Pronunciamento do presidente Lula durante cerimônia de lançamento do Plano Brasil Sem Fome
Primeiro, eu queria agradecer ao povo do Piauí, não apenas pelo resultado das eleições de 2022, porque eu fui muito votado no Piauí em 89, em 94, em 98, em 2002, em 2006. A Dilma [Dilma Rousseff, ex-presidenta da República] em 2010, a Dilma em 2014. O Haddad [Fernando Haddad, ministro da Fazenda] em 2018, e eu em 2022. Então, se dependesse do Piauí, a gente teria sido presidente da República muito tempo atrás.
Eu queria agradecer a presença dos governadores da Bahia, do Maranhão e o vice-governador do estado de Alagoas, que estão aqui prestigiando esse lançamento do programa Brasil Sem Fome.
Wellington [Wellington Dias, ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome], tem um problema que eu tô notando no lançamento desse programa, que a quantidade de informações que foi passada pra esse povo, eu não sei se eles conseguiram guardar as informações. É preciso, então, que o ministério trate de fazer uma publicidade, bem adequada, para que todas as pessoas saibam o que é o Brasil Sem Fome, que nós estamos lançando hoje. É importante que vocês saibam o porquê da informação que vocês tiverem, a gente pode ter mais sucesso ou menos sucesso no programa.
Também, eu não sei se eu vou falar aqui uma coisa, com a quantidade de crianças que eu estou vendo nesse lançamento. Eu, fazia tempo, muito tempo que eu não via em uma manifestação pública tanta criança, no colo do pai ou da mãe, participando. Faz muito tempo. E eu vendo essas crianças, eu queria começar a falar …
Uma coisa que eu vou dizer. Tem uma senhora que tá aqui na frente, que tá com uma foto minha, que eu acho que é da campanha minha de 89, e eu tô boquiaberto porque a Janja [primeira-dama do Brasil] viu aquela foto e falou: "Puxa vida!! Eu não sabia que você era tão bonito quando você era mais novo".
Bem, eu queria contar um caso aqui para as mulheres que estão aqui, para os homens e para as crianças. Eu vou contar uma história que alguns já sabem, mas eu tenho certeza que muita gente jovem não sabe. Eu nasci no estado de Pernambuco, fui pra São Paulo com sete anos de idade e eu fui comer pão pela primeira vez em São Paulo. Aonde eu morei em Caetés, como era longe de Garanhuns, e eu morava num lugar chamado Vargem Comprida, bem afastado da cidade, pão que era bom, eu não conhecia.
O café da manhã era uma cuia, na verdade nem cuia. Não sei se aqui no Piauí chama quenga, um coco partido no meio. A gente pegava aquele coco – lá em Pernambuco a gente chamava quenga, porque cuia é de cabaça e a quenga era um coco partido no meio – e a gente colocava farinha de mandioca, colocava café preto e era aquilo que era o sustento da gente de manhã. Eu sei que aqui muita gente sabe o que é isso.
Eu fui para São Paulo e quero dizer para vocês, eu fui morar numa casa que era um quarto e cozinha, e a gente morava em 13 pessoas num quarto e cozinha. Treze. Treze pessoas aonde a gente tinha um banheiro no fundo da casa que era utilizado pelos fregueses do bar, porque a casa era no fundo do bar. Era aquele banheiro que as pessoas que tomavam umas cachacinhas e depois iam fazer xixi, fora do vaso sanitário, que a gente utilizava durante muito tempo.
Comer que era bom, era muito difícil. Eu não tinha noção do que é a gente não comer as calorias e as proteínas necessárias. Às vezes, a gente até tá comendo alguma coisa que não tem as calorias e as proteínas que o corpo humano necessita. Por isso é que a questão da fome é uma coisa que mexe muito comigo. Porque a fome, ela não é vista pelos outros. A fome, ela não dói pra fora, ela dói pra dentro, e todo mundo sabe o que é o sofrimento de uma mãe colocar uma criança para dormir sabendo que a criança tá com fome e esta criança acorda, muitas vezes não tem um pedaço de pão ou um copo de café com leite para tomar. Isso não deveria acontecer no Brasil, porque o Brasil é um país rico. O Brasil é um país que tem muita terra.
Dizem que aqui se plantando tudo dá. O Brasil tem conhecimento científico, tecnológico, genética, nós temos de mais. O Brasil é o terceiro produtor de grãos do mundo. O Brasil é o primeiro produtor de proteína animal do mundo. De carne, de carne de frango, de carne de porco, de carne de bode, de carne de carneiro, de carne de vaca, de tudo que é coisa. Então, qual é a explicação que um país que produz tudo, como nós produzimos, tem 33 milhões de pessoas passando fome?
