Pronunciamento do presidente lula na 12ª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
Eu não poderia deixar de participar desse encontro, porque eu acho que nós vivemos um instante na história desse país que nós precisamos conversar muito, nós precisamos falar muito, porque é preciso que a gente retome uma nação em que prevaleça a verdade e não a mentira, que prevaleça a fraternidade e não o ódio, que prevaleça a solidariedade e não o individualismo.
E essa sociedade só pode ser construída se a gente conversar, se a gente não tiver medo de conversar. E se o governo não se achar tutor da sociedade, achar que de cima do pedestal pode fazer tudo para as pessoas e não permitir que as pessoas façam por si mesmas aqui que elas têm capacidade de fazer.
O governo não pode tudo. O governo precisa ter mais ouvido do que boca. Ele precisa muitas vezes ouvir mais do que falar. Prestar atenção nas coisas que acontecem a partir da realidade das pessoas. E por isso, eu queria começar aqui agradecendo aos companheiros e companheiras que estão aqui.
A minha companheira Janja, ao meu companheiro Silvio Almeida, ministro de Direitos Humanos, ao companheiro Márcio Macêdo (ministro da Secretaria-Geral da Presidência), à Rita Cristina, da Secretaria Executiva do Ministério do Direito Humanos e da Cidadania. A Marina de Poniwas, presidente do Conselho Nacional da Criança do Adolescente, (Conanda), o Cláudio Augusto Vieira, secretário nacional do Direito da Criança e do Adolescente, e os nossos dois queridos jovens, Eduarda Naiara Lemes de Andrade e William Eleutério Azevedo dos Santos, por meio de quem eu quero cumprimentar todos vocês no fundo do coração.
Obrigado por vocês existirem, porque se não fosse vocês, possivelmente isso não estivesse acontecendo.
A última Conferência Nacional, me parece que foi em 2019, e quando se parou de convocar a Conferência Nacional, o que estava por trás da decisão era fazer com que essa Conferência caísse no esquecimento, porque para muita gente, quanto mais silenciosa for a humanidade, quanto menos protesto ela fizer, quanto menos reivindicação ela fizer, melhor para quem governa com o espírito, com a cabeça do autoritarismo.
E esse encontro de hoje precisa ter uma homenagem às pessoas. Eu estava perguntando para a nossa coordenadora, se ela se lembra quantas crianças ficaram órfãs de pai e mãe por conta da Covid. Ela disse que foram 40 mil crianças que ficaram órfãs de pai e mãe. E não ficaram órfãs porque a doença não tinha cura. Ficaram órfãs porque nós tivemos alguém muito irresponsável que pensava que governava esse país.
Eu queria pedir um gesto para vocês, para uma fotografia, que eu acho importante ser tirada. Eu queria, se vocês pudessem, levantasse a mão para a gente fazer uma foto e dedicar esse encontro a algumas pessoas que não podem estar entre nós. Vamos levantar a mão, se não a foto não sai bonita.
Esse levantar de mãos de vocês é na verdade uma demonstração da nossa solidariedade a quase 735 milhões de pessoas, dentre as quais muitas crianças que vão dormir toda noite sem ter um copo de leite para tomar ou um pedaço de pão para comer. É as crianças, as quase 40 mil que morreram e ficaram órfãos de pai e mãe por conta da Covid. São as crianças que no Brasil morrem de desnutrição porque ainda não recebem as calorias da proteína necessária.
Mas, sobretudo, é uma homenagem a quase 12,3 mil crianças que morreram na Faixa de Gaza, em Israel, bombardeada em uma guerra insana contra a humanidade. E nós não podemos perder o direito de nos indignarmos. Quando a sociedade perde o direito da indignação, tudo fica normal. E quando tudo cai na normalidade e que a gente não acha nada diferente, que a gente não se indigna com nada, significa que alguma coisa está errada no nosso comportamento.
Nós acabamos de criar um programa nesse país chamado Pé-de-Meia. Esse Pé-de-Meia é para reparar uma coisa absurda que acontecia quando eu era criança e que acontece hoje. Eu, com 12 anos de idade, trabalhava de ajudante numa tinturaria em que eu saía para carregar os ternos para entregar por donos com cabo de vassoura colocada no pescoço e eu não era tão alto, eu era baixinho, vocês percebem que eu não cresci muito e muitas vezes, dependendo do tamanho do cliente, eu chegava com a marca do terno sujo que arrastava no chão.
