Entrevista coletiva concedida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva após a Cúpula do BRICS, em Joanesburgo, na África do Sul
Bom, primeiro eu queria dizer para vocês que essa é uma das reuniões mais importantes que eu já participei, seja nos dois mandatos anteriores, seja nesse mandato. Uma reunião importante porque quando a gente vê um filho nascer, a gente acompanha o crescimento dele e vê o tamanho que ele fica comparado a outras crianças.
Quando nós começamos a discutir essa questão de BRICS, a gente percebe que em 1995 os países do G7 detinham 44,9% da paridade de compra. Os BRICS, os países dos BRICS, só tinham naquele momento 16,9%. Em 2010, o G7 já tinha caído para 34,3% do PIB [Produto Interno Bruto], por paridade de compra; e os BRICS tinham subido para 26,6%. Em 2023, o G7 tem 29,9%; os BRICS, 32,1%. E mais importante é que com a entrada dos novos países, o PIB de paridade de compra do G7 passa, praticamente, para 36,64%. Quase 37%.
E vocês sabem que a vinda da Argentina, da Arábia Saudita, do Egito, dos Emirados Árabes, da Etiópia e do Irã é muito importante porque eu não sei se vocês se lembram – e como você foram pessoas que estudaram nas universidades sabem disso –, vocês sabem que nós éramos chamados de Terceiro Mundo.
Depois que cansaram de chamar a gente de Terceiro Mundo, começaram a chamar a gente de país em vias de desenvolvimento. E agora nós somos o Sul Global. Veja a mudança de nome, que pomposo que é, as pessoas agora falarem: "Vamos conversar com o Sul Global”.
O que é importante nisso? O que é importante é que o mundo está mudando. Não é só a xenofobia que está mudando, não é só o extremismo de direita. A economia também começa a mudar, a geopolítica começa a mudar, porque as coisas vão acontecendo e a gente vai ganhando consciência de que nós temos que nos organizar. Vocês estão lembrados que nós tínhamos criado a Unasul [União de Nações Sul-Americanas], na América do Sul. A Unasul teve um papel importante, até que neste período mais duro e tenebroso da política brasileira, acabou. Acabou a Unasul. E muitos tentaram acabar com o Mercosul [Mercado Comum do Sul].
Nós, agora, temos o trabalho de tentar reorganizar o Mercosul para ele ficar mais forte e reorganizar a Unasul. [trecho inaudível]… Ou pelo menos com uma garantia de ser tratado em igualdade de condições e não uma prepotência do senhor de engenho contra o escravo.
Mas simplesmente trabalhar em igualdade, de forma civilizada, a gente começa a negociar. Além dessas coisas que eu considero extremamente importantes, vocês sabem que quando nós criamos os BRICS, muita gente achava que era uma piada, muita gente não levava a sério, porque as pessoas tinham visto tantos outros grupos que foram criados: G15, C67, G não sei das quantas.
Ou seja, e os BRICS era uma coisa diferente porque tinha interesses comuns entre os países. Nós ontem conseguimos algumas coisas importantes, que é um avanço para quem está nisso participando desde 2009. É um avanço extraordinário porque foi a primeira ampliação dos membros. Porque vocês sabem que essas pessoas que foram escolhidas foram pessoas que já estavam pedindo há muito tempo para entrar nos BRICS. Não foi de forma aleatória, não foi por acaso que entrou fulano ou beltrano.
Porque eram as pessoas que estavam na fila há muito tempo pedindo e reivindicando. Outros países vão pedir e nós vamos fazer da mesma forma seletiva, criteriosa, escolhendo as pessoas de acordo com a importância geopolítica de cada país. O que está em jogo aqui não é a pessoa do governo, é o país. É a importância do país. Eu não quero saber que pensamento ideológico tem o governante. Eu quero saber se o país está dentro dos critérios que nós estabelecemos para as pessoas fazerem parte do BRICS. Então, foi muito importante esse avanço.
