Pronunciamento do presidente Lula na cerimônia de sanção da lei que institui pensão especial para órfãos do feminicídio
Bem, companheiros e companheiras.
Sancionar uma lei, na verdade, não deveria ser motivo de orgulho para um presidente da República, não deveria ser motivo de orgulho para um deputado ou uma deputada ter votado essa lei, não deveria ser motivo de orgulho a gente estar fazendo uma reunião para discutir uma das coisas mais abomináveis que acontecem na relação humana em pleno século XXI, que é a mulher se transformar em vítima prioritária, dentro da sua própria casa, por marido, por namorado, por ex-marido, por ex-namorado, e às vezes por outras pessoas.
E ainda é mais abominável saber que grande parte das vítimas do feminicídio são mulheres pobres e negras. E ainda muito mais grave do que tudo isso é saber que cada mulher dessa que é vítima tem um filho ou uma filha que vão ficar dependendo de terceiros para tentar cuidar para que tenha um futuro digno nesse país.
Então é uma lei que eu sanciono com tristeza. Eu até nem gostaria que tivesse mulher aqui, que tivesse só homem, pra gente se perguntar o que que leva um ser humano, masculino, ser tão baixo, ser tão rasteiro, ser tão canalha de agredir uma companheira dentro de casa?
Não tem explicação. E o que é mais grave, Flávio Dino, é que quando eu sancionei a Lei Maria da Penha, há quase 15 anos atrás, eu imaginava que ia diminuir a violência. Eu cansei de fazer a campanha, me parece que foi a campanha de 2006, dizendo aos quatro cantos desse país que tinha chegado a hora que marido que levantasse a mão para bater na sua companheira, que namorado que levantasse a mão para bater no seu companheiro, teria que ter uma prisão muito longa para que ele nunca se esquecesse do ato bárbaro que ele fez.
E o que aconteceu é que tem piorado a situação, e eu fico me perguntando aonde é que está o equívoco que a humanidade cometeu, quando junto com tanta gente boa a humanidade pariu uma besta fera capaz de, dentro de casa, ser violento, não com a mulher, mas com a sua própria família. Em que momento nós erramos na formação da humanidade, Benedita da Silva? Em que momento? Será que foi falta de escola? Será que foi falta de educação no berço? Será que foi falta de convivência civilizada? Será que foi má educação que essa pessoa recebeu? Será que foi as companhias que ele teve durante a vida? Eu continuo sem resposta. Em que momento a gente criou um ser humano capaz de violentar uma parceira e levá-la à morte por irresponsabilidade? Poder-se-ia dizer que é por cachaça, por droga, mas muitas vezes não é por nada.
Muitas vezes é por canalhice, mau caratismo, falta de respeito, de educação. Porque eu sou filho de uma mulher analfabeta, que educou oito filhos, e ela sempre dizia: "Meu filho, se um dia você tiver que levantar a mão para bater na sua mulher, é melhor você criar vergonha e sair de casa, porque mulher não foi feita para apanhar, mulher foi feita pra ser sua companheira, e é disso que ela precisa".
E o que é mais grave é que a gente quando a gente lê matéria de jornais a gente percebe que não são apenas no meio dos pobres e no meio do povo negro que acontece isso. Não. Acontece em setores médios da sociedade e setores da alta sociedade. Com gente com bastante dinheiro, com gente com bastante informação intelectual. Com gente que já deveria ter lido o suficiente para compreender que não é possível a gente continuar sendo o quinto país do mundo em que tem mais homicídios. Eu confesso a vocês, companheiras mulheres e companheiros homens, que eu não sei a origem dessa brutalidade. Aliás, eu não conheço a origem da violência, eu não conheço a origem porque quando eu vejo, lá na Faixa de Gaza, 3 mil crianças sucumbirem numa guerra em que elas não promoveram, que elas não pediram, que elas não reivindicaram, que os irresponsáveis que fizeram a guerra estão chorando a morte dessas crianças, tão sentindo o peso das coisas.
Aí a gente fica até com saudade do tempo em que as guerras eram de soldados. Vai soldado do Flávio Dino, vai soldado do Lula pro campo de batalha debater. Quebra suas espadas, quebra suas testas, mas é soldado brigando com soldado. Não, nós estamos vendo pela primeira vez uma guerra em que a maioria dos mortos é criança, e ninguém tem responsabilidade. A gente não consegue fazer uma carta da ONU convencendo as pessoas que estão ganhando de que não é possível. E parem, pelo amor de Deus, parem.
Resolver o problema em torno de uma mesa de negociação, em torno de uma conversa, é muito mais barato, é muito mais fácil, é muito mais econômico. Um casal dentro de casa, quando tem algum problema de desavença, sentem em uma mesa, conversem, discutam. Mas não é possível a gente chegar às vias de fato por uma divergência, por ciúmes, sabe, e, veja, eu conheço caso de pessoas que saíram de casa, que se separou da sua mulher, e não permite que a mulher pense em namorar outra vez, porque é dele a mulher.
Ela não pode ter outra vida porque ele não quer. Ele é dono dela, portanto ela tem que ficar vendo ele fazer todas as safadezas do mundo que ele faz, e ela ficar cuidando das crianças dele. Isso acontece todo dia e toda hora. E eu queria pedir um conselho para aqueles que estudaram mais, para aqueles que são médicos, para aqueles que são advogados. É preciso que a gente encontre um jeito de a partir da escola, a partir da creche, a gente comece a educar nossos filhos de que é muito melhor para a humanidade eles serem bons, eles serem fraternos, eles serem solidários, eles serem amorosos com as suas companheiras, e aprender a viver em amor. É muito mais fácil, é muito mais barato, é muito mais prazeroso, e é muito mais digno para esse animal chamado espécie humana, que é o único animal que se autodestrói, que mata sem nenhuma razão. Não precisa de razão, mas se destrói como nenhum outro animal se destrói na face da terra. Ainda dizem que nós somos a parte inteligente do mundo animal, que nós somos racionais.
Eu queria dizer para vocês que nós não somos a parte inteligente do mundo animal, e tampouco nós somos os racionais, porque o nosso comportamento, em tudo que a gente faz, do cuidado do clima, do cuidado do planeta ao cuidado da relação com as pessoas, com ódio que está estabelecido nesse país, eu poderia dizer que aqui no Brasil uma boa parcela da humanidade se comporta de forma irracional, como se animais não fossem.
Parabéns aos deputados e senadoras que aprovaram essa lei. Eu espero que a gente não tenha que fazer mais lei, eu espero que a gente possa fazer um ato e comemorar que em tal ano não houve nenhum feminicídio no Brasil, que em tal ano nenhuma foi violentada dentro ou fora de casa, em tal ano o ser humano aprendeu a se respeitar. Quando esse dia chegar, todos nós seremos muito mais felizes.
Obrigado, companheiros.