Conversa com o Presidente - Live do dia 22.ago.23
TRANSMISSÃO | Conversa com o Presidente #11
Jornalista Marcos Uchôa — Bom dia a todos aí no Brasil. Boa tarde, presidente. Nós estamos na África do Sul, Joanesburgo, cidade maior aqui da África do Sul, não é a capital, a capital é Pretoria, que é o primeiro dia do BRICS, uma reunião super importante. Eu agradeço aí a participação de vocês. Estamos um pouquinho atrasados hoje, mas todas as rádios que estão aí participando com o programa também. Dou um abraço para Uberaba, rádio Urbes, que é uma das que também estão sempre transmitindo o nosso programa Conversa com o Presidente. Presidente, antes de a gente falar de BRICS, né, porque obviamente começa hoje à tarde o BRICS, eu queria falar um pouquinho de África. O senhor já veio muitas vezes à África, é uma coisa muito original da sua, dos seus outros dois mandatos e que o senhor está retomando agora. Já teve muito brevemente em Cabo Verde e essa viagem começa aqui na África do Sul, depois tem Angola, São Tomé, qual a tua relação com a África? Por que que o senhor achou, desde lá de trás, muito importante fazer essas viagens pra cá?
Presidente Lula — Eu vou falar boa tarde pro Uchôa aqui na África e vou falar bom dia para o povo brasileiro que está nos assistindo. Olha, Uchôa, eu, eu penso que a minha relação com a África, ela tem um pouco de sentimental, ela tem um pouco de reconhecimento histórico, ela tem um pouco de solidariedade. Ou seja, eu acho que o continente africano é um continente que vai se tornando o continente do futuro, porque, possivelmente, daqui a algum tempo, lá para 2050, a África do Sul, ou melhor, o continente africano vai ser o continente mais novo, mas o mais habitado do planeta. Vai ter muita gente.
Acho que aqui a economia vai começando a crescer. Aqui tem tudo por fazer. Aqui precisa de rua, de estrada, de água, de energia elétrica, de tudo precisa aqui. Então, é importante saber que o mundo e os empresários em algum momento vão se voltar pra cá. Quando teve a crise de 2008 e 2009, no primeiro encontro do G20, eu propus, foi um encontro na Inglaterra, o Tony Blair [ex-primeiro-ministro do Reino Unido], o...
Marcos Uchôa — Gordon Brown [ex-primeiro-ministro do Reino Unido].
Presidente Lula — O primeiro ministro Gordon Brown é que estava organizando a reunião e eu propus que o excesso de dinheiro que tinha no mundo pudesse começar a ser transferido para gerar empregos em lugares que precisavam gerar empregos para crescer, no caso era a África que precisava de muita, muita infraestrutura. Eu volto aqui à África do Sul com muito orgulho, à cidade de Joanesburgo, é a quarta vez que eu venho para cá, para participar dos BRICS com muita, muita, muita vontade com muito boa, com muita crença de que as coisas vão melhorar.
Os BRICS começam a se colocar como uma coisa muito importante do planeta. As pessoas começam a perceber que os BRICS não é pouca coisa não, ou seja, a junção de África do Sul, Brasil, Índia e China são metade da população mundial. São, são, sabe, economias grandes que estão crescendo, que podem crescer muito mais e que querem criar instituições democráticas, inclusive, o UNB, que é o novo banco dos BRICS, a gente quer criar um banco para agir diferente do que agem os bancos hoje criados, sabe, depois de 1945.
Então, eu estou otimista, acho que daqui vai sair grandes decisões, boas decisões, não decisões para ser implantadas amanhã, mas decisões para ser cumpridas ao longo do próximo período. O ano que vem é a Rússia que vai presidir os BRICS. Em 2025 é o Brasil que vai presidir os BRICS. A reunião será lá no Brasil então, e eu espero que a gente coloque a luta contra a desigualdade como tema principal. Quando for pro Brasil, o tema principal é a gente acabar com a desigualdade, desigualdade racial, desigualdade de gênero, desigualdade na educação, desigualdade na saúde, desigualdade no salário, ou seja, é tudo desigual num mundo em que poucos têm muito e muitos não têm nada.