Outra coisa que foi muito importante é a questão de discutir a elaboração, a confecção de uma moeda de negócios, sem precisar mudar a moeda do país. O Brasil vai continuar com o real, China vai continuar com yuan, a Argentina vai continuar com o peso. Ninguém quer mudar a unidade monetária do país. O que nós queremos é criar uma moeda que permita que a gente faça negócio sem precisar comprar dólar. Ou seja, não houve nenhum fórum no mundo que decidiu que o dólar era moeda referência para os negócios. Simplesmente acabaram com o ouro, entrou o dólar e ficou. Então, nós resolvemos criar uma moeda porque isso facilita a vida das pessoas. E nós não queremos pressa, porque não é uma coisa simples de fazer.
O que nós decidimos com muita maturidade foi garantir que a área econômica dos países dos BRICS estudem, durante todo esse ano, para que na próxima reunião dos BRICS, que será na Rússia, a gente apresente uma solução para saber se nós vamos estar de consenso ou não. Essa é uma coisa que eu acho muito importante, a gente começar a se preocupar em criar uma certa paridade nessas trocas comerciais.
A segunda coisa que eu acho que foi extremamente importante foi a questão da decisão das pessoas concordarem com a luta para que a gente mude o Conselho de Segurança da ONU [Organização das Nações Unidas], sobretudo os membros permanentes do Conselho. Nós estamos brigando há mais de 20 anos por isso. O Celso Amorim [ex-ministro das Relações Exteriores e atual assessor especial para assuntos internacionais da Presidência da República] está de cabelo branco de brigar por isso, o Mauro [Mauro Vieira, ministro das Relações Exteriores] ficou careca de brigar por isso.
E eu estou ficando careca e de cabelo branco, ao mesmo tempo, brigando por isso. Porque nós entendemos que a geopolítica política de hoje não tem nada a ver com a geopolítica de 1945. O mundo mudou, os países mudaram, ganharam importância. Então, é importante que a ONU tenha uma representatividade que possa deliberar coisas que as pessoas acatem, que as pessoas obedeçam, sobretudo, nesse momento que a gente discute a questão climática.
Não adianta fazer COP, COP1, COP2, COP3, COP40. Agora vai ser, a do Brasil vai ser a COP30, em Belém. E vai ser muito importante que nós trouxemos o pessoal para dentro da Amazônia. Ou seja, não é eles que vão falar sobre a Amazônia. É a Amazônia que vai falar para eles. Porque eles têm que saber que embaixo de cada copa de árvore, em cada margem de rio que nós temos, eles têm que saber que tem, só no Brasil, 28 milhões de pessoas que querem trabalhar, que querem comer, que querem se vestir, que querem ter acesso aos bens materiais que todos nós queremos ter. E nós precisamos imaginar que cuidar da natureza é cuidar dessa gente também.
E isso é muito importante, mas aí as pessoas não cumprem. O Protocolo de Kyoto até hoje não foi cumprido por ninguém. Os US$ 100 bilhões prometidos em 2009, em Copenhage, até hoje não apareceram. E os países ricos ainda vivem dizendo que: "Não, nós vamos dar US$ 100 bilhões". Mas não aparecem, não aparecem esses US$ 100 bilhões.
E eu acho que a gente tem que entender que o Fundo para Amazônia, que eles quiserem criar – não esse fundo que a Noruega e a Alemanha nos ajudaram, ainda no meu governo –, o fundo não é nenhum favor aos países que têm florestas. À República Democrática do Congo, ao Congo, à Indonésia e aos oito países da América do Sul. Nenhum favor. Eles têm que ter consciência de que quem começou a Revolução Industrial primeiro, emitiu mais gás carbônico, poluiu mais o planeta. E, portanto, essa gente poluiu 200 anos antes de outros.
