Pronunciamento do presidente Lula durante lançamento do programa Periferia Viva
Transmissão do lançamento do programa Periferia Viva / Canal Gov
Veja, seria injustiça da nossa parte, do governo, dos ministros, se a gente não chamasse o Guilherme [Simões, Secretário Nacional de Periferias do Ministério das Cidades] para dar uma palavra aqui. Eu acho que... Venha cá, Guilherme.
É porque essa semana eu acabei de ter uma briga com ele e com o Jader Barbalho [ministro das Cidades], porque esse programa demorou muito. Entre a primeira reunião que nós fizemos no ano passado e agora chegar o decreto, eu estava muito ansioso, porque essas coisas nem sempre saem com a pressa que a gente quer. E eu fiquei até um pouco nervoso com o Jader e com o Guilherme, e eu acho importante que você faça uso da palavra aqui, porque hoje a festa não é só nossa, a festa é sua, é da periferia. Fale aqui no microfone.
- Início de pronunciamento do secretário Guilherme Simões
- Retomada da fala do Presidente Lula:
Uma coisa importante que eu quero dizer para vocês é que esse encontro aqui é o encontro dos invisíveis. O dia de hoje é o dia em que a periferia desse país se torna visível para o governo e para a sociedade. Porque há uma coisa que nós temos que aprender: o Brasil tem gente que pode escolher a sua profissão. A pessoa escolhe ser jornalista, escolhe ser engenheiro, escolhe ser sociólogo, escolhe ser qualquer coisa.
Mas tem outra parte da sociedade que fica com o que resta. Da mesma forma, você tem uma parte do povo brasileiro que escolhe onde morar. O cara escolhe a rua, escolhe o bairro, escolhe o centro, escolhe o condomínio — e outros ficam com o que resta. E nem sempre…
Eu começo essa conversa, dizendo para vocês que eu já morei em casa... Eu fico vendo vocês daqui, eu fico lembrando de uma notícia que eu vi na semana passada: quatro milhões e meio de brasileiros não têm um banheiro. É um negócio inacreditável! Um banheiro que é o mínimo essencial para as pessoas terem a sua individualidade, a sua cidadania respeitada.
E eu vivi isso até os sete anos de idade em Pernambuco, quando o nosso banheiro era a primeira moita que a gente encontrava. E eu jamais imaginei que isso continuasse acontecendo em 2024. Morei numa casa, eu não esqueço nunca a rua. Morei numa casa, se tiver alguém aqui na periferia de São Paulo, eu morei numa casa na Vila Carioca, Rua Auriverde, 1.156, na frente do prédio do IBC, o Instituto Brasileiro do Café, que eu estou tentando há dez anos tomar esse instituto, que são 47 mil metros quadrados, porque eu quero fazer alguma coisa de lazer para aquele povo da Vila Carioca que eu não fiz.
E a gente não consegue, porque isso está na Justiça, e a Justiça está guardando o papel, quando a gente poderia estar guardando crianças brincando lá e tendo acesso a lazer. Mas nós vamos conseguir.
E nessa casa que eu morava, Rua Auriverde, 1.156, a gente morava em 27 pessoas. Eu, minha mãe e oito irmãos, um tio e a sua esposa, outro tio, a mulher e mais uma esposa, o seu Cícero, que morava também com dois filhos, e mais uns companheiros que moravam pagando o aluguel da cama que dormia, que pagava pensão.
E nessa casa, com 27 pessoas, não tinha água encanada, não tinha banheiro com privada, e não tinha sequer papel higiênico. E eu morei muitos anos nessa casa. A miséria era tanta que a gente comprava cerveja no supermercado, porque a cerveja quente era mais barata do que a cerveja gelada, e a gente tinha um poço na casa, a gente descia a cerveja dentro de um balde, deixava ela uma meia hora no fundo do poço para a gente beber a cerveja gelada, porque a gente também não tinha geladeira.
E toda vez que eu converso com alguém que está morando num lugar que enche d'água, que está num lugar que tem desbarrancamento, que está em lugar bem afastado do centro, eu fico lembrando, porque eu sei como é a vida de vocês.
Eu sei como é a vida daqueles que não têm o direito de escolher a sua profissão, não têm o direito de escolher o seu bairro, não têm o direito de escolher a escola, eles ficam com o que sobra. E é isso que eu chamo de brasileiros invisíveis, e que nós estamos tentando dar visibilidade.
E aí eu tenho que parabenizar o Jader, o Guilherme e as pessoas dos outros ministérios que trabalharam, porque não pensem que é fácil a gente decidir fazer essas políticas. Não pensem que é fácil. Tudo, tudo, sem distinção, que a gente tenta fazer para as pessoas mais humildes é sempre muito difícil. Sempre muito difícil!