Então, eu acho que eu vou provocar essa discussão, vou tentar fazer com que essa discussão seja um tema no próximo BRICS, do próximo G20, para que a gente coloque essa questão da diferença entre a humanidade no, no, no, no... Na ordem do dia. Não é aceitável que a FAO publique que 735 milhões de pessoas passam fome num país que produz muito alimento. Algo tá errado. E o algo errado é falta de recurso para comprar, o algo errado é que a distribuição de riqueza é mal feita no mundo. Apenas meia dúzia tem tudo, e os milhões e bilhões não têm nada. Então, eu estou muito feliz. Queria dizer ao povo brasileiro que eu agradeço o voto que vocês me deram porque me deu esta oportunidade de voltar a participar dos BRICS, voltar a participar de outros foros internacionais pra gente colocar o Brasil na ordem do dia e mostrar para o mundo o que que o Brasil está fazendo e o que que o Brasil quer fazer.
Marcos Uchôa — E o tema desigualdade, de certa maneira, mas o continente que a gente precisa reconhecer que isso é pior é na África. Não que a gente na América Latina não tenha esse problema, temos muito, mas a África realmente uma, uma... é terrível, né, pelo que sofreram em termos desses séculos, né, com a escravidão e pelo, depois a continuação da economia, a maneira como os países ricos lidaram, vinham para África para tirar coisas da África, muito mais do que ajudar, né?
Presidente Lula — Uchôa, é só importante a gente saber que a maioria dos países da África foram colonizados — e que a grande maioria também conseguiu a sua independência a partir dos anos 60. Portanto, é uma coisa muito nova, muito nova. O que é mais grave é que muitos países eram autossuficientes na produção de alimento. Depois da colonização, eles ficaram dependentes do colonizador, e hoje muitos países recebem alimento dos países que, que, que, que foram os colonizadores. Então, eles estão em uma situação pior do que antes da colonização, do ponto de vista da comida.
Eu tenho conversado com presidentes e eles falam o seguinte: “olha, nós temos uma carência muito grande porque todos os países estão muito endividados.” E é muito engraçado que eles, sabe, estão endividados – é uma dívida de quase US$ 800 bilhões de todo o continente africano – e por conta de estar endividados, eles não podem tomar dinheiro emprestado para fazer as coisas que eles precisam. Essa é uma discussão que eu acho que a gente tem que fazer em algum momento, em alguma instância, de que é preciso a gente dar um paradeiro nessa dívida e transformar essa dívida numa coisa de investimento para os países poder sair desta encalacrada. Sabe, eu tô devendo, não posso pagar, vou pegar esse dinheiro e ao invés de pagar eu vou investir em alguma coisa que me gere possibilidade de pagar no futuro.
Marcos Uchôa — De pagar...
Presidente Lula — É uma coisa normal que é preciso que o mundo rico compreenda a necessidade da gente garantir aos países mais pobre de ter oportunidade que ainda não tiveram.
Marcos Uchôa — Presidente, como é que você vê, a gente quando olha o BRICS, né, pela ordem das letras, Brasil, Rússia, Índia, China e África do sul, que entrou dois anos depois da criação. Teoricamente, são economias muito diferentes, países com culturas muito diferentes, tem um lado, talvez você possa enxergar como a mais difícil de decidir, mais difícil de ter consenso. Por outro lado, você pode pensar pelo lado positivo que somos mais complementares. Como é que você vê essa discussão de conseguir um acordo quando tem situações muito diferentes, por exemplo, de um país para outro?
Presidente Lula — Olha, mas a coisa mais importante é você aprender a conviver com as divergências, ou seja, cada país tem a sua particularidade, cada país tem o seu interesse soberano, cada país tem as suas coisas que ele não pode abrir mão. Mas o que é importante é a gente tentar convergir para aquilo que todo mundo concorda. Eu vou te dar um exemplo muito, muito forte disso. Por exemplo, o Brasil reivindica que vários países possam entrar no Conselho de Segurança da ONU como membros permanentes. Tá? E é engraçado que o BRICS tem quatro países e só um é membro do Conselho Permanente, que é a China. Então, cabe...
Marcos Uchôa — E a Rússia.