Essa já foi a minha discussão em 2009, na Dinamarca, porque a reunião estava preparada para responsabilizar a China pela grande poluição do planeta. E eu disse: "Não, não é correto. Nós não vamos culpar a China. A China está poluindo, nós temos que fazer a crítica pra China deixar de poluir tanto e tentar evitar a emissão de gases.” Mas nós temos uma dívida de mais de 200 anos para trás. E quem vai pagar essa dívida? O meu neto, o meu bisneto, o meu tataraneto que vai nascer ainda, ele tem o direito de ser ressarcido por aqueles que emitiram o gás carbônico antes deles nascerem.
Então é muito importante essa discussão da mudança do Conselho da ONU, porque a gente quer, inclusive, que a ONU tenha mais praticidade e mais respeitabilidade. Vocês sabem que em 48, a ONU criou o Estado de Israel. Hoje, a ONU não consegue evitar o massacre aos palestinos, nem cumprir as suas próprias decisões. Os membros do Conselho de Segurança da ONU decidem guerra sem consultar os membros de Segurança da ONU.
Ninguém consultou ninguém pra fazer a guerra do Iraque. Ninguém consultou ninguém para invadir a Líbia. Ninguém consultou ninguém pra atacar; a Rússia, sabe, a Rússia não consultou ninguém, simplesmente, ela invadiu um país. E vocês sabem que nós somos contra a ocupação da integridade territorial do outro país. Bem, essa foi uma coisa importante que foi aprovada, obviamente que nós vamos ter que conversar com outros países.
Quando eu era presidente da República, da outra vez, a gente tinha muita gente favorável. A gente tinha a Inglaterra, que era favorável; a gente tinha a França, que era favorável; a gente tinha a Rússia, que era favorável, ainda no tempo do Putin [Vladimir Putin], depois no tempo do Medvedev [Dmitri Medvedev]. A gente tinha. Só quem tinha dúvida mesmo era Estados Unidos e a China. Mas como também a geografia política mudou, eu acho que as pessoas vão ficar favoráveis para a gente entrar.
Não há mais explicação de por que não fortalecer a entrada de país africano, de país latino-americano, de país asiático. Qual é a explicação de uma Índia estar fora do Conselho de Segurança da ONU? Então, um país que acabou de mandar um foguete para a lua e pousou ontem. Eu fiquei sabendo que há quatro dias atrás, um foguete russo não conseguiu pousar porque é muita montanha e ele não encontrou o lugar correto. E quatro dias depois a Índia conseguiu pousar.
Então, esse mundo mudado, com as pessoas participando, com essa, essa nova onda de crescimento, sabe, de energia verde, que as pessoas só falam boi verde, aço verde, comida verde, carro verde, ou seja, esse é o momento histórico da humanidade em que os países do Sul, pela primeira vez, podem fazer valer a força que eles têm.
Não sei se vocês estão lembrando daquele encontro de Paris, em que o chanceler alemão foi falar, e ele falou: "Não, porque os países que têm minérios, muitos minérios, que têm xisto, que têm cobalto, que têm ferro, que têm alumínio, que têm não sei das quantas, não podem mais exportar só minérios. É importante que eles transformem esse minério para colocar valor agregado e ganhar dinheiro". Não sei se vocês estão lembrados que eu falei: "Se você aceitar, vou convidar você para ser ministro de Minas e Energia no meu país, para poder fazer as pessoas ouvirem, porque uma vez eu fui discutir isso com as empresas mineradoras e elas falaram: ‘Não, presidente, a gente não pode brigar com os nossos clientes’." Quando, na verdade, a gente poderia, ao invés da China produzir 600 milhões de toneladas de aço, a gente poderia, ao invés de 35, produzir 70 e exportar o aço pronto.
