e a China comungam uma batalha ideológica anti-Ocidental, logo anti-europeia. Que pontos comuns o Brasil tem com esses dois países?
Presidente Lula: Nós não temos, é engraçado porque eu acho que a construção da União Europeia é um patrimônio da democracia mundial. Eu acho que a União Europeia sempre funcionou como uma espécie de caminho do meio. Sempre tentou estabelecer um processo de negociação. Era uma espécie de centro, de epicentro das soluções, dos problemas quando tinha conflito no mundo. Agora estamos numa situação difícil, porque a Europa está numa situação difícil, sabe, com essa guerra na Ucrânia. A Ucrânia, que é a grande vítima da guerra, está numa situação difícil. A Rússia também está numa situação difícil, porque quem faz a guerra gasta dinheiro, quem faz a guerra tem gente que morre. E por que é que nós vamos deixar isso acontecer? Eu gostaria de ter convencido a União Europeia, quando o presidente Macron era presidente da União Europeia, para que a gente pudesse conversar, estabelecer qual é o ponto de equilíbrio entre Rússia e Ucrânia, que pode fazer esse mundo voltar a ter paz. Quem é que pode impulsionar para que Putin tenha a consciência de que ele cometeu um erro? E que, portanto, é necessário...
Entrevistador: ...Nesse caso, o presidente Lula não coloca em pé de igualdade as democracias liberais e as autocracias e ditaduras?
Presidente Lula: Não é possível colocar em pé de igualdade, se tem uma coisa que eu respeito, porque a exercito, todo santo dia desde que nasci, é a questão da democracia...
Entrevistador: ...E dos direitos humanos, e dos direitos humanos também, por exemplo a China tem um currículo enorme do Xi Jinping com Hong Kong, passando pelos detidos políticos entre advogados, jornalistas...
Presidente Lula: ...Todos os países do mundo têm problemas, todos os países do mundo. A verdade é que a China, e nós precisamos aprender a respeitar a autodeterminação dos povos, a China encontrou um jeito de resolver os seus problemas e um jeito que permitiu que a China logo, logo, se transforme na primeira economia do mundo. Acabei de vir da China. Ora, você pode não concordar com o regime chinês, como eles podem não concordar com o do Brasil. Tem muita gente que não concorda com as coisas da política que acontece no Brasil, mas é o nosso jeito de fazer política.
Aqui em Portugal, tem gente que não se conforma, sabe, que não concorda ainda com o fato de ter havido a Revolução dos Cravos. Ora, mas isso é um problema da sociedade portuguesa que temos que respeitar. Que haja essas inconformidades, de que nós trabalhemos para construir, sabe, que a maioria pense da mesma forma para consolidar o processo democrático. Não tem outro jeito. Eu vivi democracia no Brasil porque fui presidente da República, fui constituinte. Nós temos apenas 30 anos de democracia, é muito pouco para uma história de quinhentos anos do Brasil, e ela não está consolidada. Vira e mexe tem um golpe, vira e mexe tem um impeachment e nós precisamos consolidar definitivamente a democracia, e a Europa, para mim, é um modelo.
Entrevistador: Então, deixe-me agora colocar-lhe uma questão neste regresso do Brasil à cena internacional. O Brasil defende uma nova geopolítica, alterar a governação mundial, reformular o atual sistema da ONU, alterar também os direitos internacionais, a China e a Rússia referem isto várias vezes, inscrever autocracia como o regime aceitável, aceitar restrições à liberdade de imprensa, por exemplo.
Presidente Lula: Eu vivo num país que tem total liberdade de imprensa...
Entrevistador: ...Por exemplo, Portugal apoia a ideia do Brasil no Conselho de Segurança como membro permanente e é esta nova organização, é isso que eu lhe estava a perguntar, faz sentido inscrever autocracia como um regime aceitável?
Presidente Lula: Ora veja. O que eu acho concretamente é que cada país defende o jeito de se organizar e nós precisamos aprender a respeitar. Quando o Brasil reivindica...
Entrevistador: ...Mas não há valores universais presidente Lula, não há valores universais? A Carta das Nações Unidas não é um conjunto de valores universais?
Presidente Lula: Veja: a carta das Nações Unidas nem sempre é cumprida pelos membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas, é isso que nós queremos mudar. É isso que estamos reivindicando, que mais países possam participar do Conselho de Segurança da ONU. A gente tem que garantir que não tenha mais direito de veto, a gente tem que garantir, caso que esteja representada, que a América Latina esteja representada, que outros países como a Índia, como a Alemanha estejam representados. O problema é que quem tem feito guerra nos últimos anos são os membros do Conselho de Segurança da ONU, que são membros permanentes. Os Estados Unidos invadiram o Iraque sem pedir autorização para a ONU. A França, a Inglaterra invadiram a Líbia sem pedir autorização para a ONU. E agora...
Entrevistador: ...Isso não justifica os erros, futuros e atuais...
Presidente Lula: ...Não é possível, porque é que nós queremos mudar? Porque na questão climática, se a ONU decidir uma posição, e não foi obrigatória, os países não cumprem. Até hoje não cumpriram o Protocolo de Kioto.