Presidente Lula — E a Rússia, é verdade. Então, é preciso que a gente convença a Rússia e a China que Brasil, África do Sul e os BRICS, e, e a Índia possa entrar, sabe, no Conselho de Segurança. Esse é um debate que nós vamos discutir. Inclusive para, para a gente poder possibilitar a entrada de novos países a gente tem que limitar uma certa coisa que todo mundo concorde, porque senão – se não tiver um grau de compromisso dos países que entram no BRICS – vira uma Torre de Babel. Então, a gente tá construindo isso, eu penso que desse encontro aqui deve sair uma coisa muito importante sobre a entrada de novos país. Eu sou favorável à entrada de vários países. E, e a gente vai se tornar forte. A gente quer criar um banco muito forte, que seja maior do que o FMI, mas que tenha outro critério de emprestar dinheiro para os países, não de sufocar, mas de emprestar na perspectiva de que o país vai criar condições de investir o dinheiro, se desenvolver e pagar sem que o pagamento atrofie, sabe, as finanças do partido. Você tá lembrado no Brasil, quando todo ano chegava um casal, um homem e uma mulher representando o FMI no aeroporto do Rio de Janeiro. Eles vinham fazer o que no Brasil? Vinham visitar as contas do Brasil para saber se o Brasil estava fazendo as contas corretas. Não tinha maior vergonha para um país do que receber dois representantes do FMI [Fundo Monetário Internacional] para ir ver se as contas estavam certas, sabe. Eu ficava até com pena do Malan [Pedro Malan], que ele era o presidente, o ministro da Fazenda. Agora não, agora eu acabei com isto porque, sabe, nós temos que aprender tomar conta das nossas contas. Nós pagamos o FMI, emprestamos 30, 15 bilhões de dólares pra eles e hoje não devemos nada ao FMI e nem queremos dever.
O que nós queremos é ter reservas cada vez mais fortes para que a gente seja dono do nosso nariz em qualquer discussão que a gente faça. Então, essa reunião dos BRICS e esses quatro países têm muita importância no mundo. Nós somos mais de um terço já do PIB mundial, mais de um terço, nós somos quase que um terço de todo o comércio internacional, então, nós podemos fazer com que mude os costumes e os hábitos políticos que até agora prevaleceram na conjuntura internacional. Por isso que é importante o Brasil estar de volta, pra dizer o que pensa, o que quer, como quer e tentar convencer os seus aliados das coisas que nós achamos que é importante.
Marcos Uchôa — O G7 representa uma fatia muito particular, o mundo rico tá ali. O BRICS de certa maneira, até pela quantidade de pessoas – estamos falando de quase metade da população, 40 e tantos por cento da população – é muito mais plural em relação a representatividade de gente. Seria um contraponto? O BRICS hoje tá se encaminhando para ser um contraponto realmente ao G7?
Presidente Lula — Não, eu acho que a gente não quer ser contraponto ao G7, a gente não quer ser contraponto ao G20, a gente não quer ser um contraponto aos Estados Unidos, a gente quer se organizar. A gente quer criar uma coisa que nunca teve, uma coisa que nunca existiu. O Sul global, nós sempre fomos tratados como se fôssemos a parte pobre do planeta, como se nós não existíssemos. Nós sempre fomos tratados como se fosse de segunda categoria, e, de repente, a gente tá percebendo que a gente pode se transformar em países importantes. E todos esses países são importantes. Se você falar da questão climática, quem é que tem força hoje para negociar? É o Sul global, são os países da parte de baixo do globo terrestre.
Se você falar de materiais, de minérios, você vai perceber que é o Sul global que tem. Se você quiser falar de possibilidade de desenvolvimento, de possibilidade de crescimento, é o Sul global. Então, nós estamos apenas dizendo: nós existimos, nós estamos nos organizando e nós queremos sentar numa mesa de negociação em igualdade de condições com a União Europeia, com os Estados Unidos e com todo país. O que a gente quer é criar novos mecanismos e que tornem o mundo mais igual do ponto de vista das decisões políticas, sabe, por exemplo, eu vou repetir a questão do Conselho de Segurança da ONU, os membros permanentes. Por que que o Brasil não pode entrar? Por que que a Índia não pode entrar? Por que que a África do Sul não pode entrar? Por que que não pode entrar a Alemanha? Por que que não pode entrar a Índia? Quem é que disse que os mesmos países que foram colocados lá em 1945 continuem lá?