Então, é muito importante o que está acontecendo. Eu acho que as coisas vão evoluir, eu acho que vai ficar mais fácil conversar, vai ficar muito mais fácil a gente se juntar. Quem sabe muitas vezes vai se reunir o bloco dos BRICS com o bloco do G7. É uma boa reunião para discutir comércio, para discutir avanço científico-tecnológico, para discutir democracia, que está tanto precisando nesse momento.
É por isso que eu saio feliz dessa reunião extremamente importante também pela quantidade de países que foram convidados especiais, muitos países africanos. Eu acho que é uma reunião civilizatória, sabe? Os países pobres também podem falar, também têm direito, também têm desejo.
E o que nós queremos é poder expressar aquilo que a gente sente e aquilo que a gente deseja trazer para o nosso povo com os países mais ricos. Eu acho que está na hora de começar a repartir melhor o pão de cada dia, porque não justifica mais a FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura] declarar que tem 735 milhões de pessoas que vão dormir com fome toda noite. Não tem nenhum sentido no mundo que tem conhecimento genético, ciência e tecnologia, que produz alimento para toda humanidade. Uma boa parte se perde entre o campo e a cidade, outra parte já são produtos industrializados. E o que falta na verdade é dinheiro para pessoas poderem comprar o que precisam.
Vocês viram o sucesso que o Bolsa Família fez para acabar com a fome. Vocês viram o sucesso que o aumento real do salário mínimo faz para acabar com a fome. Eu tenho dito sempre o seguinte: muito dinheiro nas mãos de poucos, significa favela, pobreza, mortalidade infantil, analfabetismo, desigualdade plena em tudo. Agora, pouco dinheiro na mão de muitos, significa o começo de distribuição de riqueza, que as pessoas começam a ter acesso às coisas mínimas que necessita.
Porque o povo mais pobre, ele não quer muita coisa. Ele quer sobreviver. Ele quer comer corretamente, ele quer se vestir corretamente, ele quer poder viajar, ele quer poder ter acesso a um carro, um sapato bonito, sabe. As pessoas precisam parar de achar que as pessoas mais pobres gostam de coisa ruim. Pensa que pobre vai na xepa, na feira, por que gosta de comprar coisa estragada, coisa amassada? Não. Se a gente tivesse dinheiro, o povo ia às 8 horas da manhã, às 7h pra comprar do bom e do melhor, que é isso que o ser humano necessita.
Por isso, essa reunião pra mim é um alento, é uma esperança. E eu queria dizer pra vocês que aos 77 anos – faltando, faltando pelo menos 33 anos para completar os 120 anos que eu quero viver –, eu quero dizer para vocês que eu renasço na política, renasço na esperança e saio daqui com a certeza que, finalmente, eu posso dizer para as pessoas que estão me ouvindo que um outro mundo é possível. Coisa que parecia impossível há algum tempo atrás.
Dito isso, eu me coloco à disposição de vocês para algumas perguntas, algumas perguntas, porque eu tenho que embarcar para Angola e depois ainda tenho que ir a São Tomé e Príncipe. Também?
JORNALISTA SIMONE IGLESIAS, DA AGÊNCIA BLOOMBERG: Presidente, boa tarde. Simone Iglesias da Agência Bloomberg. Obrigada por essa conversa com a gente ao fim dessa Cúpula dos BRICS. A ampliação dos BRICS, ela, é claro que deve ter um impacto enorme na ordem global. Agora tem como um bloco integrado pelo Irã, pela Rússia e pela China não ser visto como um G7 antiocidente, como é que se foge dessa percepção ou a ideia que seja realmente essa leitura? Obrigado.
PRESIDENTE LULA: Olha, primeiro nós não podemos negar a importância geopolítica desses países. Ou seja, o Irã é um país extremamente importante. É tão importante que o Brasil vai completar 120 anos de relação com o Irã. É tão importante que quando eu e o Celso Amorim, mais o presidente da Turquia, fomos lá discutir o acordo da redução, sabe, da conversão do urânio, do enriquecimento do urânio, nós conseguimos fazer um acordo que não foi aceito pelos Estados Unidos e pela União Europeia; e que depois fizeram um acordo pior do que nós fizemos e ainda aumentaram as sanções no Irã.