Nós estamos num processo político de fazer uma certa contenção de despesa para a gente poder cuidar do orçamento. Se não chega no fim do ano, o orçamento não cabe, as despesas que nós fizemos, e aí a gente é obrigado a comunicar aos ministros: “olha, não tem dinheiro”.
Aí é uma guerra silenciosa contra o presidente. “Libera dinheiro, libera dinheiro”, e não tem. E a gente não pode gastar mais do que a gente tem no orçamento porque nós aprovamos um arcabouço fiscal. E nós estamos aprovando uma série de medidas de contenção, de moralização, em todas as áreas.
Ninguém tem o direito de receber o que não tem direito. Ninguém. Ou seja, ninguém pode ser malandro a ponto de receber um benefício que não tem direito. Então nós estamos tentando fazer um processo de investigação, quem é que está recebendo corretamente, quem é que não está recebendo corretamente, para a gente poder moralizar o país e o dinheiro dar para a gente cuidar de todas as pessoas.
E ao mesmo tempo, a gente está fazendo, junto com essa política de contenção, uma política de renda para tentar dar uma ajeitada na casa. E nós estamos isentando as pessoas que ganham até R$ 5 mil por mês de pagar Imposto de Renda, que são mais de 70 milhões de pessoas.
E nós estamos fazendo uma coisa muito correta, uma coisa muito justa, não estamos tentando criar uma coisa complicada, estamos fazendo uma reforma sem neutralidade, para as coisas ficarem muito, muito, muito bem feitas. E obviamente que a gente vai ter que cobrar um pouco mais de imposto das pessoas mais ricas, o que é normal. Não tem nenhum problema.
Isso vai para o Senado, isso vai para a Câmara [dos Deputados], nós vamos trabalhar para tentar ver se a gente consegue tornar esse país um pouco mais justo, esse país um pouco mais humano, esse país um pouco mais fraterno.
Vocês sabem que quando eu voltei agora, em 2023, a gente não tinha mais o Ministério das Cidades. A gente não tinha mais o Ministério da Igualdade Racial. A gente não tinha mais o Ministério da Cultura. A gente não tinha mais o Ministério das Mulheres. E vários outros ministérios que eles acabaram, porque esses ministérios que cuidam das coisas específicas de cada setor da sociedade, não interessa para eles.
Não interessa, ou seja, nós somos invisíveis. “A gente não tem que ser enxergado. A gente não precisa tratar de indígena, de quilombola, a gente não precisa tratar do povo periférico, porque, sabe, vocês ficam com o resto, então, para que cuidar de vocês?”.
Então, nós estamos tentando fazer com que as coisas aconteçam nesse país da forma mais correta possível. A Bahia está tendo a maior chuva dos últimos tempos, a Bahia está assolada. Ontem já morreu uma pessoa e parece que quatro pessoas desapareceram. No Rio Grande do Sul, vocês viram o que aconteceu.
E aí é um lugar que tem muita água, seca, é um lugar que é seco com muita água. Isso é uma lição para nós, gente. O planeta está se movimentando. O planeta está dizendo: “parem, parem, cuidem, porque senão eu não vou ter jeito de cuidar de vocês”. E nós precisamos fazer as pessoas entenderem isso.
E eu, companheiros, estou convencido que a única forma de a gente fazer a sociedade mundial entender isso é a gente começar a ensinar no ensino fundamental para as crianças brasileiras e do mundo saberem o que é essa questão climática.
Então, eu que estava, companheiro Jader, com um discursinho bem feito aqui para ler, não vou ler discurso. Eu não vou ler discurso, porque eu quero que vocês saibam que nós temos apenas um ano e onze meses de governo. Ainda não fizemos dois anos de governo. Mas nós já plantamos tudo o que a gente vai ter que colher nos últimos dois anos. Está tudo plantado. Que não venha nenhum ministro dizer para mim: “presidente, precisamos fazer mais uma coisa”. Não, não tem que fazer, agora é colher.
Se a gente não colher o que a gente plantou e ficar tentando plantar coisa nova, a gente nem vai colher a coisa nova, nem vai colher a coisa velha. Então, nós temos muita coisa para colher nesse país. Nós temos que colher a Escola de Tempo Integral, que é uma coisa extremamente importante. Nós temos que colher a alfabetização no tempo certo, até o segundo ano fundamental, as crianças têm que estar alfabetizadas. Nós temos que colher o Pé-de-Meia que nós acabamos de plantar, que é uma coisa para salvar as nossas adolescentes, as nossas meninas de desistir da escola.