O mundo mudou, a política mudou, e nós queremos essa mudança. Os BRICS significa isso. Os BRICS não significa tirar nada de ninguém, significa uma organização de um polo muito forte que congrega muita gente. Você imagina se entrar a Indonésia, mais de 200 bilhões [milhões] de habitantes, ou seja, nós vamos ter mais de metade da população participando dessa organização, e isso é importante porque vai permitir que a gente tenha um certo equilíbrio nas discussões e que hoje as guerras são decididas sem ninguém participar, ninguém discute.
Não é só a guerra da Rússia contra a Ucrânia. É a guerra, sabe, dos Estados Unidos contra o Iraque, foi a guerra da França e da Inglaterra contra a Líbia, foi as coisas contra o, o, o, o Líbano. Ou seja, então, o que nós precisamos? Nós precisamos criar um mundo mais justo, mais, sabe, mais democrático, mais solidário, pensando que a coisa mais importante que a gente tem que fazer neste instante é acabar com a fome no planeta Terra. É acabar com a desigualdade, é permitir que todo mundo viva dignamente, decentemente. Nós temos elemento... temos alimento para isso e temos dinheiro para isso.
O que precisa é apenas uma disposição política, sabe. Você não pode continuar no mundo em que 1% mais rico tem mais dinheiro do que 50% da população mundial mais pobre. Nós não podemos continuar assim. Assim você não tem equilíbrio, você fala em democracia, mas tá vendo uma pessoa morrer de fome na tua frente, tá vendo uma pessoa morrer por falta de tratamento médico, por falta de um remédio, que mundo que é esse? Você viu na questão da vacina, na questão da vacina quem tinha dinheiro comprou a vacina, quem não tinha dinheiro ficou assistindo a Covid matar os seus entes queridos. Então, eu acho que os BRICS têm essa simbologia, não é a simbologia da rivalidade, mas é a simbologia de criar um organismo novo, forte, que tenha muita gente, que tenha muitos recursos para a gente tentar melhorar a relação do mundo. Por isso que o Sul global é importante.
Marcos Uchôa — O senhor acredita muito na democracia e tá exercendo isso querendo ampliar no Conselho de Segurança e ampliar também o BRICS. Mas a gente pode pensar também que exige uma certa lógica do clubinho, quem está dentro não quer que outros entrem porque você dilui o seu poder. Isso vale para o Conselho de Segurança, os cinco lá se abrirem realmente vão perder o direito de veto, enfim, essa importância que hoje eles têm. E no BRICS você poderia dizer a mesma coisa, o senhor acha ou sente - claro que vai começar o BRICS hoje à tarde, então a coisa ainda vai ter as negociações -, mas o senhor sente que a sua posição no BRICS, vamos falar só do BRICS pelo menos no começo, ela tem uma grande chance de passar, de ampliar o BRICS?
Presidente Lula — Eu acho, eu acho que os BRICS têm possibilidade de ampliação. Eu sei que a China quer, eu sei que a Índia quer, eu sei que a África do Sul quer, eu sei que a Rússia quer e nós queremos. Então, se todo mundo quer, não é difícil entrar. Obviamente que você que tem que estabelecer determinados procedimentos para que as pessoas entrem, para que a gente possa amanhã no... não descobrir que a gente colocou alguém que era contra os BRICS. Por que é que tem que estabelecer algumas normas para que as pessoas entrem nos BRICS. Mas o BRICS não pode ser um clube fechado, sabe, o G7 é um clube fechado. O G7, mesmo quando o Brasil chegou a 6ª economia do mundo, a gente era convidado como convidado e não como participante. O G7 é o clube dos ricos em que a Rússia entrava por causa da, da, da, da, das armas nucleares que ele tinha, não era pelo dinheiro, sabe.