O problema não é falta de comida. O problema não é falta de plantar. O problema é que o povo não tem dinheiro para ter acesso à comida. É por isso que a gente só vai acabar com a fome de verdade quando a gente tiver garantido que todo povo trabalhador tenha um emprego, e por esse emprego tenha um salário, e por esse salário ele possa criar a sua família, comprar o que quiser pra comer, comprar o que quiser pra beber, comprar o que quiser pra vestir, o que quiser pra calçar. É esse país que nós temos que construir.
A Bolsa Família não é uma solução definitiva. O Bolsa Família é uma medida, quase que de urgência, que a gente está fazendo pra atender às pessoas mais necessitadas até a gente arrumar definitivamente a casa. O que é que cada mãe que tá aqui quer? Cada mãe que está aqui, ela não quer ficar recebendo favores, ela, se puder, quer trabalhar; ela, se puder, que ver seu filho e sua filha estudar, ir pra universidade, ter um emprego e poder ajudar a criar a família. É isso que nós queremos. Nós queremos ter uma casinha pra morar, não é isso? Queremos ter uma mesa farta de manhã, de tarde e de noite. E isso a gente pode oferecer. O Brasil pode garantir.
Acontece que a riqueza produzida nesse país não é repartida em igualdade de condições. Alguns podem comer dez vezes por dia e outros ficam dez dias sem comer. É isso que está errado. É isso que nós precisamos corrigir e é por isso que eu tenho obsessão de lutar contra a fome. É fazer a economia brasileira crescer, é gerar emprego de qualidade pras pessoas. Cada pessoa trabalhar, receber salário, levar comida pra casa, cuidar da família, estudar os filhos, morar dignamente, poder até comprar um carrinho ou uma moto, porque ninguém é obrigado a ficar andando de jumento a vida inteira, a gente pode comprar. Todo mundo quer ter uma boa televisão, todo mundo quer ter um telefone celular, todo mundo que ter, sabe, geladeira. Por que é que o pobre não pode abrir a geladeira e tomar uma aguinha gelada, não ver a comida estragar?
Você sabe, Rafael [Rafael Fonteles, governador do Piauí], como é que eu tomava cerveja gelada no começo dos anos 60? A gente comprava cerveja no armazém, que não era gelada porque era mais barata. A gelada era mais cara no bar. A gente levava cerveja pra casa, lavava a garrafa no tanque, colocava a garrafa dentro de um balde, descia no fundo do poço, esperava uma meia hora, subia com o balde e tomava a cerveja. Ela não estava gelada, era meia-boca a cerveja, mas era o que a gente tinha.
Então, eu brinco muito porque eu falo o seguinte, gente: não tem nada mais sagrado, não tem nada mais sagrado do que uma mãe colocar a sua família em torno de uma mesa e poder servir uma comida farta pra pessoa comer até encher o bucho, pra pessoa comer até dizer que não quer mais. Todo santo dia. Porque aí as pessoas não vão ficar mais doentes, as pessoas vão ter muito mais saúde, as pessoas vão poder trabalhar, as pessoas vão poder viver mais dignamente. O Brasil Sem Fome é isso! Não é só a comida, é a qualidade de vida que a gente tem que dar para o povo. O povo tem que ter uma casinha pra morar, a casa tem que ser minimamente decente. Esse povo tem que ter água tratada pra beber. Não é possível.
Eu ia buscar água num pote. Eu não esqueço nunca que uma vez uma jumenta tentou me comer. Ela me jogou no chão, pegou na minha barriga, lá em Caetés. A gente tava com dois caçuás pra buscar água, uma água barrenta. Quem já tomou água de açude aqui? Quem sabe o que é ir pegar uma água de açude, pegar um balde, encher d'água? Lá tava o cavalo fazendo xixi, a vaca fazendo cocô, a cabra fazendo xixi. A gente pegava aquela água cheia de sujeira, a água barrenta, levava pra casa. Não tinha geladeira, a gente colocava aquele pote para assentar e depois a gente ia beber. Quando eu cheguei em São Paulo, era as perninhas desta grossura e a barriga deste tamanho. Só podia ser de verme, só podia ser de lombriga.
É isso que eu quero acabar. O que eu quero pra este país é que cada mãe nunca, nunca vá deitar sem ter enchido a barriga de seus filhos e a sua barriga. O que eu quero é criar um país que todas as famílias pobres, por mais pobre que sejam, tenham direito a estudar, aprender uma profissão, a fazer uma faculdade e a trabalhar dignamente, com respeito.