Eu tinha que levar de volta para a tinturaria para lavar. Ainda bem que o senhor dono tintureiro era uma alma boa que nunca fez eu pagar pela sujeira dos ternos que eu fazia e nunca nem o dono dos ternos reclamou comigo. E hoje nós sabemos que 480 mil pessoas adolescentes desistem do ensino médio porque têm que ajudar no orçamento familiar, porque têm que trabalhar. E por isso nós criamos o Pé-de-Meia. O Pé-de-Meia é um programa que vai precisar de um investimento de quase R$ 7 bilhões.
E esse dinheiro a gente vai dar R$ 200 para cada jovem que está estudando, não é para todo mundo porque é para pessoas mais pobre, a gente vai dar R$ 200 por mês durante 10 meses, se ele tiver 80% de comparecimento na escola e ele tiver passado na prova vai ter R$ 1 mil depositado na poupança dele. No ano seguinte nós vamos repetir a mesma coisa: R$ 200 por mês e mais R$ 1 mil depois que ele passar de ano e no terceiro ano a mesma coisa. Significa que, quando ele terminar o terceiro ano do ensino médio, se ele não gastou o dinheiro dele, porque ele pode utilizar os R$ 200 por mês para comprar alguma coisa, afinal de contas o dinheiro é para ajudar ele, ou seja, ele pode ter R$ 9 mil para começar uma vida mais digna na sua adolescência.
Bem, esse programa está atendendo hoje 2,8 milhões de pessoas, mas nós temos que ter uma linha de corte. Para quem que a gente vai dar se gente não pode dar para todo mundo? Então a gente escolheu como linha de corte o Bolsa Família.
Mas se a gente for atender ao chamado Cadastro Único, CadÚnico, a gente vai ter que colocar mais um milhão de crianças. Mesmo colocando mais um milhão de crianças, ficam três milhões de adolescentes sem receber, porque só as pessoas que estão um pouquinho melhor do que as outras, muitas vezes não tão muito melhor, mas não estão no paradigma e na linha de corte que a gente atendeu. Também nós tomamos a decisão de chegar até 2026 com quatro milhões de crianças em escolas de tempo integral por parte do Governo Federal, financiando os prefeitos e os estados.
E também a gente sabe que a gente não vai poder atender todo mundo, nós começamos com 1,2 milhão de crianças. E também começamos um outro programa para recuperar os prejuízos que as crianças tiveram durante a pandemia, que a qualidade do ensino das crianças mais pobres em escolas públicas piorou nesse país. A gente criou o programa alfabetizando na hora certa (Compromisso Nacional Criança Alfabetizada) para que a gente possa alfabetizar as nossas crianças até o final do segundo ano escolar, porque se ele não for alfabetizado no tempo certo, ele vai ter a tendência de ser um aluno que vai sempre mal a cada ano que passa.
É isso que a gente tem que fazer para garantir às crianças e ao adolescente brasileiro uma oportunidade digna de vida decente e de um futuro promissor, muitas vezes melhor do que aquele que ele recebeu dos seus pais. Isso é pouco diante da quantidade de coisas que nós precisamos fazer neste país. E como a gente sabe que a gente tem uma dívida com a sociedade brasileira e uma dívida histórica, que não é culpa individualmente de nenhum de vocês que estão aqui, nem minha, nem de outro presidente de ontem, de antes de ontem. É uma dívida histórica… Nesse país, filho de pobre não nasceu para ir para a universidade, ele nasceu para trabalhar. Um tempo era para cortar cana, outro tempo era para ajudar em qualquer serviço, até a dificuldade de ter uma profissão ele tinha. Então, essa revolução que nós precisamos fazer, quando eu cheguei na presidência, tinha 140 escolas técnicas construídas em 100 anos.
Em 100 anos, esse país construiu 140 escolas técnicas. Nós vamos construir 782 escolas técnicas para que a gente faça uma revolução para beneficiar os adolescentes brasileiros. Agora mesmo, anunciamos mais 100, e como o Pelé ficou famoso porque ele queria marcar os mil gols e ele marcou 1.200, eu assumi o compromisso com a minha consciência que até o final do meu mandato nós vamos chegar a 1.000 escolas técnicas e institutos federais nesse país.