Então, nós não queremos isso, nós queremos criar sabe uma instituição multilateral, sabe – que graças a Deus tem o nome do BRICS, foi um economista que deu esse nome e que nós adotamos – e que a gente possa ter algo diferente, sabe. Afinal de contas, nós temos quase cem anos de funcionamento das instituições multilaterais que nós temos. Algumas funcionaram, hoje não funciona mais. Hoje a ONU tem pouca representatividade, ela não consegue cumprir quase que nenhuma tarefa. Hoje o Conselho de Segurança não decide mais nada porque tem o direito de veto e os membros do Conselho de Segurança fazem o que quiserem. E nós precisamos utilizar ouro para tentar encontrar a paz do mundo. A ONU precisa ser muito forte, até porque, vou dizer uma coisa para o brasileiro, Uchôa, se a ONU não tiver um poder de governança, a gente não resolve a questão climática. Porque se a gente fizer um COP, nós vamos fazer uma reunião nos Emirados Árabes, vamos supor que lá a gente tome uma decisão com relação aos países que têm florestas, que é a República Democrática do Congo, a República do Congo, a Indonésia e os oito países da América do Sul. Se a gente que tem muita floresta tomar uma decisão, essa decisão só será cumprida se ela for aprovada nos estados dentro do Estado nacional, no Congresso dentro do Estado nacional. Se não for aprovada a gente não consegue colocar em prática. Então, é preciso ter uma governança mundial que em determinadas circunstâncias, em determinados casos, decida e que a gente seja obrigado a cumprir. Por exemplo, o acordo de Paris ninguém cumpre; por exemplo, o Protocolo de Kyoto ninguém cumpre. Então vamos estabelecer regras para que seja verdadeira nossas reuniões, senão o povo vai desacreditando e aí a gente começa a ver a democracia correr risco.
Você começa ver voltar, sabe, o fascismo, você começa a ver tendência de nazista. Eu fiquei sabendo que esses dias na Alemanha prenderam um grupo de jovens que estavam revigorando ou fazendo manifestação nazistas. Nós não podemos permitir que isso continue, sabe, se nós que somos democratas, se nós acreditamos na democracia como o melhor modelo de governança, nós precisamos garantir que a gente tenha instituições fortes para garantirem, inclusive, essa democracia.
Marcos Uchôa — Presidente, às vezes a gente fica pensando que pra uma pessoa mais humilde no interior do Brasil, numa periferia, BRICS pode parecer uma coisa um pouco distante, né, o G20 e o G7 podem parecer uma coisa distante. Como é que a gente explica para essas pessoas como isso ajuda a nossa economia, como ajuda em termos de investimento a trazer emprego, não só a paz, não só o meio ambiente, mas assim, o que que... o que que realmente melhora a vida da gente como um todo?
Presidente Lula — Eu vou começar a dar o exemplo aqui financeiro. Em 2009, a relação do Brasil com os países do BRICS era apenas US$ 48 bilhões. Em 2022, a relação do Brasil com os países do BRICS foi para US$ 178 bilhões, ou seja, um crescimento de 370%. Essa é uma demonstração de como é que as coisas funcionam. Por isso é que quanto melhor for a relação de um país com outro país, mais chance a gente tem de fazer bons acordos. E os bons acordos não é aquele que um ganha e outro perde, o bom acordo é aquele que dois, que os dois ganham, os dois voltam para casa satisfeitos dizendo: "eu vendi por um preço bom"; e o que comprou diz: "eu comprei por um preço bom". Esse é o mundo de negócio que nós queremos criar. É por isso que o Brasil briga pela reestabilização, pela, pela volta do OMC [Organização Mundial do Comércio]. O OMC que em 2008 estava quase pronto para fazer um acordo, parou e nunca mais se reuniu. Nós somos favoráveis que quanto mais instituições multilaterais tiverem, que participem todos os países, melhor. Por exemplo, nós defendemos a questão de uma unidade de referência, na verdade é uma moeda que seja referência de fazer negócio para que você não precise de uma moeda de outro país. Olha, por que é que eu faço negócio com a China eu preciso de ter dólar para fazer negócio com a China? O Brasil e a China têm tamanho suficiente pra fazer negócio na sua moeda ou em uma outra unidade, sabe, de conta que a gente possa fazer. A gente, sem desvalorizar a moeda da gente e sem negar, ela continua existindo, mas a gente cria uma moeda de comércio exterior.
Marcos Uchôa — Isso funcionaria como assim: a gente reconhece o peso de cada moeda e quanto ela representa em relação a do outro?
Presidente Lula — Isso. Depois os bancos centrais fariam os ajustes necessários. O que é importante é que a gente não pode depender de um único país que tem o dólar, de um único país que, que, que bota a maquininha para rodar dólar, e nós somos obrigados a ficar vivendo da flutuação dessa moeda. Não é correto.