O que eu quero é que as pessoas possam ter acesso à cultura, poder ler o livro. Esse governo que deixou o país, ele gostava era de armar, ele gostava da facilitar. "Vamos comprar pistola, vamos comprar fuzil, vamos comprar bala". Pois eu quero é que o povo compre comida, compre livro. Eu quero que o povo possa ter uma vida melhor. Isso é o Brasil Sem Fome. O Brasil Sem Fome é isso.
Olha, companheiras e companheiros, nós estamos numa batalha que não é fácil. Nós pegamos esse país destruído. Eu não sei se o Rafael já contou pra vocês, mas nós recebemos o Brasil, dia 1º de janeiro, nem orçamento tinha. Se não fosse o Marcelo Castro [senador] ajudar, a gente não tinha dinheiro pra ter começado esse ano. A gente não tinha dinheiro para o Bolsa Família. A gente pegou esse país com 14 mil obras paradas, quatro mil creches paradas, 286 mil casas paradas desde o tempo que eu era presidente e desde o tempo da Dilma.
Então, a nossa tarefa é reconstruir esse país. É reconstruir. É dar decência às pessoas. É garantir que esta meninada que está aqui, com seis, sete anos, possam virar gente, possam ser doutor, possam trabalhar, possam comer e criar a sua família e viver dignamente. É isso que nós queremos.
Ô gente, este país é possível, nós já criamos uma vez e a gente vai recriar outra vez. As pessoas precisam viver bem, as pessoas precisam se tratar bem, as pessoas têm que ser respeitadas. As pessoas não podem ser ofendidas como são ofendidas. As pessoas não podem ficar vendo coisa para comer na televisão, olhando para a mesa e não ter o que comer. Eu já fiquei de domingo na beira de uma mesa sem ter o que comer, sem ter um bocado de feijão com água pra colocar no fogo. Isso não é explicável nesse país.
É por isso que eu voltei a ser presidente da República, porque eu quero provar, mais uma vez, que um metalúrgico que não tem diploma universitário vai cuidar do povo melhor do que essa elite que não tem responsabilidade cuidou desse povo ao longo de 500 anos.
É cuidar. A palavra correta não é governar. Você não tem que governar o Piauí; Jerônimo [Jerônimo Rodrigues, governador da Bahia], você não tem que governar a Bahia; vocês não têm que governar. Nós temos é que cuidar desse povo. Esse povo tá precisando de cuidado, de carinho, de respeito, oportunidade. É isso que nós vamos ter que fazer e é isso que nós vamos fazer.
Ah, se tiver um banqueiro que não gosta de mim, esse banqueiro nunca votou em mim e nunca vai votar. Quem vai votar é aquela senhorinha que entrou aqui me chamando de Lulinha. A Janja, agora, vai ter que me chamar de Lulinha todo dia. Tem que ser Lulinha pra cá, Lulinha pra lá, Lulinha pra cá, porque eu também mereço, mereço ser tratado com muito carinho. Então, você se cuida pra me chamar de Lulinha.
Gente, eu, eu, pessoalmente, gosto do Piauí. Eu vim aqui a primeira vez em 80. O Rafael não era nem nascido, não era nem nascido, a gente já era amigo do pai dele. Viemos aqui criar o PT, depois viemos criar a CUT [Central Única dos Trabalhadores]. Fizemos uma caravana aqui com ônibus, era alugado.
Nós fomos encontrar em Parnaíba o companheiro Zé Pereira, companheiro – em Floriano –, companheiro fundador do PT, ele estava tão emocionado no dia que nós viemos aqui, que ele tinha colocado uma dentadura nova e mordeu a língua, não conseguiu fazer o discurso. Mas ele, ele para legalizar o PT, ele vendeu uma cabritinha leiteira que ele tinha no sítio dele porque alguém tentou achacar ele no cartório. Então, o meu carinho pelo povo desse estado é como se todos vocês fossem meus filhos, é como se todos vocês. E é por isso que eu quero cuidar desse país.
Eu, eu respeito todos os estados, mas todo mundo sabe o carinho que eu tenho pelo povo do Nordeste, porque é o povo que foi esquecido, é o povo que foi maltratado. Quando eu cheguei na Presidência, Rafael, o Nordeste era a região do país que tinha mais mortalidade infantil e mais desnutrição. O Nordeste era a região do país que mais tinha evasão escolar, o Nordeste era o lugar do país que mais tinha analfabeto, era o lugar do país que menos tinha mestre, que menos tinha doutor. Era o lugar do país que menos tinha universidade. E eu falei: sabe de uma coisa? Eu vou fazer com que esse Nordeste seja respeitado, sabe, pelo restante do país.