É o pagamento de uma dívida histórica que envolve as famílias mais humildes desse país, os trabalhadores, a classe média baixa, que envolve os negros, porque nós somos resultado de 350 anos de escravidão, de 350 anos de preconceito e de 350 anos de uma desigualdade racial que não tem similar no mundo, que recupera o problema da dignidade da desfeita aos povos indígenas, que muita gente fala: “Ah, mas os indígenas têm 14% do território nacional, é muita terra para os indígenas”. Antes de nós eles tinham todo o território nacional, eles não tinham 14%.
E é apenas uma questão de a gente respeitar as pessoas como elas são. Vocês que são adolescentes, vocês precisam saber: esse país foi o último país a garantir o voto da mulher, esse país foi o último a abolir a escravidão, esse país foi o último a fazer a independência, e esse país foi o último a ter uma universidade. Eu conto isso pra vocês aprenderem.
O Peru, em 1554 já tinha a primeira Universidade, que é a Universidade de São Marcos. O Brasil só foi ter a primeira em 1920. E por que a gente fez a primeira? Porque o rei da Bélgica vinha para o Brasil. E o rei só poderia vir se tivesse o título de Doutor Honoris causa, e para ter o título tinha que ter a universidade. Então, se juntou um monte de faculdade e criou-se nesse país a primeira universidade. E eu, que não tenho o curso universitário, tenho orgulho. Não ando de nariz empinado, porque a cabeça é muito grande e o pescoço é curto, mas tenho orgulho de ser o presidente da República que mais fez universidades, que mais fez extensões universitárias e que mais fez Institutos Federais nesse país.
E quando a pessoa pergunta por que você tem obsessão pela educação, a minha obsessão é porque eu não tive oportunidade. A minha obsessão é porque eu tenho muita coisa na minha cabeça por que eu não consegui fazer universidade. Eu também tinha vontade de ser doutor, eu também tinha vontade de ser alguma coisa mais chique da educação. Entretanto, o máximo que eu consegui fazer, o máximo de uma família de oito irmãos foi ter o curso primário, eu fui o primeiro a ter o curso primário e o primeiro a fazer o ensino profissional que eu fiz um curso técnico. Nenhum outro irmão meu não conseguiu fazer isso. Então, eu tenho uma obsessão de garantir para as pessoas que não nasceram em peso de ouro, para as pessoas que não têm salários muito altos, o direito de ter aquilo que é a essência do Estado.
Não existe uma criança mais inteligente do que a outra, não existe ser humano mais inteligente, o que precisa é garantir igualdade de oportunidades para todo mundo disputar as coisas nesse país. Eu estava contando ontem na inauguração da primeira faculdade de matemática no Rio de Janeiro que, quando nós fomos criar a Olimpíada da Matemática nesse país, não sei se algum de vocês já fez a Olimpíada da Matemática, a Olimpíada da Matemática era feita apenas em escola particular. E os dois estados que tinham mais Olimpíada eram Piauí e Ceará, mais do que o Sul do país. E a professora Suely Druck me procurou para dizer: “presidente”. Ela me trouxe uns alunos para me apresentar, com medalha de ouro, e falou: “presidente, vamos tentar fazer na escola pública?” Eu falei: “vamos”.
Quando eu tentei pensar em fazer na escola pública, apareceram centenas de pessoas: “Não, presidente, não pode fazer, porque o aluno de escola pública não vai ter interesse, o aluno de escola pública não vai querer participar”. Sabe o que aconteceu? No primeiro ano, se inscreveram 10 milhões de crianças para fazer a Olímpiada da Matemática.
Não sei se vocês lembram de uma cena, uma cena que me emociona até hoje, um aluno do Ceará tetraplégico, que ele ia para a escola num carrinho de pedreiro, o pai levava ele deitado num carrinho de pedreiro. Esse moleque ganhou medalha de ouro nas Olimpíadas da Matemática. Aquilo era quase que um gesto divino de Deus falar: “Esse moleque tem que ganhar para as pessoas perceberem que nada é proibido para o ser humano quando ele tem oportunidade e quando ele tem vontade”.
O governo não faz, o governo abre a porta, quem tem que fazer é vocês com o incentivo da mãe, do pai, da família, do avô, da avó, é vocês que fazem. Então, é esse país que nós queremos construir. Esse país depende de nós. Quando eu vejo vocês participando aqui, essa quantidade de adolescentes participando. Eu sou de uma geração em que quando o pai da gente estava conversando, a gente não podia nem passar perto, nem passar perto. Eu sou da geração em que a gente tinha que tomar bênção para a mãe e para o pai todo dia, a hora que levantava e na hora de dormir.