Antigamente, antes do dólar, era o ouro. Ninguém discutiu que o ouro ia deixar de ser a moeda referência, ninguém discutiu, simplesmente tiraram, tiraram. Sabe, então, o que nós queremos é o seguinte: tem países como a Argentina que não pode comprar dólar agora, está numa situação muito difícil porque não tem dólar. Ora, para vender pro Brasil não deveria precisar de dólar, vamos trocar as nossas moedas e os bancos centrais fazem os acertos no final do mês. Ou Brasil e China ou Brasil e Índia. Então, é isto que nós precisamos discutir, essas são as novidades que nós precisamos discutir. E quando você propõe coisa nova, as pessoas têm medo, as pessoas se assustam, as pessoas não querem. Colocar uma moeda, sabe, de negócio entre o Brasil e outros países não é negar o dólar. O dólar vai continuar com o valor que ele tem, sendo o mais importante e tal. Mas nós não precisamos se não tiver dinheiro para comprar dólar, sabe, comprar dólar; negocia na nossa moeda. Agora mesmo, agora mesmo, na Argentina, na situação, o Haddad [Fernando Haddad, ministro da Fazenda] tava conversando com a Argentina e é possível a gente ajudar a Argentina tendo como moeda o yuan, sabe, aqui da China. Fazer uma coisa diferente, uma coisa um pouco mais serena, mais madura, menos pragmática como é as regras estabelecidas hoje que só favorece o sistema financeiro. Só favorece.
Eu fico, às vezes, irritado, Uchôa, porque quando houve a crise em 2008 nos países ricos, o FMI não se manifestou, até parecia que o FMI não existia. Agora, quando tem uma crise em qualquer país pequeno, seja da África ou da América Latina, o FMI resolve dar palpite, resolve falar, resolve meter o bico, quando na verdade ele deveria ajudar. Deveria ajudar, mas não ajuda. O dinheiro que ele põe lá é quase como se fosse um cabresto, o país fica preso aquilo e não consegue sair; e a gente pode ver, isso é a situação da Argentina.
Como é que tá difícil por causa do empréstimo que foi feito por interesses políticos do FMI, os 44 bilhões emprestados ao Macri [Mauricio Macri, ex-Presidente da Argentina] na época das eleições. Há quem diga na Argentina que esse dinheiro foi emprestado por conta das eleições para que o marketing pudesse ganhar as eleições. Ele não ganhou, o Alberto Fernando ganhou e o Alberto ficou com a dívida. E que agora tem que pagar, e nós sabemos a situação da Argentina. Teve uma seca muito forte, muito forte, perderam 25% da sua agricultura; e eu, por exemplo, defendo, defendo que os nossos irmãos da Argentina possam participar dos BRICS. Eu defendo isso, vamos ver na reunião como é que fica, mas eu defendo – se vai ser agora, se vai ser daqui a um mês, dois meses –, mas eu defendo porque é muito importante a Argentina estar nos BRICS.
E até porque tem uma coisa muito importante: o Brasil não pode fazer política de desenvolvimento industrial sem lembrar que a Argentina é um país que tem que crescer junto com o Brasil. Nós temos que compartilhar as coisas que nós fazemos com Argentina.
Marcos Uchôa — Os nossos empregos, né?
Presidente Lula — É isso, é isso que eu quero. Eu quero que a Argentina tenha poder de compra pra comprar mais e tenha coisa pra vender pra vender mais, sabe. Eu quero a Argentina bem, eu quero a Bolívia bem, eu quero o Uruguai bem, eu quero o Paraguai bem, eu quero o Equador, eu quero todos os países bem, porque isso vai garantir paz no planeta Terra.
Marcos Uchôa — Presidente, a gente fala tanto hoje em dia – a gente está com o celular aqui, estamos falando ao vivo para o Brasil –, tanto em modernidade, tanta coisa mudou e, no entanto, tudo isso que você está descrevendo, de certa maneira, são instituições de quase 80 anos, é o de pós-guerra, o Conselho de Segurança, ONU, o Bretton Woods, que decidiu o FMI e Banco Mundial. É tudo muito antigo e precisa dar uma refrescada, precisa dar uma mudada muito grande, porque é esquisito que se mude tanto quando se fala em tecnologia e não se muda nada quando se fala em política.