Não é apenas um programa, não é um programa para dar R$ 200 para os meninos, para as meninas, não. É um programa para salvar esse país. Porque se a gente permite que 500 mil meninas e meninos deixem de fazer o ensino médio, porque têm que trabalhar para poder sobreviver, eu fico me perguntando que país seremos nós no futuro.
Então, as pessoas precisam compreender que isso é investimento que nós temos que fazer no futuro desse país. E nós plantamos as coisas direitinho. Vocês estão lembrados que o Ministério da Cultura nem existia mais? E agora a gente está com o Ministério da Cultura funcionando em todos os estados e mais os núcleos de cultura em todos os municípios brasileiros.
E vocês sabem que a gente decidiu cortar os investimentos da Cultura para os governadores e prefeitos que não aplicaram o que nós mandamos esse ano. Se não gastou o dinheiro em cultura, não tem porque receber dinheiro de cultura. Então, eu queria terminar dizendo para vocês que esses sete milhões, o ministro das Cidades falou em tantos bilhões, falou em sete milhões, falou em cinco milhões, isso é muito dinheiro se a gente colocar uma nota em cima da outra.
Se a gente tivesse uma mala para colocar esse dinheiro em uma mala. Não, mas quando a gente percebe a necessidade que tem a periferia desse país, a gente percebe o descaso que a gente foi relegado ao longo de anos, não é de agora não.
Eu digo sempre que os prefeitos que entraram nesse país a partir dos anos 80, eles, na verdade, não estão governando, eles estão recuperando o descaso que foi feito nos anos 50, nos anos 60, no auge do êxodo rural. Porque as pessoas vinham para a cidade sem nenhum preparo, não tinha nenhum preparo para receber, e as pessoas iam para onde a polícia deixava. E agora está cada vez mais difícil encontrar o lugar, está cada vez mais longínquo.
Eu falei para o companheiro ministro das Cidades, nós temos um conjunto habitacional que vai ser inaugurado em um estado, que é quase 3 mil casas (ou 12 mil pessoas). E eu não vou inaugurar esse conjunto habitacional se a gente não remodelá-lo. Porque se a gente fizer 3 mil casas juntas, sem os campos de futebol, sem as escolas, sem as creches, sem o centro de cultura, a gente vai criar um parque para o narcotráfico ficar trabalhando lá dentro.
Então, eu só quero que vocês saibam que isso só pode ser feito por causa de vocês. Vocês sabem o que está acontecendo na política mundial e na política brasileira. Vocês sabem a quantidade de mentiras, a quantidade de ódio. Vocês sabem a tentativa de golpe em 2022, que agora está ficando verdadeira, ninguém pode mais desmentir, porque, na verdade, eles tentaram dar um golpe para não deixar que a gente assumisse a Presidência da República.
É isso que eles tentaram fazer. Então, o que nós temos que saber, o que nós temos que saber é que vocês são os agentes que podem permitir que a democracia sobreviva nesse país. Porque somente com democracia a gente pode fazer o que a gente está fazendo. E somente com democracia... é uma coisa difícil, porque a democracia exige paciência, exige debate. Eu, quando alguém me pergunta o que é democracia, eu dou como exemplo uma família. Não tem nada mais democrático do que a experiência de um casamento.
Se você for casado e tiver uma família e você não fizer concessão para a sua mulher e para o seu filho todo dia, o casamento acaba. Mas se a mulher também não fizer a concessão para o marido, o casamento acaba. Então, é sempre um jogo de ceder. É o moleque que quer um bife a mais, que não tem um bife. O moleque que quer um presente que a gente não pode dar. E se a gente não for levando isso na base da conversa, tudo fica muito difícil.
A democracia é um exercício de sobrevivência. E é isso que nós queremos construir neste país. Uma sociedade civilizada, onde todos têm o direito, mas todos respeitam os direitos dos outros. Onde a gente possa torcer para times diferentes, sem brigar. Onde a gente pode professar uma religião sem ser inimigo da outra. Onde a gente pode votar no candidato sem precisar virar inimigo do outro.
É isso que a gente precisa nesse país, para que a gente possa garantir para vocês um programa como esse, chamado Periferia Viva. Porque é a primeira coisa extraordinária de dizer: vocês não serão mais invisíveis; nós estaremos enxergando vocês!
Por isso, parabéns, queridos. Parabéns, Jader. Parabéns, ministros. Parabéns, companheiro Guilherme. E pode estar certo: daqui para frente é só para melhorar. Piorar, jamais.
Um abraço.