Eu sou de uma geração muito pesada, em que a servente da escola, dentro da sala de aula, andava com uma régua de um metro de madeira, se pegava a gente brincando, dava uma reguada de quina na nossa cabeça que você passava o dia coçando a cabeça. Eu sou da geração em que a gente ajoelhava em caroço de feijão para ser castigado. E eu não quero que uma criança sofra castigo porque não sabe de alguma coisa. Se ela não sabe, ela tem que aprender. Se ela não sabe, nós temos que ensinar. É esse o papel do Estado. Não é castigar, é dar oportunidade. É exigir aos professores (que tem que ganhar um salário decente, porque também ninguém precisa trabalhar ganhando pouco), a dar a aula.
Eu, de vez em quando, brinco o seguinte: se o professor entra na sala de aula e dá uma aula e o aluno não aprendeu, ele pode até dizer que o aluno é ineficiente, que o aluno não é inteligente, que o aluno é atrasado, mas se ele dá a segunda a aula e o aluno continua não aprendendo, o aluno continua sendo ineficiente, continua sendo atrasado, mas se ele dá terceira aula e o aluno não aprende, nós precisamos é dar melhor educação para o professor, para ele saber que ele tem a obrigação de ensinar corretamente os alunos.
Então, companheiros e companheiras, eu que pedi para minha querida companheira Janja vir aqui com o meu discurso para eu ler, eu acho que eu já falei demais, porque eu acho que eu não tenho que ler mais o meu discurso. Eu só queria dizer para vocês o seguinte: não tenham medo de reivindicar, não tenham medo de falar, não tenham medo de dizer a verdade para nós.
Nós, que somos políticos precisamos aprender que muitas vezes ouvir, muitas vezes ser questionado, muitas vezes as pessoas nos darem bronca, é melhor do que a gente ter um bando de puxa saco, só batendo nas costas da gente e dizendo que está tudo bem. É melhor porque senão a gente não faz, a gente se acomoda, a gente se acomoda dentro de casa. A gente se acomoda. Então cobre de nós porque nós fomos eleitos para fazer, nós fomos eleitos para atender exatamente a parcela da sociedade que precisa do Estado. Os banqueiros não precisam do Estado, mas exigem que o Estado faça superávit primário e coloque à disposição deles bilhões. Os grandes empresários não deveriam precisar do Estado, mas precisam do Estado porque vivem pegando dinheiro emprestado do Estado. E assim muitos outros setores que precisavam do Estado.
Quem é que precisa do estado? É o povo trabalhador, é a classe média baixa que paga 80% de imposto de renda nesse país, porque ricos também pagam muito pouco imposto de renda, quem paga é quem trabalha e recebe contracheque no final do mês.
Então, nós temos que ter consciência, embora eu tenha sido eleito para governar para 203 milhões de brasileiros, eu não posso perder de vista que dentre esses 203 milhões de brasileiros, tem uma maioria que precisa do Estado, precisa de emprego, de salário, de saúde, de educação, de transporte coletivo, de casa para morar. É esses que a gente tem que cuidar, é desses que a gente tem que priorizar e é por isso que a gente vai priorizar a parte da sociedade que precisa verdadeiramente do governo. Senão fica tudo muito fácil.
O pobre não pode protestar, não pode se organizar, e quando eu vejo a qualidade dos adolescentes que vieram aqui, os nossos dois pimpolhos que falaram aqui, a nossa Eduarda e o nosso William, eu fico feliz. E vou terminar dizendo para vocês: eu acho que o clã Brasil entrou numa rota e que não tem mais volta.
Nós temos que dizer assim: nós somos seres humanos, nós não somos algoritmos, nós temos sentimento, nós somos pessoas fraternas. Eu quero cuidar da minha família, a família tem que viver em harmonia. A família não pode viver na base do ódio, o moleque não pode ir para a escola com raiva da escola porque ele precisa da escola ser uma coisa gostosa para as crianças e adolescentes saírem de casa com vontade de estudar.
Se não, está tudo errado. E não queria dizer, Eduarda e William, a presença de vocês aqui é a certeza de que esse país está no rumo certo e a gente não vai voltar atrás.
Um abraço ao Conanda, um abraço a você, meu caro ministro dos Direitos Humanos, e um abraço a todos vocês que com todo sacrifício puderam garantir que, depois de oito anos, a gente voltasse a fazer a Conferência da Criança e do Adolescente neste país.
Um beijo no coração e boa sorte para todos nós.