Presidente Lula — Pois é, para o mundo do trabalho as coisas ficam sempre pior. Eu, eu agora tô com muita fé de que a gente possa ter um novo ciclo de crescimento, inclusive o Brasil voltar a ter uma política industrial mais arrojada. O Brasil já teve 30% do seu PIB em, da indústria, hoje é apenas 11%, tá. Isso eu falo não negando o peso da agricultura, porque também na agricultura tem muita tecnologia, eu falo porque o Brasil precisa voltar a exportar valor agregado. E você tem que aproveitar esse momento histórico em que o mundo quer se livrar, sabe, da poluição e a questão climática ganha um peso importante, e nesse aspecto o Brasil é imbatível. O Brasil é imbatível no biodiesel, o Brasil é imbatível no etanol, o Brasil vai ser imbatível no hidrogênio verde, o Brasil é imbatível em eólica, o Brasil é imbatível em solar, ou seja, nós temos um jeito de fazer uma indústria verde nesse país. Quem quiser comprar aço, quem quiser comprar qualquer coisa, vai comprar produzido por, sabe, energia limpa, que não joga gás carbônico no mundo, que não polui o mundo. Esse é o grande trunfo do Brasil que a gente tem que explorar muito. Eu lembro quando surgiu a vaca louca na Inglaterra. A resposta do Brasil era falar "o nosso boi é verde", "a nossa casa é verde", "esse boi não come ração, come carne, como grama". Então, essa é uma coisa vantajosa, que o mundo tá percebendo isso.
Quem é que tem que pagar um pouco? Quem tem que pagar um pouco mais — e isso aqui também não é nenhuma revanche, nem uma coisa ofensiva contra ninguém – é que os países industrializados há 200 anos atrás, que já ganharam muito dinheiro e que foram responsável pela, pela derrubada de quase todas a floresta que existiu, eles terão que pagar um pouco do passado. Eles terão que pagar um pouco, sabe. Isso é razoável. Por quê?
Porque quando a gente fala da questão climática, eu não posso olhar o mundo e ver só as copas das árvores lá na Amazônia, eu tenho que ver que lá em baixo tem milhões de homens, mulheres e crianças que querem comer, que querem trabalhar, que querem ter acesso a bens materiais que todo mundo tem. Então, nós, quando falamos na questão climática, nós temos que pensar também no povo. No Brasil são quase 28 milhões, na Amazônia toda são 50 milhões. Então essa gente precisa ser tratada, precisa ter emprego, precisa comer, precisa tomar café de manhã, jantar, ter escola. Então, eu acho que o mundo desenvolvido tem que ajudar a fazer isso sem nenhum castigo, apenas numa atitude de falar: "eu vou pagar o pedágio de uma coisa que eu, que eu já fiquei rico por conta de, de desmatar tudo da minha terra, de fazer a Revolução Industrial, então vou pagar a minha parte". E pagar para que a gente possa construir esse mundo que todo quer, porque todo mundo quer o mundo de paz, todo mundo quer o mundo em que todo mundo tem o direito de tomar café, almoçar e jantar. Todo mundo quer o mundo que todo tem escola de qualidade, todo mundo quer o mundo que as pessoas possam viver felizes, ter acesso à cultura, ao lazer, que as pessoas façam o que quiser respeitando o direito dos outros. Esse mundo é que nós queremos construir. E quando a gente discute, o Brasil e os BRICS, a gente tá discutindo: um outro mundo é possível. Nós estamos sendo testados, vamos ver se nós temos competência de dar sinais de que esse outro mundo vai existir de verdade. Não queremos brigar com ninguém, o que nós queremos é uma integração intercontinental que possa garantir que todos países sejam tratado em igualdade de condições. Se isso é possível? É, então outro mundo é possível; e outro mundo é possível porque o planeta Terra garante por causa da tecnologia, da evolução da genética, condições tranquilo de produzir alimento pra todo mundo e todo mundo viver bem, sobretudo o povo dos países mais pobres.
É só isso que a gente quer nessa reunião dos BRICS. Dizer para todo mundo: "nós existimos, queremos ser tratados de igualdade de condições e vamos criar novos instrumentos multilaterais, sabe, para fazer política, política social, política solidária, política financeira. A gente pode e vamos tentar fazer. Só tenho certeza, vocês verão que nesses próximos anos muita coisa vai mudar no mundo, pode ter certeza, vai. Sonhe grande porque quem sonha grande consegue realizar; quem sonha pequeno, quando acordar o sonho desapareceu, nem lembra o que sonhou.