E graças a Deus, graças a Deus, quando eu venho no Piauí e vejo a evolução que este estado teve, eu vou dizendo: tem que agradecer a Deus, mas tem que agradecer a vocês de terem coragem de votar num índio para ser governador quatro vezes.
Porque eu sempre disse para vocês: esse índio é muito esperto. Ele ia a Brasília, eu era presidente, ele não pedia audiência comigo como os outros governadores faziam, não. Ele era mais esperto - Janjinha, minha água -, ele era mais esperto, ele deixava pra me ligar na sexta-feira à tarde. Ele me ligava: "companheiro Lula, eu tô aqui em Brasília, eu vou ficar por aqui. Eu gostaria de conversar com você. Dá pra ser uma conversinha no fim da tarde ou no sábado?". E saía de lá, levava um monte de projeto. E a gente nunca deixou de atender esse índio esperto. É o índio mais esperto do Brasil. É o mais esperto.
E ele é tão esperto que ele conseguiu encontrar um cara mais esperto que ele ainda. Pense, pense num moleque esperto. Vocês não sabem a qualidade do governador que vocês elegeram, vocês não sabem.
Eu acho que vocês vão ter muito orgulho, mas muito orgulho pelo que esse companheiro Rafael vai fazer aqui nesse estado. Vocês vão ter muito orgulho. Não só porque ele é novo – porque tem muita gente com pouca idade com a cabeça muito antiga –, ele, ele é importante porque ele pensa como é que vocês pensam. Ele sabe o sofrimento de vocês, embora ele seja um menino estudado, tenha uma escola, ele é doutor, mas ele sabe que ele não foi eleito por conta dos grandes ricos desse estado. Ele foi eleito por conta de vocês, do povo trabalhador, do povo mais humilde, do povo mais necessitado. É por isso que ele foi o primeiro a assinar aqui o programa do Brasil Sem Fome, porque se Guariba pode ficar sem fome, o estado do Piauí pode ficar.
Eu quero terminar, gente, pedindo uma coisa pra vocês. Vai ter a Conferência Nacional, vai ter a Conferência Nacional de Segurança Alimentar. É importante vocês participarem das conferências municipais para que depois a gente faça em dezembro, eu vou estar presente, a grande conferência nacional sobre a questão da segurança alimentar.
E queria pedir pra vocês não desanimarem nunca, pelo amor de Deus, não desanimem. Eu queria que vocês seguissem o exemplo da minha mãe. A minha mãe era uma mulher que nasceu e morreu analfabeta. Ela não sabia fazer o "ó" com o copo, mas quando meu pai tratou ela mal, quando meu pai tratou ela mal, ela não teve dúvida. Com oito filhos, sem ter absolutamente nada, ela teve coragem de sair de casa com os oitos filhos. Nunca mais voltou e criou oito filhos com muito respeito e com muita decência.
Eu tô dizendo isso, porque nenhuma mulher foi feita pra apanhar do marido. Nenhuma mulher foi feita para ser tratada como objeto de cama e mesa. A mulher tem que ser respeitada. Esse negócio de dizer que a mulher é o lado fraco, mentira. A mulher tem mais coragem, a mulher é mais ousada e o rosto da mulher foi feito pra que a gente faça carinho e não para que a gente levante a mão pra agredi-la. Vocês não podem se sujeitar.
E aos nossos companheiros homens, o que que eu posso dizer? Minha mãe dizia para mim: "meu filho, se um dia você brigar com a sua mulher, nunca, nunca levanta a mão e nunca levante a voz. Trate a sua mulher com respeito, porque se seus filhos verem vocês brigarem dentro de casa, você vai dar um exemplo ruim”. Então, se nós quisermos criar um novo ser humano, uma sociedade mais moderna, uma sociedade mais justa, uma sociedade mais solidária, uma sociedade que tem o amor, sabe, como fator principal da sua vida, a gente nunca deve brigar dentro de casa e muito menos agredir as esposas da gente.
Eu quero terminar, Rafael, dizendo pra você que eu não tenho dúvida nenhuma que eu vou voltar aqui mais, muitas vezes. Eu tenho certeza que cada vez que a gente vier aqui, esse povo vai tá melhor, porque, graças a Deus, com a ajuda de Deus e do povo, a gente elegeu um governador extraordinário, excepcional, que vai fazer o Piauí se transformar no estado ainda mais moderno e o estado melhor.
Um beijo no coração de cada mulher, um beijo no coração de cada homem, um beijo no coração de cada criança e que Deus nos ajude a vencer esta batalha contra a fome e contra a violência.
Um beijo, gente, e até a próxima oportunidade.