Então, o Irã é um país importante e eu fico muito feliz quando vejo que o Irã tá conversando com o mundo árabe, tá tentando se colocar de acordo com Arábia Saudita. Isso, isso é uma mudança de comportamento da humanidade. A gente vai vivendo, vai apanhando e vai aprendendo. Ninguém pode negar a importância mundial da China. Aliás, eu tenho dito que, se tem alguém que tirou proveito da ganância do capitalismo, foi a China.
Nos anos 70 e nos anos 80, quando o capital ia para China atrás de trabalho escravo, todo mundo se lembra disso e vocês já escreveram sobre isso, a China soube tirar proveito dessa ganância e se transformou num dos países mais desenvolvidos do mundo do ponto de vista científico, tecnológico; e o PIB chinês ou já passou ou vai passar, ou passa amanhã o PIB americano.
Então, são três países que não podem estar fora de qualquer grupamento político que se queira fazer. Seja para discutir economia, seja para discutir ciência e tecnologia, seja para discutir cultura. Essa gente tem que estar participando. E outros países irão participar, porque tem muitos países pedindo.
Ou seja, eu sinto que as pessoas veem nos BRICS uma chance de participar uma vez na vida. Não sei se você sabe, porque eu tenho muita sorte, eu fui o primeiro presidente do Brasil a participar da reunião do G7. Depois eu participei de todas. Só não participei da feita em São Francisco, organizada pelo presidente Bush [George Bush], em 2004. Então, o fato de a gente ser chamado para participar, e eu ia e tive discussões. Ou seja, você não participa como membro nato, como membro efetivo; você é convidado.
Eu lembro de uma vez que eu fui a Berlim e quando entreguei o documento dos BRICS, na época que não tinham o nome ainda, numa reunião feita pelo Hu Jintao [ex-presidente da China], pelo Putin ou Medvedev, se não falha a memória, eu e o primeiro-ministro Singh [Manmohan Singh, ex-primeiro-ministro da Índia], eu fui entregar o documento para chanceler Angela Merkel [ex-chanceler da Alemanha].
Ela falou: "tá bom, presidente Lula, nós vamos acoplar o seu documento na nossa decisão". Eu falei: "não, Angela, você não pode acoplar porque são documentos diferentes. O nosso documento é contraditório ao seu. Eles não cabem na mesma pasta. Você tem que tirar um pra colocar o outro". Porque se não for pra participar pra valer, por que que eu vou lá?
Agora mesmo no Japão, eu tive várias discussões – mais o Celso e o Mauro do que eu – com o primeiro ministro, sabe, que queria que eu fosse, que queria que eu fosse, eu dizia: "não, eu só vou se for para participar". Porque sair para tomar um café e almoçar no Japão, é o jantar e o café mais caro do planeta Terra. São 20 e poucas horas, parando três vezes, ou seja, então, o G7 teve um papel importante, era o clube dos ricos, era aquele clube que só entra rico, que tem que ter carteirinha não sei das quantas, tal.
O nosso é mais humilde, porque o nosso não pensa só economicamente, o nosso também pensa politicamente. E é por isso que eu acho que os BRICS está consolidado como uma referência para qualquer ser humano, jornalista, cientista político, que quiser discutir a geopolítica econômica, a geopolítica científica e tecnológica, a geopolítica de qualquer coisa, vai ter que conversar com os BRICS também. Não é só com os Estados Unidos e não é só com o G7. Por isso que é importante esses países terem entrado.