Marcos Uchôa — Presidente, estamos acabando o programa. Daqui a pouquinho vai começar o BRICS mesmo, e nesse argumento moral que o senhor tá falando, é muito bom estar sendo falado daqui, você tá dizendo aqui da África do Sul, porque aqui na África do Sul saíram duas das grandes figuras morais da história da humanidade: o Mahatma Gandhi, o indiano, que morou aqui 21 anos, depois ele foi para a Índia e criou e participou ali, foi o líder da independência da Índia em relação ao império britânico. E claro o Nelson Mandela, que o senhor conheceu, que também foi uma figura que também transformou o regime racista do apartheid nessa democracia que a gente vive hoje na África do Sul. São duas figuras inspiradoras. Queria que o senhor falasse uma palavrinha do que foi Mandela, um pouquinho, pro senhor.
Presidente Lula — Uchôa, primeiro, é importante lembrar o seguinte: a África, a África tem 54 países e cada um desses países têm grandes heróis. Aqui nesse continente houve muita luta, houve muita barbárie contra os negros. Mas houve muita conquista dos negros, que terminou, nos anos 60, conseguindo a sua independência. Sabe, então tem muitos heróis aqui. Agora obviamente que a história do Gandhi começa exatamente aqui na África do Sul e a África do Sul que conseguiu ter o Mandela, que é o exemplo mais próximo da minha geração. Porque o Mandela eu tive o prazer de o conhecer antes e depois dele ser governo e o Mandela era uma figura que era o resultado de uma liga, uma luta mundial, porque o mundo inteiro começou a se colocar contra o apartheid. E, de repente, a figura que aparecia era aquela figura do Mandela que parecia um homem de oito metros de altura, sabe, de tanta competência, de tanta generosidade, sabe, e de fala tão suave quando ele falava com seu povo. Eu tive a oportunidade de encontrar com o Mandela em Cuba, tive a oportunidade de visitar o Mandela quando ele era presidente, tive oportunidade de conhecer sem ser presidente, tive oportunidade de encontrar o Mandela em Moçambique, e toda vez que eu encontrava o Mandela eu via nele a figura política mais forte que eu conheci, sabe. Um homem que passou 27 anos preso, que sai da cadeia sem ódio, que sai da cadeia pra coordenar o seu povo sem nenhum ódio, que coloca vários brancos no seu governo – cada ministro negro tinha um subministro branco –, sabe, pra mostrar: eu vim pra construir a paz; e conseguiu construir.
Bom, e a história do Gandhi, também. O Gandhi foi o primeiro livro que eu fiz, o primeiro livro que eu li na minha vida, sabe, foi o do Gandhi. É uma história que causa inveja a todo ser humano, ou seja, se dedicar a independência do seu país, a uma luta daquela sem violência é uma coisa muito forte. Ou seja, os gestos deles que poderiam ser visto como covardia por alguns, sabe, mas pra mim, pelo menos, o gesto do Mandela... do, do, do Mahatma Gandhi, cada gesto dele era um gesto mais revolucionário do que se ele tivesse com arma na mão. Ele provou, ele provou que a não-violência pode derrubar o império, pode derrotar a Inglaterra como eles derrotaram. Então, esses exemplos, se o ser humano acompanhasse a vida dessas pessoas, eu acho que a gente aprenderia a ser mais justo, ser mais democrático, ser mais calmo e ser mais solidário. Ser mais solidário, é tão fácil ser solidário. É só você estender a sua mão para alguém que precisa de você. É simples assim. É esse mundo que a gente sonha construir e eu espero que a gente construa, porque senão esse mundo será destruído.
Marcos Uchôa — Presidente, muito obrigado. Ótimo BRICS e ótima viagem pela África, tá? A gente volta semana que vem, terça-feira, aí já de Brasília, tá? Um grande abraço. Muito obrigado pela participação de vocês, por todos aí no interior do Brasil, no Youtube, no Spotify. Depois você vai poder ver também na hora que você quiser as melhores partes dessa entrevista com o presidente. Um grande abraço. Bom dia para todo o Brasil.
Presidente Lula — Olha, um grande abraço [trecho inaudível por problemas na transmissão] em Brasília fazendo nosso encontro com o presidente. Um beijo no coração de todo o povo brasileiro.