Entrevistador: Deixe-me colocar-lhe esta questão, que tem a ver com a parte climática. A questão da Amazônia, que atrasou o acordo com o Mercosul. Apesar das promessas, o desmatamento prosseguiu a uma velocidade nunca vista. Ainda é possível travar isto?
Presidente Lula: Deixa eu falar uma coisa: quando você desmonta uma máquina, ou você desmonta uma casa, pra você montar ela leva mais tempo. Quando chegamos ao Governo, todos os instrumentos de fiscalização que o Governo tinha para controlar o desmatamento, para controlar os garimpos, para controlar os madeireiros foram desmontados, acabaram. Só para você ter uma ideia, no meu governo o Ibama tinha mil e setecentos funcionários, agora só tem setecentos. Nós precisamos recompor a máquina para que a gente possa ter o poder de fiscalização que a gente já teve e que diminuiu o desmatamento na Amazônia em 80%. Nós agora temos o compromisso de até 2030 de diminuir o desmatamento a zero na Amazônia.
Entrevistador: Estamos a caminhar para o fim, eu ainda tinha duas questões para lhe colocar. A sua visita a Portugal gerou uma certa polêmica, a sua presença no Parlamento no dia 25 de abril. Como é que reage a isso?
Presidente Lula: Não sei da polêmica, é bem possível porque em Portugal também me parece que tem uma certa polarização, sabe, de um lado mais extremista de direita contra os outros partidos políticos, ou seja, eu não tenho nenhum problema, eu não vim aqui para entrar na polêmica com o Parlamento português, eu vim aqui convidado para fazer uma tarefa, para cumprir alguma agenda e eu vou cumpri-la sem nenhum problema.
As pessoas não são obrigadas a gostar do Lula, as pessoas não são obrigadas a gostar do presidente do Brasil. O que é importante é que as pessoas respeitem apenas as instituições do seu país e respeitem as autoridades de outros países, mas eu não tenho nenhuma preocupação, estou muito tranquilo, vim a Portugal e vou vir outras vezes porque gosto de Portugal. Portugal é importante para o Brasil, o Brasil é importante para Portugal e não vai ser uma oposição que vai impedir que eu venha a Portugal.
Entrevistador: E que mensagem de liberdade pode transmitir então no Parlamento português que não colida com o comprometimento de Portugal com Ucrânia, a ponto de ter atribuído a Ordem da Liberdade para Zelensky?
Presidente Lula: Veja, primeiro Portugal toma a posição que quiser em relação à Ucrânia. Não tenho o direito, não tenho a autoridade de dizer qual é a posição correta de Portugal. O máximo que posso fazer é dizer qual é a posição do Brasil e, da mesma forma que eu respeito a decisão dos outros, eu gostaria que os outros respeitassem a decisão do Brasil. O Brasil é um país que não tem contencioso com nenhum país, o Brasil é um país que vive numa região, sabe, que os conflitos são internos, entre os partidos de cada país, mas é um continente em paz com todos os outros países.
Nós não temos guerra entre nós. Nós não temos combate, nós temos, muitas vezes, divergência verbal que não chega efetivamente a violência das armas. O que o Brasil quer é o seguinte, o Brasil trabalha na possibilidade de construir a paz no mundo porque a guerra não leva a nada. A guerra não produz nada de positivo. A guerra produz morte, produz desemprego, produz destruição, e nós queremos gerar empregos, queremos fazer mais escolas, queremos melhorar a vida do povo pobre. E é isso que nos leva a ter a paz como questão principal para resolver o problema da Ucrânia.
Parem de brigar, quando parar de brigar, sentem em torno de uma mesa e vamos conversar. Ainda vão perceber que as coisas serão melhor resolvidas. Muitas vezes as pessoas começam uma briga e não sabe como parar. E, portanto, nós temos que ajudar, nós temos que criar condições para que as pessoas possam voltar a conversar. Eu vou te dar um exemplo: Chavez não conversava com a oposição. A oposição não conversava com o Chavez. Dia 23 de janeiro de 2003 eu propus a criação do "Grupo de Amigos", sabe quem era que participava do "Grupo de Amigos" da Venezuela? Os Estados Unidos, a Espanha, porque o Aznar tinha sido o primeiro presidente europeu a reconhecer o presidente que tomou o poder na Venezuela. O Chavez não queria nem os Estado Unidos nem a Espanha. Eu disse para o Chavez "isso aqui não é amigo teu não, nós não criamos um grupo de amigos do Chavez, é um grupo de amigos da democracia". A mesma coisa vale para a guerra entre Ucrânia e Rússia. Ou nós colocamos os dois numa mesa de negociação, e o mundo tem a obrigação, a ONU poderia convocar uma reunião, a ONU poderia convocar uma reunião. Convoca o grupo dos vinte, que são as 20 maiores economias do mundo. Convoca uma reunião específica na ONU e vamos dizer o seguinte: "Vamos discutir esse negócio aqui com muita seriedade nas Nações Unidas e vamos tomar uma posição". Aí você pode começar a encontrar uma solução.
Entrevistador: Esperemos que o ouçam. Presidente Lula, muito obrigado por ter estado conosco na RTP, foi um prazer, obrigado.
Presidente Lula: O prazer foi meu Paulo.