JORNALISTA CARLOS HENRIQUES, DA AGÊNCIA DE NOTÍCIAS LUSA: Boa tarde, Lula. Carlos Henriques, da Agência de Notícias de Portugal Lusa. Em primeiro lugar, uma pergunta sobre os BRICS. Por que é que não defendeu a entrada nos BRICS de um país lusófono como Angola, que é também um dos maiores produtores de petróleo em África? Sobre a geopolítica que acabou de falar na Ucrânia, como é que vê as declarações do presidente a Ucrânia hoje, ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa [presidente de Portugal], que considera enviar F de caças, F-16 para Ucrânia, pedindo a Portugal apoio para influenciar a CPLP, para ajudar a apoiar a Ucrânia na luta contra a invasão russa?
PRESIDENTE LULA: Eu, em qualquer fórum que eu estiver presente, eu não vou falar em guerra. Eu vou falar em paz. Não se trata de você decidir apoiar um país. Se trata de que é preciso alguém começar a falar em paz no mundo. É que precisa a gente provocar tanto a cabeça do Putin quanto a cabeça do Zelensky [Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia] pra pensar em paz. Essa guerra já tá há mais de um ano.
Sabe, é preciso que os presidentes fiquem sensíveis, não para mim, para as pessoas que morrem, para os oito milhões que estão fora da Ucrânia com medo da guerra ou fugindo da guerra. Então, eu acho que todos nós estamos dispostos a participar. O dia em que os dois países se entenderem e falar: "gente, vamos parar com essa guerra, nós temos idade, nós somos maior de idade, temos representatividade civil, nós queremos ajuda para encontrar paz". O dia que falarem isso, o Brasil pode não ser o primeiro, mas será um dos primeiros a estar em qualquer lugar. Agora, pra fazer guerra eu não vou em nenhum lugar. Eu tenho uma guerra no meu país, que é acabar com a fome, que é trazer de volta a democracia pro meu país, que foi jogada no lixo durante quase seis anos. E essa é uma tarefa muito difícil. Talvez seja mais difícil do que mandar um foguete pra Lua. Então, só vou poder mandar um foguete pra lua quando estiver restabelecida a democracia no meu país e acabar com a fome.
Veja, a Angola é engraçado, porque ainda ontem eu tinha discutido fazer indicação. Acontece que não tava na nossa lista a Angola pedindo para entrar no BRICS. Então, o critério foi os países mais antigos que pediram para entrar nos BRICS. Mas você pode ficar certo que se depender do Brasil, na próxima vez, a gente vai colocar o nome de Angola. Porque tem que entrar Angola, tem que entrar Moçambique, tem que tá outros países, muitos países importantes que podem entrar. Você tem a República Democrática do Congo, que tem 100 milhões de habitantes. Você tem a Nigéria, que tem 140 milhões de habitantes. Então é importante que a gente pense em trazer essa gente pro debate. Como o G7 não tá procurando os ricos, o G7 está procurando a ideia da mudança da política e da geopolítica no mundo. Acabar com esta história de guerra fria, acabar com essa história, ou seja, é preciso que a gente sente numa mesa e discuta as nossas diferenças. E chegar a um acordo. O mundo não comporta isso.
De um lado a gente tá vendo o mundo sofrendo um ataque, sabe, horroroso por conta das queimadas, das enchentes, do ciclone, do furacão. O Brasil nem tinha isso e agora começa a ter. Tinha lugar que não chovia, tá chovendo demais; tinha lugar que chovia muito, chove pouco. Estamos vendo incêndio em tudo quanto é lugar. E então nós temos agora que ter muita responsabilidade, muita responsabilidade. Daqui a mais 20 anos, o mundo vai ter nove bilhões de seres humanos vivendo da mesma matéria-prima, vivendo da mesma quantidade de terra, o que tem que avançar são os conhecimentos e, ao mesmo tempo, tem que avançar a generosidade dos governantes.
Não pode 1% das pessoas mais ricas do mundo ter 10% da riqueza da humanidade e 50% mais pobre ter apenas 1%. Não pode. Não pode. Não é possível alguém ficar comprando passagem pra ver se tem algum lugar para morar fora da Terra, enquanto as pessoas estão morrendo atrás de um pedaço de pão na fila das padarias.
Então, quem tem que resolver isso são os governantes do mundo. Não tem ninguém pra resolver a não ser os governantes. Nenhum empresário vai querer abrir mão da sua riqueza. O que que o Bill Gates faz com tanto dinheiro? O que que o pessoal da Apple faz com tanto dinheiro? O que que outros empresários aí que nasceram esses dias na internet, tem tantos bilhões de dólares, pra quê? Se você tem ao mesmo tempo milhões de crianças, você tem os Médicos sem Fronteiras pedindo um dólar, um real por dia, para cuidar das crianças pobres. Não era muito mais fácil a gente resolver esse problema que é mais barato do que ficar com essa concentração louca de riqueza, que não se sabe pra quê? Então, eu penso que vocês são muito jovens.
Vocês são muito jovens e eu penso que vocês vão ver que o mundo está num processo de transformação.
JORNALISTA RICARDO DELLA COLETTA, DA FOLHA DE SÃO PAULO: Presidente, boa tarde. Ricardo Della Coletta, da Folha de São Paulo. No começo da sua fala o senhor destacou a importância de relações que leva em conta as relações de Estado e não de governo no âmbito dos convites que foram feitos. No entanto, no caso de um dos países, a Argentina, a Argentina tá a 60 dias de uma eleição, com as duas forças de oposição. Não só a força mais radical, como a candidatura do Juntos Por El Cambio declaradamente contra o ingresso da Argentina no BRICS. Então, eu queria lhe perguntar como justificar esse argumento de que foi feito numa perspectiva de Estado e não pelas relações de governo e do senhor com o Alberto Fernández [presidente da Argentina]?
PRESIDENTE LULA: Você, você apenas justificou o que eu falei. Você apenas deu veracidade a coisa que eu falei. A mim não importa, não importa do ponto de vista dos BRICS, quem ganha as eleições na Argentina. Todo mundo sabe que eu sou amigo de Alberto Fernández, mas quando tiver uma eleição, que tiver a disputa, o Brasil enquanto Estado vai negociar com o Estado argentino, independentemente de quem seja o presidente. Pode ser que o presidente não queira negociar com o Brasil, é um direito livre e soberano dele. Ninguém vai obrigar. Mas a responsabilidade que nós tomamos hoje, e é isso que dá seriedade da escolha da Argentina, é que a gente não está colocando a questão ideológica dentro dos BRICS. A gente tá colocando a importância geopolítica de cada Estado. E você sabe que a Argentina é muito importante na relação com o Brasil e com a relação com a América do Sul.
Então, a sua pergunta apenas consolida aquilo que eu falei. É muito sério o que nós estamos fazendo nos BRICS. Eu sei que vai ter gente contra, porque tem gente que odeia que a gente dê certo. Sabe aquele cara que torce pro time perder e ele fica com raiva do jogador. Não, nós vamos ganhar.
Os BRICS é uma realidade inexorável. Vai ter problemas? Vai. Vai ter gente que vai gostar mais ou menos? Vai. Mas isso é da política, isso é da política. Se eu não quisesse conviver com divergências políticas, eu não estaria na política. Tá? Então, gente. Obrigado.
JORNALISTAS (SEM IDENTIFICAÇÃO): Presidente já tem um nome para o bloco depois da entrada dos membros? Já foi escolhido um nome? O nome permanece BRICS?
PRESIDENTE LULA: Pra quê? Não, o nome, na minha opinião o nome vai prevalecer BRICS. É bonito. BRICS. Parece até que eu estou falando inglês aqui. BRICS. Então, vai ficar o BRICS. Já está registrada a criança. A criança virou adulta, ela não quer mudar de nome, tá? Obrigado, gente. Até…hein? Tiro uma foto de família.